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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Falando a uma só voz(es): Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, realizadores de "Estou Aqui"

Hugo Gomes, 19.04.25

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"Estou Aqui", o título, ou talvez o manifesto de quem deseja fazer-se ouvir perante um ruído social, diante da sua condição, da sua sociedade, da sua própria intenção. Em 2020, no auge do confinamento provocado pela pandemia de COVID-19, a Câmara Municipal de Lisboa decide activar o maior pavilhão gimnodesportivo da cidade, o Casal Vistoso, para albergar temporariamente desde pessoas em situação de sem-abrigo até outros “seres” em condição supra-precária. No seio dessas operações de reabilitação, dois alunos de documentário partem em voluntariado, num gesto que viria a culminar neste filme: um objecto que procura, nestes corpos (e em tantas das suas não-presenças), algo habitável. Algo que se expanda para lá do mero acto de solidariedade.

Depois de Tiago Hespanha — produtor, realizador e tutor —, é agora a vez da dupla de realizadores, a húngara Zsófi Paczolay e o francês Dorian Rivière, aceitar o convite do Cinematograficamente Falando... para falar sobre este projecto, como também o desafio de responderem a uma só voz, tal como haviam feito em "Estou Aqui".

O filme documenta um abrigo que, apesar das dificuldades, conseguiu estabelecer um raro sentido de comunidade no panorama social português. Como foi lidar com a transitoriedade deste projeto, sabendo que podia desaparecer a qualquer momento?

É muito bonito da tua parte destacares essa qualidade do projeto, é algo que só percebemos verdadeiramente mais tarde, depois de terminarmos as filmagens, quando os coordenadores originais tiveram de sair e o abrigo foi entregue a outras organizações. Com o tempo, o projeto foi perdendo a sua essência, até quase desaparecer por completo da cidade. Na altura, não tínhamos plena noção de quão precioso e fugaz era tudo aquilo.

Quando voltámos, um ano depois, para visitar a versão "permanente" do abrigo, que já tinha mudado imenso, sentimos que o espírito era outro. A emergência provocada pela pandemia abriu subitamente um espaço, na cidade e na sociedade, onde se reuniram condições muito específicas que tornaram este lugar único possível. Era uma sociedade em choque com a súbita e profunda disrupção da pandemia, uma autarquia que respondeu com rapidez, e uma coordenadora visionária e multifacetada, a Teresa Bispo, com a sua equipa extraordinária, que conseguiu pôr tudo a funcionar com uma rapidez e um cuidado incríveis.

E também havia o estado emocional das pessoas em situação de sem-abrigo na altura — pessoas que, em circunstâncias normais, talvez não tivessem optado por entrar num abrigo, mas que, pelo medo e pela incerteza, decidiram arriscar. O facto de o abrigo estar instalado num pavilhão desportivo, onde todos partilhavam um espaço comum, também teve um impacto. Aquilo parecia um acampamento: não havia espaços privados, e todos tinham de colaborar nas tarefas diárias. Isso gerou um sentido de comunidade muito forte. As pessoas criaram laços profundos entre si.

Esse sentimento não se transportou para o abrigo permanente. Em parte porque o espaço já não era tão interligado, e os rituais do dia-a-dia eram diferentes. Olhando para trás, percebemos que foi mesmo um momento muito especial nas nossas vidas.

“Estou Aqui” observa a realidade da população em situação de sem-abrigo num contexto de pandemia, mas a crise da habitação e a marginalização são problemas que já existiam muito antes da COVID-19. Sentiram que este abrigo foi um verdadeiro experimento com potencial para soluções futuras, ou apenas um alívio temporário?

Sentimos que foi mais do que um alívio temporário, foi um ponto de partida especial, que mostrou o potencial para soluções de longo prazo. Não só no que diz respeito a futuros abrigos, mas também a nível social, enquanto comunidade. O que tornou este abrigo tão poderoso foi a forma como os coordenadores o geriram.

Para nós, o valor mais importante deste projeto é que ele trouxe soluções reais, mesmo para os problemas mais complexos. Mostrou que, com vontade e ação por parte de indivíduos, num contexto de comunidade inclusiva e horizontal, é possível fazer a diferença. Durante a pandemia, todos estávamos com medo, numa enorme incerteza, e por causa disso muitas barreiras habituais foram ultrapassadas. A cidade teve de responder a um problema que, em circunstâncias normais, costuma evitar ou não consegue enfrentar devidamente.

