Trapaceiros em world tour
São vários os elementos ou características que nos facilmente identificam M. Night Shyamalan numa espécie de autor “perdido” do cinema de género; da recorrência temática da fé, a teatralidade do horror incutido ou dos constantes planos-perspectivas que seguem a ação com perigosa cautela. Na chegada deste “Trap”, somos ‘atropelados’ a um jogo duplo de uma das outras marcas autorais do seu cinema, o constante hino à paternidade.
O trailer, lançado à meses, deixava no ar o dilema, num abalado concerto de uma popstar, Lady Raven (interpretada e performada pela filha de Shyamalan, Saleka), olhamos de perto para um pai e a sua filha adolescente, a jovem de brilho encantatório perante uma fantasia pueril concretizada - a de assistir ao espetáculo da sua estrela-ídolo - e do outro, um homem na oportunidade de fortalecer laços afetivos com o seu “rebento”. Só que o concerto é um embuste musicado (há constantes paralelismos com o fenómeno da Taylor Swift), uma armadilha para capturar, por fim, um perigoso serial-killer cognominado de The Butcher, esse, que sem segredos é o protagonista, o tal progenitor. Shyamalan aposta nesta premissa o constantemente invocado “Un condamné à mort s'est échappé” (Bresson, 1956), enquanto nós, espectadores, cientes da má índole e vilania do “heroi”, somos desafiados em torcer pela sua fuga, testemunhando a sua criatividade ao encená-lo num plano perfeito e “sem espinhas”.
A câmara, como é da bitola shyamalaniana, incorpora esse olhar do fugitivo-encurralado, cismado pelos corredores vigiados por forças de seguranças e pelos constantes obstáculos que lhe vão surgindo, um hipotético panóptico foucaultiano, o pensamento do protagonista consolida com a do espectador, este mantém ao nível de reflexão do mesmo. É um exercício, ora esplendoroso na encenação - o filme assume como um gigantesco espéctaculo de música pop - e por sua vez reduzido a esse thriller de tendências B, com um regressado Josh Harnett a indiciar os avanços de Shyamalan naquele que fora um dos calcanhares de Aquiles (a direção de atores). É então que vemos esse gesto escondido, a de um pai (o do próprio realizador) a fornecer à sua filha o seu desejo realizado, enquanto expõe a ambiguidade dessa trama de relações e relações.
Contudo, o filme tende em ter um segundo ato em que troca de protagonismo, e deixa para trás o “jogo rato-e-gato” ali pomposamente orquestrado. Recordá-nos Wes Craven em momentos, nesse cansaço que é de persistir num só template, com isto ajoelhar-se no seu cognome e reputação, seguir e bajular um plot twist. Salienta-se que “Trap” não foi exibido à imprensa, que segundo se trovoa, como salvaguarda das surpresas encavalitadas que o filme obtém, encostando assim Shyamalan às estratagemas mercantis que Hitchcock executara tempos antes.
Pois, parece que não é na manutenção do “suspense” que o realizador influenciou-se no mestre. Em nome do twist, da reviravolta, ao género de autor, com riscos e arrojos, só por isso, “Trap” vale o interesse, as suas imperfeições soam-nos a testes no tempo e para o tempo.