Saltar para: Post [1], Pesquisa e Arquivos [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um homem em fúria

Hugo Gomes, 04.01.24

coverlg.jpg

O que mais fascina em “Le procès Goldman” é, primordialmente, o seu descasque narrativo, o corte atrás de corte da suposta biografia esquemática hoje normalizada no cinema (e nas suas vertentes televisivas), reduzindo uma vida a um resumo episódico, e através dele, o mise-en-scène encenado na sua magistralidade.

Estamos em novembro de 1975, no segundo julgamento de Pierre Goldman, carismático ativista de extrema esquerda que, apesar das suas nobres origens, entregou-se ao banditismo, segundo ele mesmo, como atalhos para uma vida de excessos. Condenado em 1969 pelo assalto e homicídio voluntário de duas mulheres, é novamente julgado por causa de um livro que escreveu durante o seu cárcere, clamando a sua inocência. A audiência, quase tribal, transforma-se num espectáculo divisório, com uma plateia emocionalmente expressiva: “Goldman inocente!”, “Goldman assassino!”, ouve-se gritar ocasionalmente nos intervalos de cada intervenção. Um processo longe do kafkiano, pelo contrário, recebendo contornos dostoievskianos, como menciona o seu advogado de defesa, atribuindo uma aura de mártir arrependido a um sempre explosivo Goldman, aqui inteiramente incorporado por Arieh Worthalter (“Douze Mille”, “Girl”), que através da sua fúria inerente tenta descortinar uma conspiração policial.

A estrutura narrativa de “Le procès Goldman” resume-se maioritariamente a este julgamento, raramente saindo da sala de audiências (e quando o faz, como na cena intercalada de Goldman aguardando na sua sala, adquire uma imagética bressoniana), escutando atentamente os testemunhos, advogados, juízes e jurados, sem nunca ultrapassar o espectador na sua imbricação moral, nem sequer aludir a Goldman como uma figura heroica (mesmo que Kahn demonstre respeito, leia-se também admiração, pelo mesmo).

É um filme que extrai vampiricamente do caso mediático a sua clássica performance, ora teatral, transformando o tribunal num anfiteatro de última hora e os réus num palco de interpretações naturalistas. Remete-nos aos cânones desse mesmo subgénero, com os Lumets “saidinhos da casca” ou o Fleischer isento da sua perversão. Cédric Kahn une o clássico hollywoodesco com o desenrasque e apelo imaginativo que só a dramaturgia teatral revelaria, sem jamais atropelar o intelecto do espectador, nem sequer fazê-lo refém de ideologias ou declarações de qualquer género persuasivo. É somente a capacidade de reproduzir (História morta, porém, sem subjugação pálida) e daí esperar que os mesmos efeitos sejam levantados como “ratos de porão”. 

Um episódio acima do seu lado episódico, Goldman respirou de novo, nem que seja por uma hora e cinquenta num Cédric Kahn revitalizado.