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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Tudo aconteceu numa "bela manhã" ...

Hugo Gomes, 04.11.22

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Desde que comecei a fazer filmes, descobri que é através deles que encontro as ferramentas para aprender a voltar a viver e encarar este mundo.Mia Hansen-Løve

Numa “bela manhã”, Sandra visita o seu decadente pai, um respeitado professor de filosofia, hoje prisioneiro, do seu próprio apartamento, face a uma doença degenerativa que o impede de ser autónomo. Os olhos da nossa protagonista, “vestida” sob uma discreta Léa Seydoux, enchem-se de angústia, um silencioso desespero ao ver o seu progenitor em estado de farrapo, perdendo a sua consciência quanto à sua própria existência. Discute-se a possibilidade de o mover para um lar, e isso, mais tristeza lhe atribui. 

Porém, foi nessa mesma “bela manhã” que Sandra reencontra um “velho amigo”, belo e confiante após uma expedição à Antártida, um cosmofísico, cuja, por fim, troca de olhares, dissipa aquela tristeza contida. Novos sentimentos (re)nascem. Aquela “bela manhã”, no fundo, foi uma agridoce manhã como a vida o é, ora cinzenta, ora colorida, entretanto confundida ou escapista. Sandra é impotente para com aquilo que o seu pai vai-se tornando (um ser fragmentado, impreciso nas suas memórias, na sua evidência) e deseja exiliar desses sentimentos, ou Sandra conforta-se na temporária felicidade (nos braços do seu amante) e ao mesmo tempo sente-se perturbada pelo destino que o seu ente querido encaminha. Nada é unilateral, preciso nessa vida, olha-se para o horizonte de forma a fugir das nossas preocupações. 

Depois de Mumbai com “Maya” (2018), e da Ilha Faroo com “Bergman Island” (2021), Mia Hansen-Løve, definitivamente entranhada na sua melancolia (vida para além do cinema, mas que se confunde com a mesma), regressa a Paris, ao seu quotidiano e às histórias que a interpelam sem o uso de uma ótica turística. “Un Beau Matin”, aquela “bela manhã” de Sandra, é respondida com um grito de revolta perante a inconformidade de um desígnio indecifrável, porém, o resultado é silenciosamente delicado, Mia encontrou o equilíbrio da sua tristeza interiorizada, a consciência de que a morte é um ato natural e que os recomeços estão no virar da esquina. Como a doença degenerativa do seu personagem, nada nos soa estagnado, aliás, tudo se transforma … imprevisivelmente. Nesse efeito, o cinema de Mia transforma-se, deixando de lado a cinefilia de postal que o seu anterior filme fora, e partindo de regresso às suas inserções rohmerianas sem a possessão dos estados de graças rohmerianos. Quem sabe, a marca do seu cinema. 

Reviravoltas, por vezes, como a nossa Sandra, há que olhar para o passado como se olha em frente, nela poderemos reencontrar as nossas antecipadas respostas.