Um fio tênue que unifica as nossas mais mórbidas fantasias ...
Entre “kiss me” e “kill me” existe uma ligeira divergência fonética que não impede que ambos os “pedidos” se enquadram na igual esfera do Desejo. Aliás, esse signo é identificável numa colheita de curtas que jogam com a carne e a perversão da mesma como objetivos-irmãos, seja pela heresia interior nas imagens sacras (“Carne”), quer nos limites do aceitável imaginário (“Coelho Mau”) ou simplesmente o desejo repreendido (“Boa Noite Cinderela”), um universo que Carlos Conceição nestes últimos tempos deixou-nos “babar” por uma inadiável estreia no formato das longas.
Infelizmente, “Serpentário” (ainda sem estreia comercial) não correspondeu a essa constelação do desejo ardente, enfraquecido por um caminho serpentino à sua determinante chegada, esta algo memorialista e longe da sensorialidade. Contudo, é com “Um Fio de Baba Escarlate”, uma média-metragem (50 e poucos minutos contamos nós de duração) no limiar da estância seguinte, que funciona como estreia “longuíssima” que tanto ansiávamos e que nos negaram, por culpa do próprio Carlos Conceição.
Um filme que se concentra nessa incestuosa relação entre o desejo a ser consumado e a depravação nunca ocultada, enriquecida numa trip estetizada e sanguinariamente glamorosa de um serial killer (Matthieu Charneau) atingido pelo constante efeito “fregoli” (todas as suas vítimas são representadas pela mesma face – Joana Ribeiro – assim, como o seu redor, homogéneo) e pela língua inexata e imperceptível aos nossos ouvidos (somos “atirados” a um enésimo “não-lugar”). Aqui, o seu “fetiche” (menorizando a sua vontade de matar é claro!) é interpolada por um incidente / acidente que o converte numa equivocada estrela viral. Para a insaciável fome existe uma veneração messiânica que o transporta num (nunca justo) dilema moral. Mas a racionalidade não é inabalável perante a cedência pecaminosa e carnal dos seus desígnios (Conceição joga ainda com os seus “lugares-comuns” para tracejar uma linha direta entre as efémeras ambições [fama] pela negritude da sua caixa-negra [a fantasia]).
Confessamos, e novamente repescando o ponto inicial, que este é o trabalho que pretendíamos como primeira longa-metragem, um ensaio incorporado nos ditos gestos de Conceição, fortalecido com o estilismo superlativo e artificializado que nos convoca para uma falsa sensação de devaneios oníricos. E na entrada para esse campo de sonhos e pesadelos diluídos numa só cor, o travelling serpentário (melhor juz ao tão desperdiçado título) que se “cola” a Joana Ribeiro, materializando-a num desiludido amor de perdição. Resumindo movimentos contraditórios (temos testemunhado muitos destes nos últimos anos) que corroem a tradição da artificialmente estática que muito do cinema português tem vivido.
E é na clareza da sequência que persegue a sua personagem-mártir (coincidência um filmes destes presentear-nos Leonor Silveira, a protagonista de um dos mais belos travellings que o nosso cinema nos ofereceu – “O Vale Abrão”, de Manoel de Oliveira) que novamente bradamos pelo regresso em platina de um dos nomes mais promissores deste chamado “novo cinema português”.