Um homem em fúria
O que mais fascina em “Le procès Goldman” é, primordialmente, o seu descasque narrativo, o corte atrás de corte da suposta biografia esquemática hoje normalizada no cinema (e nas suas vertentes televisivas), reduzindo uma vida a um resumo episódico, e através dele, o mise-en-scène encenado na sua magistralidade.
Estamos em novembro de 1975, no segundo julgamento de Pierre Goldman, carismático ativista de extrema esquerda que, apesar das suas nobres origens, entregou-se ao banditismo, segundo ele mesmo, como atalhos para uma vida de excessos. Condenado em 1969 pelo assalto e homicídio voluntário de duas mulheres, é novamente julgado por causa de um livro que escreveu durante o seu cárcere, clamando a sua inocência. A audiência, quase tribal, transforma-se num espectáculo divisório, com uma plateia emocionalmente expressiva: “Goldman inocente!”, “Goldman assassino!”, ouve-se gritar ocasionalmente nos intervalos de cada intervenção. Um processo longe do kafkiano, pelo contrário, recebendo contornos dostoievskianos, como menciona o seu advogado de defesa, atribuindo uma aura de mártir arrependido a um sempre explosivo Goldman, aqui inteiramente incorporado por Arieh Worthalter (“Douze Mille”, “Girl”), que através da sua fúria inerente tenta descortinar uma conspiração policial.
A estrutura narrativa de “Le procès Goldman” resume-se maioritariamente a este julgamento, raramente saindo da sala de audiências (e quando o faz, como na cena intercalada de Goldman aguardando na sua sala, adquire uma imagética bressoniana), escutando atentamente os testemunhos, advogados, juízes e jurados, sem nunca ultrapassar o espectador na sua imbricação moral, nem sequer aludir a Goldman como uma figura heroica (mesmo que Kahn demonstre respeito, leia-se também admiração, pelo mesmo).
É um filme que extrai vampiricamente do caso mediático a sua clássica performance, ora teatral, transformando o tribunal num anfiteatro de última hora e os réus num palco de interpretações naturalistas. Remete-nos aos cânones desse mesmo subgénero, com os Lumets “saidinhos da casca” ou o Fleischer isento da sua perversão. Cédric Kahn une o clássico hollywoodesco com o desenrasque e apelo imaginativo que só a dramaturgia teatral revelaria, sem jamais atropelar o intelecto do espectador, nem sequer fazê-lo refém de ideologias ou declarações de qualquer género persuasivo. É somente a capacidade de reproduzir (História morta, porém, sem subjugação pálida) e daí esperar que os mesmos efeitos sejam levantados como “ratos de porão”.
Um episódio acima do seu lado episódico, Goldman respirou de novo, nem que seja por uma hora e cinquenta num Cédric Kahn revitalizado.