De repente, surgiu um espaço. Havia algum (embora limitado) financiamento - vindo do município, de organizações, de empresas grandes e pequenas - e tudo isso acabou nas mãos de trabalhadores da Câmara Municipal de Lisboa que tinham vontade genuína de ajudar e uma visão clara do que era preciso fazer. Um dos pilares dessa visão foi a estrutura horizontal do projeto, um modelo não hierárquico, onde as responsabilidades eram partilhadas e todas as vozes contavam. Havia uma transparência real entre a equipa e os residentes: todos comiam a mesma comida, todos eram bem-vindos, independentemente do passado ou da situação de vida. Essa abordagem criou confiança, e com essa confiança, abriu-se uma dimensão rara.

Uma dimensão de cuidado, onde o estar junto fazia sentido, onde a cura era possível, e onde a solidariedade e a curiosidade podiam crescer.

Zsófi Paczolay e Dorian Rivière

O documentário acompanha Tiago e Plácido como figuras centrais desta comunidade. O que vos atraiu especificamente nas histórias deles, e até que ponto sentiram o peso da responsabilidade em retratá-los de forma justa?

Inicialmente, imaginávamos o filme como um retrato do abrigo em si, como funcionava, e como seria a experiência de alguém desde a chegada até à saída. Mas desde cedo percebemos que seguir alguém em tempo real seria demasiado intrusivo. As pessoas estavam a atravessar momentos muito íntimos e delicados. Quando apresentámos a ideia do filme à comunidade, o Tiago e o Plácido foram dos primeiros a aproximar-se de nós, mostraram abertura e curiosidade, e ajudaram-nos a mover-nos com cuidado naquele espaço. O que nos atraiu verdadeiramente foi a forma como participavam ativamente na gestão do abrigo.

O Tiago estava sempre disponível para assumir responsabilidades, especialmente com reparações e tarefas técnicas. Ele partilhava connosco o que ia vivendo, com uma abertura que era rara. A história dele tocou-nos muito, porque vinha de muitos anos a viver na rua, e agora víamos nele uma esperança real nesta nova estrutura, enquanto começava a fazer planos para o futuro. A forma como refletia sobre a sua própria vida era rica e generosa, o que nos fez querer acompanhá-lo mais de perto. O Plácido, por outro lado, revelou-se um verdadeiro performer, cheio de energia, sempre o primeiro a ajudar, a limpar, a reorganizar o espaço. Era muito divertido, adorava brincar connosco e com os outros, mas também conseguia mergulhar fundo em si próprio e contar histórias da sua vida que nos impressionaram profundamente. Tinha uma força e um orgulho que nos tocaram desde o início.

À medida que ficávamos mais tempo e continuávamos a filmar, eles foram-se tornando naturalmente as personagens principais do filme, a representar-se a si próprios, nos seus próprios termos. Com o aprofundar da relação, eles também se envolveram mais com o projeto do filme. Sentíamos todos que havia ali uma missão partilhada: deixar um registo daquele lugar e da sua experiência, independentemente do que viesse depois. O nosso processo foi sempre baseado na confiança. Íamos verificando com eles se queriam partilhar determinadas coisas, se se sentiam confortáveis com a nossa presença em certas situações. E à medida que a relação crescia, tornou-se também importante estar lá para apoiar, nos momentos mais difíceis. A generosidade deles acompanhou-nos em todo o processo e deu-nos força para assumir a responsabilidade de os retratar com o máximo de respeito e justiça.

Na fase de montagem, trabalhámos com a editora Joana Góis, cuja sensibilidade para histórias humanas foi essencial. Filmámos durante mais de seis meses, captando inúmeros elementos e pessoas que poderiam ter enriquecido ainda mais o retrato daquele espaço. Embora o foco principal tenha ficado no Tiago e no Plácido, também documentámos o trabalho da Teresa na coordenação do programa e aspetos únicos do abrigo — como a liderança transparente, as decisões participadas e os rituais coletivos do dia-a-dia.

Ao optar por centrar a narrativa neles, significou, infelizmente, deixar de fora muitos momentos e histórias valiosas de outros participantes. Essa dor diária durante a montagem foi necessária para manter a clareza da narrativa. A forma como o Tiago e o Plácido aparecem no filme — com dignidade e cuidado — deve-se, em grande parte, ao trabalho preciso e sensível da Joana. Chegar à versão final levou mais de um ano de montagem rigorosa.

A presença da câmara num espaço tão delicado poderia ter criado uma barreira entre os realizadores e as pessoas retratadas. Como foi o processo de construção de confiança e integração nesta comunidade?

