Uma mulher na conquista de Hollywood
Erradamente induzido a um símbolo de emancipação feminina, “Wonder Woman” [o filme de 2017] conquistou uns impressionantes 800 milhões de dólares em bilheteiras de todo o Mundo, sem sequer apercebemos que a grande heroína neste cenário foi a sua realizadora, Patty Jenkins.
Não se tornou, outro erro comum que muitos caíram, na primeira mulher a comandar um filme de super-heróis, esse subgénero cada vez mais vincado (antes dela, Lexi Alexander e Karyn Kusama), mas fora a primeira a ter ao seu dispor uma produção com um orçamento acima dos 100 milhões. Por outras palavras, a mulher vinda da televisão e de uma longa-metragem telefílmica que levou Charlize Theron ao Óscar [“Monster”, 2003] assumiu-se como uma guerreira numa indústria ultra-capitalista ainda maioritariamente liderada por homens. Se existe toda uma Mulher Maravilha nisto tudo, é ela mesmo.
Portanto, como já havia referido, 800 milhões angariados dá direito a sequela, se não fosse o facto de este produto inaugural com Gal Gadot estar inserido num universo partilhado, aquelas novas denominações e definições de franchise. Contudo, com adiamentos vários, uma pandemia a ser vivenciada e um estúdio de mãos dadas com uma plataforma de streaming que, ao seu jeito, encontram uma solução para estacar (ou apaziguar) o prejuízo, eis que chega-nos “Wonder Woman 84”, um blockbuster num ano escasso deles.
Com Patty Jenkins novamente no poder, requisitou-se as simples leis da “sequelite” – “mais e melhor”- e em todo o seu esplendor, esta nova produção da Warner Bros é ela mesmo, exagerada, ambiciosa, mas nunca dependente da credibilidade, nem da simulação de tal. A realizadora tinha em mente uma invocação de um espírito longínquo, totalmente perdido neste boom do subgénero que tem variado entre a seriedade e alter-realismo ou o chico-espertismo e o extenso tom paródico, o estilo “camp”, o qual levará muitos adeptos aos tempos de Lynda Carter e as suas episódicas aventuras nos anos 70.
Confere que a Warner Bros. / DC tem sorrateiramente estabelecendo essa via, basta recordar o tecnologicamente submarino “Aquaman” (James Wan, 2018), só que é na conhecidíssima super-heroína que o estilo é assumidamente erguido nos seus momentos de ação, ou na devolução da figura pedagógica e demagoga a estes figurinos de comics. Os dias atuais levam-nos a encarar com ceticismo e desconfiança à ingenuidade gratuita, ao ativismo utópico próprio de fantasias hollywoodescas, e ao propagandismo samaritano. Sim, há uma demanda ideológica e deveras moralista no sacrifício da nossa heróica mulher, nada de sobrenatural neste registo, nem sequer no subgénero, porém, é a sua devoção explícita que enaltece esse lado escapista e “arcaicamente devedor” da BD em si.
“Wonder Woman 1984” funciona, mesmo que desigual, como um tributo à aura dos comics, uma espécie de regressão que o torna limitadamente “fora da caixa” perante a tendência produtiva. O resto, meus amigos, é Patty Jenkins a operar uma produção de grande escala, simbólica, e de coração pulsátil quanto ao seu senso de dever (segundos as mais recentes notícias, a realizadora irá envergar a galáxia “Star Wars” para a Disney, espera-se uma conquista a esta Hollywood megalómana ainda, muito, masculina).
Por fim, Gal Gadot continua muito mais que uma pin-up outrora vencida, dando o corpo a este manifesto, contra duas figuras antagónicas (Pedro Pascal e uma inesperada Kristen Wiig) que carregam o tom fabulista no filme. Porque no fundo, “Wonder Woman” é, isso mesmo, uma fábula à escala de Hollywood, com uma América idealizada e convicta para o Mundo ver.