Uma mulher em pedaços ...
Sean (Shia LaBeouf), um construtor civil com apetência para pontes, conta à sua amante em tom de confissão a história da terceira maior ponte suspensa dos EUA, a de Tacoma, e como esta misteriosamente desabou. Segundo ele, após ter verificado toda a estrutura, cabos, pilares, condições atmosféricas, a razão encontrada para a queda foi a ressonância, a energia armazenada que se manifesta de forma natural. Este pedaço de monólogo, aparentemente sem sentido, invoca-se como uma metáfora arquitetónica das “pontes” e as suas vitalidades nas relações afetivas.
No caso de Sean, a relação com a sua mulher Martha (Vanessa Kirby) está prestes a desmoronar-se. Ao espectador é evidente esse gradualmente afastamento entre as duas margens, até porque a ressonância aí encontrada é a de um sonho desvanecido, o de constituir família, que ficou comprometida com uma tragédia. Tal como a personagem de LaBeouf, o húngaro Kornél Mundruczó é um realizador de capacidades dramaturgas com apetência por outras “pontes”, neste caso as dos ensaios performativos, com a intenção de causar uma espécie do "teatro do real".
Obviamente que a encenação, essa farsa ficcional, é o seu trabalho de compostura, mas o que prevalecem são os seus gestos de representação para com essa realidade, através do seu mundo (Mundruczó navega entre o cinema e o teatro) e das ditas e artísticas instalações. Neste caso, o atrativo é a sensação simulada de um parto e toda a agonia trazida por esse trabalho doloroso e demorado, rompido por uma luz de alegria e, subitamente, choque, pânico e luto.
Nesta cena sem cortes e com uma câmara empenhada em captar os momentos num jeito guerrilheiro e aflito, Vanessa Kirby, atriz que o grande público reconhecerá pela interpretação da Princesa Margarida nas duas primeiras temporadas de "The Crown" e das andanças de "Mission Impossible: Fallout" e “Hobbs & Shaw”, impõe-se silenciosamente e torna-se na força motora desta situação extrema. De tal forma que o resto da narrativa ambiciona pela sua dor, muda, incompreensível e oculta.
“Pieces of a Woman” é um claro primo cinematográfico de um "Who 's Afraid of Virginia Woolf?” (Mike Nichols, 1966) ou “Blue Valentine” (Derek Cianfrance, 2010). Tal como estes, é um filme sobre rupturas e desejos passados e convertidos em ódios impagáveis. Não sendo um exemplar pleno e consciente do sofrimento que causa às suas personagens (por diversas vezes cede aos lugares melodramáticos de cordel ou da fácil comoção, como a vulgarização do Holocausto, inglória temática para servir uma potente Ellen Burstyn), Kornél Mundruczó consegue em meias estações erguer a sua ponte. E nela, a ressonância, essa força, manifesta-se independente e vigorosa.