Um milagre em Roma!
Emblemática imagem, aquela da voluptuosa, mas igualmente iluminada, atriz sueca Anita Ekberg a “banhar-se” na Fontana di Trevi sob o olhar estupefacto de Marcello Mastroianni. Nela, é possível admirar a inocência com que esta encara um mundo negro e decadente, o qual negligencia com todas as forças do seu ser. O nosso protagonista e ator-incorporado de Federico Fellini une-se a ela nas águas retidas no monumento, aproximando-se da estrela que parece “devorar” a atmosfera ancestral de Roma. Marcello tenta beijá-la, hesitando a tempo, apercebendo que, no fundo, nunca possuirá algo semelhante àquele “milagre” na sua vida. A Anita (sob o heterónimo de Sylvia) é a pureza do qual afasta-se dia após dia na sua demanda pela integração numa classe à parte. É o objetivo inatingível. A sua divindade!
Mas desviando da cena crucial que se converteu num ícone ao longo dos tempos, “La Dolce Vita", um dos grandes sucessos de bilheteira e de crítica do maestro Federico Fellini, é o retrato de um cobiçado submundo “romano” onde Marcello (Mastroianni), um jornalista especializado em “gossips”, anseia integrar a “comunidade” que persegue ou explora. O filme faz questão de representar toda essa sua trajetória desde a sua abertura, onde Cristo (uma estátua como é óbvio!), içada por um helicóptero e perseguido por outro (este da imprensa), sobrevoa Roma de braços abertos como um gesto de absolvição pelos pecados aqui reunidos. Pouco ou nada lhe vale, os mortais continuam a viver como bem sabem e Marcello foi o escolhido para representar essa descida infernal, enquanto reflete o seu próprio empobrecimento moral.
Após várias experiências, "La Dolce Vita" marcou o rompimento de Fellini com o estado tradicional do neorrealismo italiano (o movimento que estetiza a realidade de um ponto de vista ideológico) e foi um “bem-haja” ao universo "felliniano" que se prolongou pelos filmes seguintes, principalmente o caráter monstruoso que envolvia as suas personagens, incluindo as protagonistas. Aliás, isso nota-se no hedonismo fervoroso que se entranha em Marcello por entre salões vazios e preenchidos por sombras de uma certa aspiração aristocrática (“vamos caçar gambuzinos?”, proclamando com credibilidade por quem o sugere), figuras "non-sense" que o espectador observa como animais enjaulados. É como se falassem de outra língua, encriptada, em que apenas os convertidos conseguem dialogar.
O final é propício a essa divergência classificativa, com a praia (sempre a praia como palco de epifanias no cinema de Fellini e não só!) onde Marcello não consegue comunicar com a sua “vida anterior” após o encontro com a colossal raia (o “peixe monstro” que arreda os males humanos em todas as suas representações). É a graduação final. Objetivo cumprido! Infelizmente, também é esse trilho que o colocará a milhas do milagre anteriormente testemunhado na Fontana di Trevi.
A festejar uns novíssimos 60 anos, "La Dolce Vita" é uma obra-prima que retoma a "casa", ou seja, à sala de cinema. Para (re)ver e crer!