Um cruzeiro chamado Europa
A Palma de Ouro soa-nos cuspida, mas em certa parte entende-se os dilemas que aquele júri enfrentou ao indiciar o seu premiado máximo. Ruben Ostlund é um provocador, incita inquietação no espectador enquanto o obriga a debater com os seus próprios medos sociais, um declínio da sociedade ocidental com os seus ritos padronizados como algo garantido.
Em “The Square”, o “dedo na ferida” levou-nos aos limiares das fronteiras artísticas, no qual, segundo a sua tese imposta por sketches, o limite da arte ou a existência dela (“o que é a arte?”, essa questão que nos assombra), é de mera subjetividade, o cerco encontra-se na nossa própria consciência. O ensaio, em si, rendeu-lhe a primeira Palma em Cannes, atribuída por um júri presidido por Pedro Almodóvar (o que posteriormente confessou preferência no “120 Battements par Minute” de Robin Campillo), mas é à segunda distinção na Riviera Francesa que começamos a delinear um perfil quase patológico, o fazer do cinema, ou o formato de metragem, nas suas “tirinhas cartunescas", episódios de aguçadas lâminas lançadas aos espectros de um decadente ocidente.
Quanto a “Triangle of Sadness”, outra geometria, envolve-nos no seu solipsismo umbiguista, apronta-se como uma viagem de cruzeiro, cuja embarcação dá-se pelo nome de Europa, não no sentido literal, mas figurativo. Que Europa é essa? A Europa da "culpa branca”. A Europa conformista que brama “igualdade” perante a sua própria indignação. Uma Europa de luxos. Uma Europa de castas. Uma Europa dividida em ideologias e com constante receio de que as mesmas se materializem em naufrágios. Uma Europa comandada por um embriagado (tão metaforicamente representado por Woody Harrelson, talvez o único que tenha realmente se divertido com isto tudo). A Europa é por si o tema, a dissecação, a satirização, a crítica ácida nesta balbúrdia repugnante, de risos forçados e embaraçosos, de dicotomias diluídas que qualquer mãe facilmente rejeitaria (chora-se pelo cadáver e simultaneamente lhe rouba as jóias). São aproximadamente duas horas e meia de cuspidelas para o ar que nos atingem na própria face e que, mesmo assim, adoramos apelidar de “chuva”. Fora isso, é um filme de um ritmo atroz, o "Triângulo" não possui lados idênticos, afunda-se à primeira oportunidade (falo novamente sob uma luz figurativa e literal), a “terra à vista” opera como a “morte do seu artista” (até aqui já percebemos a cerne crítica, não era necessário esticar ainda mais a “corda” narrativa).
Contudo, isto faz-nos pensar como as Palmas de Ouro são geradas. Serão frutos da nossa contemporaneidade? Talvez sim! Com uma pandemia que nos conscientizou ainda mais sobre os nossos privilégios e na díspar distância entre classes, seja normal que Ruben Ostlund tenha conquistado, e novamente tal estado de graça, perante o grupo de jurados (desta feita, presididos por Vincent Lindon). Foram diálogos diretos que os obrigaram a olhar para os seus respectivos umbigos, num exercício seguido pela observação dos seus arredores, do contraste culmina o ressentimento. Eis uma comédia risivelmente negra sobre o nosso estado.