Voltaremos a ver Mektoub?
Tudo apontava que “Mektoub”, a planeada trilogia do franco-tunisino Abdellatif Kechiche, tornar-se-ia à sua “Capela Sistina”, a sua consagração enquanto autor. Ao invés, transformou-se numa “obra de Santa Engrácia”.
Mektoub’ [“destino” em árabe] seria uma distorção autobiográfica (com inspiração no romance de François Bégaudeau) com os seus cheiros proustianos à boleia da brisa da sua primeira obra – “La Faute à Voltaire” (2000) – o qual se centrava num jovem tunisino que, à sua maneira, fazia vida “clandestina” (mas romantizada) em Paris.
Em “Mektoub Mon Amour: Canto Uno”, a ação movimentava-se perante os corpos joviais e fervorosos em desejo crescente numa espécie de bucolismo balear e um hedonismo inconsequente, cuja figura epicentral é a de Amin (Shaïn Boumedine), em plena descoberta sexual como desculpa para se colocar na margem da lasciva iniciação e expedição ao encontro do seu “eu” intelectual. Pelo meio está a sua Ofélia, na verdade Ophélie (Ophélie Bau), o seu Santo Graal sentimental.
Porém, a atualidade não tem sido “simpática” para o realizador que certo dia venceu uma Palma de Ouro (e que a vendeu para financiar este seu “monumento”), o que tornou mais difícil a conclusão deste mesmo percurso jovial. Um primeiro canto recebido com apupos e reprovações durante a sua estreia no Festival de Veneza, o olhar mimetizado de um jovem na reinvenção do seu centro e carnalidade não foi de todo encarado com agrado pelas iniciativas #metoo e os movimentos anti-male gaze [o chamado “olhar masculino”], assim como pela auto-censura presente em cada um de nós.
Voyeurismo, fetichismo, misoginia, muitas foram as pejorativas etiquetas para classificar esse “coming of age” de 3 horas de duração. Após isso, a resistência para a chegada de um capítulo intermédio, um segundo canto, que caiu como “bomba” na Competição do Festival de Cannes, prenunciando um cenário infeliz para a derradeira conclusão deste épico.
Amin chega das suas férias em Paris, o “La Faute à Voltaire” evocativo, apresentando-se de forma cerimonial à sua trupe: a comitiva que nos acompanhará durante os próximos tempos (convém afirmar que o tempo tem aqui uma pesada aura). Um convívio sob a areia branca da praia e o sol abrasador, uma introdução (ou melhor, uma recapitulação) destas personagens do verão passado. O que acontece de seguida nessa tarde de reencontros é uma rotina tribal, uma simples ida a uma discoteca. “A noite é uma criança“, ninguém menciona, mas bem poderia evocar.
O que se intromete neste “Intermezzo” é a prova viva de Kechiche em provocar, nem que para isso faça da sua bíblia o Tempo, essa palavra-chave do cinema arquitetado por Chantal Akerman ou por Tarkovski [“Esculpindo o Tempo“], essa demanda em reproduzir a manifestação temporal sensorial. Ao espectador, o sentimento é tão próximo de uma direta, uma noite em branco.
A música é incansável e repetitiva, e por cada Abba ou shot somos forçados a mais um teste de twerk ou de jovens dançantes, loucos por esquecer o exterior, abraçando o momento na esperança de que este se torne eterno. Mas esta representação do delírio boémio e auto-destruidor tem as suas limitações (sempre acompanhado por uma câmara tão ou mais “ébria” que os próprios jovens). O ensaio rompe pelas suas insensibilidades. Cansaço pode muito ser a vivência perante esta experiência, mas fora essas “sequelas” infligidas nada de mais se absorve. Kechiche auto-mutilou-se no preciso momento em que se deixa vencer pelo Tempo, sem saber o que fazer com ele e sucessivamente ser esmagado pelo mesmo.
Amin é novamente uma figura passiva à margem, mas de longa dedicação à experiência dos outros. Enquanto isso, a “musa” Ophélie não é mais uma imagem de paixonetas distantes que nos remete àquele verão de 1994, mas sim, uma figura despida do seu encanto, vulgarizada pelas provocatórias decisões de Kechiche. E não falamos da tão infame cena de cunnilingus de 12 minutos (segundo as cronometragens durante a sua estreia no Festival de Cannes), e sim da posição pelo qual é colocada nas relações efémeras desta ordinária noite de copos.
A faca de dois gumes está aí mesmo, em diluir Ophélie a este ambiente e a “camuflar” com todos os outros seres ambulantes sem determinação alguma no seu “mektoub”. O selo romantizado estampado na sua personagem descola, o mesmo que o desejo de Amin. Em certa parte, Kechiche alerta-nos para a força ilusória das memórias e dos sentimentos anexados. Mas por outro lado, onde está o romantismo? Aquilo que separa o cinema da nossa realidade?
“Intermezzo” é essa perda de inocência, e é o maior risco de um dos realizadores mais arriscados da atualidade. Porque é na sua provocação que se poderá ditar o fim da sua consagração. Sim, a dita trilogia. Em tempos de sensibilidades e de consciências, Kechiche não é bem vindo, o seu tempo está expirado e nem mesmo as suas “fracassadas” experiências conseguem ser vistas sob as luzes do saudosismo emocional. O dito interlúdio peca pela sua real natureza – a da transição.