Travelling no buraco da agulha
Quando um travelling decidiu enquadrar os dedos de Emmanuelle Riva no plano da sua morte, o então crítico de cinema Jacques Rivette desmontou “Kapò” (Gillo Pontecorvo, 1960) num só adjetivo: abjeto. Com isso, decretou-lhe o mais profundo desprezo. As suas palavras sentenciaram a obra entre os cinéfilos, Serge Daney recusou-se a vê-lo, alegando que "mesmo sem ter visto Kapò, já vira Kapò", e uma legião seguiu-lhe o conselho, relegando um filme, na altura prestigiado, sobre o Holocausto para um dos nove círculos infernais cinéfilos.
Hoje, a abjeção evoluiu para uma estética e, sucessivamente, para uma vaga de realizadores que se proclamam provocateurs, amorais ou agentes do caos. É fácil recordar alguns em voga: Lars von Trier, Michael Haneke, Gaspar Noé, Ruben Östlund e, noutras épocas, até Pasolini. Debate-se e questiona-se este modus operandi de incomodar como arte basilar, e, transcrevendo as lendárias palavras do dramaturgo brasileiro Dias Gomes — "Toda a gente nasce para irritar alguém, e se não estás a irritar ninguém é porque não estás a fazer nada" —, o sueco Magnus von Horn (“Sweat”) procura inscrever-se nesse estatuto de "abjetor" de consciências. Tem resultado, os elogios acumulam-se com “The Girl with the Needle”, até à data detentor de uma nomeação ao Óscar de Filme Internacional, uma co-produção sueco-dinamarquês-polaca [representando o último país] que deseja intercalar uma efeméride mórbida e tornar esse encontro (a com uma assassina de bebés … podem sempre pesquisar na Wikipedia) como a sua força motriz.
Mas desviando da grande atração circense — ainda que haja literalmente um circo de aberrações pelo meio, onde mulheres barbudas, anões e desfigurados de guerra se amontoam num espectáculo deprimente e julgador —, encontramos uma plateia saída de uma Dinamarca marcada pelas mazelas da Primeira Guerra Mundial, há pouco tempo terminada. Entre o público, Karoline (Vic Carmen Sonne, “Godland”, "Holiday"), de olhos extasiados pelo cansaço e pela sua condição precária, costureira despedida após um relacionamento desaprovado com o patrão da fábrica, encontra-se ali, grávida e sozinha, curiosa perante os horrores, mas na verdade à procura do marido desaparecido.
As voltas da vida trarão outros caprichos e a protagonista, arrastada para tramas miserabilistas de cheiro pútrido, cruzar-se-á com a antagonista que ditará um novo tom a este neon-neorealismo de língua afiada — uma porno-miséria que rapidamente evoluirá para thriller de sugestões e sons agonizantes. Magnus von Horn estica ao máximo a tensão para captar a repulsa e o desconforto do espectador, sem nunca ceder ao explícito do género do terror, mas, ironicamente, exaltando o abjeto que sustenta a história, e, sobretudo, arriscando uma perturbadora empatia para com a vilã. Se bem que o circo obtém um simbolismo talhado à moral deste enredo, enquanto os monstros se escondem com máscara de “cara de gente”, os humanos são reduzidos aos seus trapos corporais, o início como alguns interlúdios remexendo em faces abstratas e distorcidas em sobreposições, criando ou tentando o único rosto, algo verdadeiramente e universalmente humano, o resultado é apenas um incómodo visual.
A preto e branco, como dita certa estética de requinte (Paweł Pawlikowski à cabeça) ou no miserabilismo formal que “Roma” escancarou porta adentro tal como Martim Moniz ao serviço do seu El Rei pela “reconquista” de Lisboa. Não há travellings de “Kapò”, mas há um travelling de beco a fazer comparação.