Um diamante bruto que se dá pelo nome de Anora
O sexo é a moeda de troca nesta América “redesenhada” por Sean Baker, é o seu mote, o seu mantra, a partir do qual florescem histórias da sua visão yankee. Realizador que, nos últimos tempos, muito devido ao seu “filme de rua” “Tangerine” (2015), captado por um iPhone, conquistou o estatuto de grande nome do cinema independente norte-americano, isto num momento em que essa cinematografia de baixo orçamento parece ceder a fórmulas sundescas, com um ou dois nomes destacados. Depois desse “Kids” transgressivo, Baker acampou às portas da Disney numa busca incessante pela inocência, distanciando-se do mercantilismo e da desfiguração trazida pelos “pecados capitais” dos EUA em “The Florida Project” (2017). Seguiu-se “Red Rocket” (2021), onde resgatou o ator Simon Rex, conhecido pelas suas comédias disparatadas, impondo-lhe o papel de uma decadente estrela pornográfica, protagonizando uma série de peripécias tragicómicas sem qualquer réstia de redenção.
Aliás a comédia é uma droga que corre nas veias da cinematografia de Baker, de doses comedidas sem nunca induzir overdose, e é coms esse humor presente que “Anora” se instala, manejando espaço para os seus lugares-confortáveis, a do sexo, aqui representado, industrialmente, pela nossa Anora - Ani como ela prefere ser chamada (Mikey Madison) - dançarina exótica que aceita serviços de protituição para o filho de um oligarca russo com uma quantas propostas indecentes e aliciantes pelo caminho. Neste primeiro ato de delírio e ostentação, o filme abraça uma espiral de excesso, como um sonho repetitivo e musicado, que se assemelha aos infinitos anúncios de excentricidades. No entanto, quando esse sonho se dissipa, um “banho de realidade” espreita para tomar a nossa protagonista, sem nunca a banhar por completo devido à sua entranhada fantasia / alucinação. É nesse momento que Baker encontra um ritmo perfeito: o filme aguarda, esclarece, e o humor aí sugerido revela-se numa especiaria de aprumo paliativo, cada momento que Ani experiencia é trágico, dramático para não dizer mais, mas o cómico da situação extrai desses enredos o seu quê de ridículo, até mesmo sexo é olhado de vesga como um embaraço.
“Anora” estabelece uma espécie de malapata improvisada, Coney Island e arredores a servirem de trilhos carroleanos de requinte, um “After Hours” brejeiro, deliciosamente brejeiro, onde um secundário, a passos da relevância, Yura Borisov (“Compartment Nº 6”), estabelece um vínculo humano para com o espectador — algo que, por vezes, parece faltar a Ani. Mas vamos com calma… Sean Baker arrisca-se em território que lhe é confortável, e esses riscos trazem os seus frutos. A duração do filme contribui para a maturação das personagens e das suas demandas rocambolescas, bem como para a evolução do enredo e do tom, depois, é a comédia sem nunca encostar-se totalmente à sátira, e nisso bofeteia a tendência de caricaturas-supra dos super-ricos ou dos machos tóxicos que muitas produções populares, como a série “White Lotus” ou o recente fenómeno de género “The Substance”. Aqui a crítica é sóbria e mascada e discursada em poucos minutos, sem sobreliteralidades, sem imediatismos, de lições devidamente retiradas à Nova Hollywood que espelha como exemplo formal.
No final, a nossa Ani revela-se humana, sem que isso desculpe as suas “anomalias” sociais, partilhadas por tantos de nós, e nesse ato, quase como um canto do cisne, o sexo, novamente palavra de ordem, aponta ao seu holofote, desta vez sob uma cor fria, em que a carne anseia por um afeto qualquer, uma empatia, um abraço de conforto. Somos humanos, dançamos, e para Sean Baker, fornicamos igualmente como ato lúdico, cada vez mais afastada da interação pessoal. “Anora” é isso, um abraço quente em tempos frios.