Chegámos ao pavilhão desportivo do Casal Vistoso no final de abril de 2020, mesmo no início da pandemia, com a intenção de sermos voluntários. Queríamos conhecer e apoiar pessoas em Lisboa de forma direta e significativa. Desde o primeiro dia, ficámos profundamente tocados e inspirados por aquele lugar. Era algo que nunca tínhamos vivido antes. Partilhávamos refeições, histórias, gargalhadas, cigarros; ouvíamos, jogávamos, conversávamos, e sentíamos o pulsar de algo raro. Durante os dois primeiros meses, nem sequer pensávamos em filmar, parecia impensável apontar uma câmara a pessoas num momento tão vulnerável.

Mas, aos poucos — até porque estávamos a estudar cinema documental no programa DocNomads — a ideia começou a tomar forma. Quando a partilhámos com a Teresa, ela mostrou-se entusiasmada e encorajou-nos a apresentar a proposta à comunidade, durante um dos encontros regulares. Explicámos as nossas intenções, convidámos à colaboração, e deixámos claro que qualquer preocupação era bem-vinda e deveria ser partilhada.

A resposta foi profundamente comovente. Muitas pessoas expressaram que era importante serem vistas. A partir daí, o processo foi acontecendo de forma gradual. Uns dias continuávamos como voluntários, outros dias filmávamos. Com o tempo, passámos a fazer parte da “mobília” do lugar. Claro que, por vezes, chegavam pessoas novas que não sabiam quem éramos ou que não queriam ser filmadas, e isso foi sempre respeitado. Um desses momentos até acabou por entrar no filme, refletindo também as nossas próprias dúvidas sobre presença e percepção.

Foram situações delicadas, e mantivemo-nos sempre atentos, a fazer perguntas a nós próprios: Como honramos a confiança que nos foi dada? Como evitamos causar qualquer dano? E como podemos contar esta história de forma a respeitar todos os que fazem parte dela?

Apesar de toda a resiliência demonstrada pelos protagonistas, o filme também sugere uma certa inevitabilidade do fracasso institucional. Enquanto cineastas, qual foi o maior dilema ético: captar a esperança ou expor a negligência sistémica?

O nosso objetivo foi retratar a complexidade de uma situação onde a esperança e o fracasso coexistem. O ponto de partida foi, de facto, a sensação de falência sistémica — o subfinanciamento crónico dos programas sociais, a falta de uma política de habitação coordenada — realidades que nos rodeiam constantemente. Mas o que mais nos inspirou neste projeto foram os momentos de resistência e resiliência, tanto por parte das pessoas que viviam no abrigo como das que lá trabalhavam. É aí que reside algo poderoso. A negligência institucional pode estar sempre presente e continua a estar. Mas há sempre algo que podemos fazer. Podemos escolher como responder. Podemos influenciar quem nos rodeia.

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Foi exatamente isso que a Teresa e a Madalena fizeram, de forma extraordinária. O amor e a confiança que trouxeram moldaram profundamente o ambiente do abrigo. No fim de contas, talvez essa seja a ação mais significativa que se pode ter: levar cuidado a um sistema quebrado e mostrar o que ainda é possível dentro dele.

Mantendo o foco na ética, tendo consciência do poder que uma câmara de cinema carrega, houve preocupações ou reflexões específicas sobre como filmar estas pessoas em situação de sem-abrigo?

Como já referimos, os primeiros meses que passámos no abrigo foram dedicados ao voluntariado: servir cafés e refeições, conversar com as pessoas, simplesmente estar presentes. Quando, mais tarde, nos apresentámos como realizadores, alguns até brincaram: “Vocês deviam mesmo fazer um filme sobre este lugar.” Mas, nesse momento, a ideia de filmar ainda nos parecia contraditória. Estávamos muito conscientes da história, e do risco, da forma como pessoas em situações precárias foram tantas vezes retratadas: com pena, julgamento moral, ou por um olhar distante.

Sentimos que precisávamos de aprofundar a relação com o lugar antes de levantar uma câmara. Fomos muito inspirados pelo trabalho do realizador português Pedro Costa, especialmente pela sua relação prolongada com comunidades marginalizadas e pela sua sensibilidade às dinâmicas de poder na imagem. O filósofo Jacques Rancière escreveu sobre essa abordagem, destacando como Costa desafia a divisão tradicional entre quem fala e quem é observado. Em vez de reforçar hierarquias, ele cria espaço para que as pessoas se expressem nos seus próprios termos.

