Um dia "temos que aceitar a Máquina"

Por mais que se tente evitar, acreditamos que todo o cinema é político, mesmo o simples entretenimento, aquele que muitos preferem considerar inofensivo, desprovido de qualquer intenção para além da “nobre vontade de entreter”, é igualmente difusor de uma mensagem, reflexo da ideologia que sustenta a indústria em vigor. O que tenho vindo a reparar, sobretudo no campo da ficção científica, é uma constante vontade de humanizar o artificial: torná-lo espelho das nossas preocupações e prioridades, integrá-lo na sociedade de carne e osso.
Nos exemplos mais recentes dessa queda do humanismo e ascensão do artificialismo, encontramos “Alien: Romulus”, tentativa da Disney de reanimar o franchise sem grande rumo (ou de o “televisar”). Aí, somos “surpreendidos”, ou talvez anestesiados, com a facilidade com que a heroína decide abandonar uma mulher grávida à sua sorte em prol do companheiro sintético, androide ou replicante (obedecendo ao desejo de fundir universos). Mais tarde, ainda neste ano, fomos novamente encorajados a preocupar-nos com uma anterior máquina assassina, Megan, agora numa nova atualização. Saudades dos tempos em que as máquinas se sacrificavam pela Humanidade nas horas de aperto, nem que fosse apenas para acenar um “thumbs up” antes de se desintegrarem. Mas essa época se foi (“like tears on a rain”, parafraseando um conhecido sintético entre nós).
O humanismo é cada vez mais contestado, as nossas fragilidades enquanto espécie (outrora levadas ao colo) são agora descartadas em nome de um fatalismo: o fim da Humanidade é certo, por sua vez, o quando é incerto. Com os avanços tecnológicos e a inteligência artificial convertida em campo de batalha entre hemisférios, é curioso ver Hollywood empenhada em combater o uncanny valley que se instalou como mecanismo de defesa. Os filmes tendem a apostar em mensagens subliminares, e gradualmente mais escancaradas, portas para uma empatia não entre homens, mas entre humanos e máquinas. Serão elas, entre bites e bytes, os nossos sucessores por direito? Poderíamos argumentar que “Tron” já falava disso — da humanização e personificação do artifício. Mas com “Ares”, o terceiro capítulo de uma saga aos solavancos, regressa a busca pelo Pinóquio digital: o ser de 1 e 0 que aspira a tornar-se “menino de verdade”.

A narrativa coloca-se entre guerras corporativas pelo domínio da IA, materializando essa tensão. De um lado, Evan Peters e Gillian Anderson encarnam uma empresa de herdeiros e nepotismo, como figuração de um mal identificado, difuso e sem rosto. Do outro, os heróis, com a atriz de Celina Song (“Past Lives”), Greta Lee, a liderar um hub benetton sem espinha dorsal. E ao centro, Jared Leto em modo Leto, como action figure de uma obra atrapalhada pela sua própria identidade - ser-se sequela do legado que presta, ou ser-se ‘coisa diferente’ do habitual. Contudo, “ser diferente”, na tradução desta Hollywood, é pouco: é baralhar as cartadas e percorrer os lugares-comuns com outros ares (viram o que fiz aqui? ou talvez nem por isso).
E pronto, para filme de artificialidades, “Tron: Ares” não evidencia qualquer traço de distanciar disso mesmo, como também pegar na “mitologia” e torná-la corriqueira, o estranho serviço para que uma obra (a de 1982) que teve pretensões de ser o mais moderno possível mesmo que essa suposta ‘modernidade’ o tenha traído, condená-lo a ser um curioso objeto de culto e datado.
No entanto, nas indústrias atuais, vale mais essa ambição do que a confortabilidade da fórmula. Ainda que, com a fórmula, venha o cavalo de Troia com a seguinte mensagem ao pendurico: “temos que começar a amar a máquina”.