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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um homem em chamas e o vislumbre de um novo 'autor'

Hugo Gomes, 02.09.24

Best-Denzel-Washington-Movies-—-Man-On-Fire-scal

A man can be an artist... in anything, food, whatever. It depends on how good he is at it. Creasey's art is death. He's about to paint his masterpiece.”

Foi o “caçula” da família Scott! Tony foi visto diversas vezes como somente o irmão mais novo, frente a um Ridley, versátil, talvez mais "salta-pocinhas" que outra coisa. Porém, e não estando mais entre nós, possivelmente olhamos para Tony Scott, não mais como somente o mais novo, e sim como o “autor” frente a um congénere perdido pelo que lhe é mais rentável. Com isso, nota-se, principalmente nos seus últimos filmes, um delírio intenso e continuado na sua estética, visualmente carregada e atirada aos confins do territórios hoje inteirados no videoclipe, arte essa que parece ter morrido com estes tempos de lufa-lufa e do império streaming

Para além disso, a sua restrição ao género de ação o tornou também mais emancipado e convicto nessas mesmas margens, isto, obviamente “desculpando-o” dos Ovnis de carreira que apresentou nos seus “verdes anos” (com “The Hunger” à cabeça). A cisão do velho Tony com o realizador entregue ao visual maneirístico tem um filme-marca: “Man on Fire” (um remake de um homônima obra de 1987, dirigido por Élie Chouraqui e com Scott Glenn como ‘anjo justiceiro’), atualmente (re)visto com um certo culto, nem que seja nesse revisionismo autoral. 

Ambientado na caótica Cidade do México, somos apresentados a Denzel Washington - Creasy - um ex-militar de passado sombrio, ferido e com quedas ao alcoolismo, que aceita trabalho enquanto guarda-costas da filha de uma família abastada, como sinal de um necessário recomeço. Desde o primeiro momento, a menina doce, Pita Ramos (uma Dakota Fanning ainda brilhando como “prodigiosa pirralha”), desperta-lhe uma centelha humanista. Ambos criam uma forte ligação afetuosa, desafiada no momento em que a criança é sequestrada. A partir daí, Creasy embarca então numa vingança brutal, enfrentando policias corruptos a todo um submundo criminoso, um típico e estereótipo México na lente de Hollywood. 

Portanto, em matéria de argumento não há muito para oferecer para além do conceito vingança e de redenção que este Washington, feroz e igualmente cansado incute, e é nele que pressente uma entrega como nenhuma outra para o papel. O restante, por via de uma irrequietação, não apenas visual, como também sonora (com quedas ao exótico), o filme responde aos estímulos do espectador por vias de ocasionais freeze-frame, slow-motions, lens flares, incandescências e outras ginásticas imagéticas, tendendo a refazer tudo o que havia tocado anteriormente. É difícil não olhar-lhe como um filme-cobaia, em tremenda experimentação, com Tony a redescobrir-se em cada cena, e é com essa ciência prática que o levará a outras frontes, seja no exagero de “Domino”, lançado no ano seguinte, ou na normalização e consistência, sempre de mãos dadas com o seu “musos” Denzel (colaboração resgatada das profundezas de “Crimson Tide”, em 1995, a redescobrir) em “Déjà Vu” (2006), a refilmagem “The Taking of Pelham 1 2 3” (2009) e o seu derradeiro “Unstoppable” (2010).

Quanto a “Man on Fire”, contemplando-o em retrospectiva, é uma revelação de cineasta, e talvez seja por isso que não tenha consagrado consensos, nem impor um amor que hoje parece germinar como cogumelos, na altura da sua estreia [2004]. Sendo simplista e pragmático, a verdade é que o filme adquire uma força detida numa certa e estranha sobrenaturalidade quanto ao seu final: com Creasy enquanto cavaleiro andante derrotado, para incognito destino seguir, tendo como companhia a hiperatividade na banda-sonora que nunca em momento algum sai enfraquecida. É o preciso sacrifício, a troca do novo pelo velho, Pita em liberdade, o ‘reformado’ rumo ao seu calvário como pecador prestes a submeter à sua penitência. É neste mesmo desfecho que o nosso “heroi” atira “a toalha ao chão”, e através da sua caminhada “dead man”, um autor ressurge, Tony Scott, o anterior irmãozinho, a reafirmar-se naquilo que Ridley nunca será.