Takes Berlinale 2025: cada um com o seu Mundo
Paul
Denis Côté refere-se ao mundo ansioso e depressivo sob o nome de Paul, partilhado por este homem canadiano imerso nas mesmas anomalias sociais. Porém, ao contrário dessa sociedade que se verga e prestigia elementos depreciativos e corrosivos, decide enfrentá-los através de um altruísmo simbiótico. Cleaning Simp Paul, como é tratado nos recantos da internet, confronta a sua condição com um ato de submissão: voluntaria-se para limpar casas de dominatrixes ou mulheres fetichistas, que o recompensam com outros devaneios sadomasoquistas e uma passividade onde a humilhação é apenas construção social.
Côté acompanha as jornadas deste homem disposto a tratar-se, como uma doença algures entre o terminal e o incurável, e é no seio destas mulheres, que procura uma vontade de ser útil e, nessa utilidade, encontrar uma noção de existência que muitos perseguem. Por vezes, roça territórios voyeuristas, “Paul” [o filme] parece buscar o choque na discrição, descortinando manias e fantasias materializadas, à semelhança de Ulrich Seidl na sua incursão pelas caves austríacas. Mas aqui, o confronto com a confortabilidade do convencionalismo torna-se na sua arma de arremesso.
As intenções de Paul [quer o filme, quer o protagonista] permanecem difusas, mas importa lembrar que a Humanidade nunca foi uma equação exata—não se reduz a fórmulas nem a matemática. Há por lá algo mais… inexplicável. Um documentário que conecta formatos, sempre atento às novas linguagens para lá da tela, ou, neste caso, das telas—fazendo desse vício intrínseco e virtual a sua fonte de inspiração.
Secção Panorama
L'Incroyable femme des neiges
Apropriando-se do título de uma obra anterior de Sébastien Betbeder, “Marie et les naufragés” (filme que contava com o futebolista Eric Cantona no elenco), podemos dizer que “L'Incroyable femme des neiges” carrega um sentido de naufrágio, de afundamento e deambulância pela corrente.
Tragicomédia com Blanche Gardin novamente envolvida em peripécias existencialistas (recordamos o seu personagem em “Tout le monde aime Jeanne”, de Céline Devaux), apresenta-nos uma aventureira que, após uma sucessão de encontrões e impasses na vida, parte para a Gronelândia em busca de uma criatura mitológica—algures entre o espírito divino e o Homem das Neves. Ela refere a aura sagrada desta entidade como a de um ser invisual, e de que forma os povos indígenas da região encontram a importância no não-visto do que somente naquilo que o olho humano capta. Agora, se há um valor oculto em “L'Incroyable femme des neiges”, teríamos de procurá-lo na imensidão da neve ou nos gags que roçam a violência e o embaraço. O que importa é que a personagem de Gardin é de difícil empatia e escassas simpatias, mas não nos devemos restringir à nossa reconhecibilidade, porque é no difícil entendimento das suas devoções e dilemas que somos desafiados a penetrar num filme que, como já debitei, oscila entre o naufrágio e o salva-vidas.
É que de existencialismos disfarçados de “autoajuda” e epifanias o cinema já se encontra saturado, e as avalanches desses temas, tal como as nuances deste novo filme de Betbeder, não ajudam em nada. Diríamos, então, que se trata de um spin-off mais lamechas do seu “Le Voyage au Groenland” (2016).
Secção Panorama
Sorda
Através da sua anterior e homónima curta-metragem, “Sorda” (2021), Eva Libertad encontrou a continuidade para explorar na sua primeira longa, seguindo os trilhos do casal Ángela/Dário—ela, surda-muda; ele, ouvinte—que, para consolidar a relação, decidem aventurar-se na maternidade/paternidade. Porém, a criança nasce ouvinte, o que dificulta o vínculo afetivo com Ángela, empurrando-a para um magnetismo quase autodestrutivo.
Com “Coda”, esse esquecível vencedor do Óscar (remake do igualmente e exageradamente meloso “La Famille Bélier”), a popularizar um formato familiar requintado nos streamings desta vida, Sorda [longa] não ostenta essa apaziguação ou amenização dos dramas humanas, o concentra em dilemas e interações inconclusivas que, já no segundo ato, encontra uma razão de existência com um belíssimo ensaio sensorial, o qual a perspetiva sonora de Ángela. A sua surdez, o seu mundo familiar e de um emudecimento confortável. Talvez seja nesse efeito que o filme adquire a sua emancipação estilística face ao drama convencional—ainda assim, uma convencionalidade plena, sustentada por atores (Miriam Garlo é uma tour de force) com vida para mostrar.
Secção Panorama
Fwends
Após o seu estimado trabalho com “Peeps” (2019), curta que retratava duas crianças a deambular por um centro comercial, a australiana Sophie Somerville mantém uma postura de imposição de um cinema que sopra na direção do vento. Aqui, tudo soa espontâneo, natural, como meras pedestrialidades, aliás, é nas caminhadas sem destino que “Fwends” vibra na sua compostura.
Duas amigas, separadas por quilómetros e quilómetros, agendam um fim de semana de conexão em Melbourne, o sprint constante do lufa-lufa serve de "conversa em dia", enquanto as atrizes (Emmanuelle Mattana, Melissa Gan) percorrem uma cidade que as abraça ao ponto de proclamar-se personagem própria. Nada há de estranho neste naturalismo: Richard Linklater já explorava tais causas nos primeiros “Before” (“Sunrise” e “Sunset”) e, muito antes disso, Jean-Paul Belmondo convencia Jean Seberg para um dos seus golpes “amorosos” (“À Bout de Souffle”, 1960), ou a narrativa nunca pausada na descida pela avenida em “Adieu Philippine” (Jacques Rozier, 1962). Somerville, por sua vez, fascina-se com essa espécie de "cinema de rua", embebido na ocasião e no acaso, transformando essa movimentação na sua entrada de pés juntos para uma introspeção quase autoficcional.
“Fwends” é, na forma, essa alma viva e natural, enquanto, na teoria, um filme que se desenha a partir de uma amizade disfuncional – disfuncionalmente normalizada. Uma crónica sobre uma sociedade que se entende mais narcisista, acelerada e, paradoxalmente, distante, mesmo que a tecnologia dite o contrário: um mal-estar fingido, talvez. Um fim de semana onde as diferenças confrontadas nada mais servem senão à mera banalização. Eis um pequeno filme sobre pequenos, mas igualmente grandes, assuntos.
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