Esse entendimento moldou a nossa própria consciência: refletir constantemente sobre o nosso olhar, a nossa posição, e o que significa representar o outro. As nossas experiências anteriores em trabalho social e em projetos performativos em contextos diversos também contribuíram. São projetos que exigem uma presença prolongada e relações sustentadas, que não terminam com o fim da filmagem. Vimos as conexões que criámos ali como algo que ultrapassava o projeto, não queríamos que fossem relações extrativas ou temporárias.

Ao ouvirmos tantas histórias, fomos confrontados com o nosso próprio privilégio: a sorte de não sermos nós a viver ali naquele momento. E, logo no início, ao discutirmos a ideia do filme com a Teresa, ela mostrou entusiasmo, mas também nos alertou: “Há muitas histórias difíceis aqui, mas este filme não deve focar-se apenas nelas, deve mostrar o quotidiano e a possibilidade de mudança.” Essa frase teve um grande impacto e fez-nos deslocar o foco para o cuidado, a transformação, e a intenção, mais do que para a dor individual.

Um dos métodos que surgiu naturalmente foi tratar o filme como uma espécie de reencenação colaborativa. Começámos com cenas inspiradas em rotinas que observávamos, com pessoas como o Tiago e o Plácido a participarem ativamente. Expúnhamos as nossas ideias, eles propunham os melhores momentos para filmar, escolhiam o que queriam dizer. Por exemplo, uma das primeiras sequências que filmámos foi a “chegada” do Tiago ao centro. Ele recriou esse momento, preparando a mochila com um cobertor, como se tivesse acabado de chegar da rua. Foi tudo pensado em conjunto, com base nas suas memórias.

Filmámos também atividades que para eles tinham significado: arrumar, consertar coisas, manter o espaço, formas de mostrar que se importavam. Estas pequenas ações foram a base da nossa integração: não éramos observadores passivos, mas participantes num quotidiano que nos acolheu. Aos poucos, passámos a filmar momentos coletivos - refeições, conversas, jogos, reuniões de grupo - onde se revelava um forte sentido de ligação e agência.

Houve um momento particularmente tocante em que os residentes, sentados em círculo, davam feedback sobre o programa. Pessoas que tantas vezes foram privadas de voz estavam agora a moldar algo juntas. Decidimos não filmar momentos aleatórios da vida, nem situações de dor, nem planos voyeuristas. Escolhemos focar-nos em situações com um propósito claro, que mostrassem como funcionava a comunidade, o esforço diário para mantê-la viva, e como era o envolvimento de cada um. As decisões éticas que tomámos moldaram a própria forma do filme: o ritmo narrativo, o foco visual. Mesmo assim, a pergunta permanece: será que podemos realmente mostrar este filme? O que significa, para cada pessoa, aparecer nele? E que custos invisíveis poderão surgir (agora ou no futuro) por essa exposição?

Não há uma resposta definitiva ou segura. Nenhuma reflexão ética ou cuidado formal dissolve completamente a complexidade de representar alguém. Só podemos continuar presentes nesse desconforto, manter-nos responsáveis, e continuar a perguntar: o que significa filmar alguém?

Falando do modelo Housing First, existe uma perceção de que estas soluções "experimentais" têm pouco espaço numa Europa onde o mercado dita as regras. Sentem que este filme pode funcionar como um manifesto político por um modelo de habitação mais humano?

Seria maravilhoso se o filme pudesse servir como um manifesto político, e, na verdade, foi algo que procurámos conscientemente. Estruturámos a narrativa com o objetivo de desafiar a ortodoxia económica dominante que encara a habitação como uma mercadoria de mercado, em vez de um direito fundamental. Durante a pandemia, muitas rotinas e restrições do sistema capitalista foram temporariamente suspensas, e isso permitiu intervenções públicas que, em tempos normais, enfrentariam resistência burocrática ou ideológica.

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A filosofia do abrigo de Casal Vistoso aproximava-se bastante do modelo Housing First — que prioriza o acesso imediato à habitação, sem pré-condições, mesmo tendo surgido num contexto de emergência. O que esta experiência demonstrou, e o que esperamos que o filme articule com clareza, é que a falta de habitação não é uma inevitabilidade: é uma escolha política. Os recursos e o conhecimento para enfrentar o problema existem. Quando a Teresa e a sua equipa receberam um mínimo de recursos e alguma autonomia, criaram algo que funcionou. Isto mostra que o principal obstáculo não é prático, mas ideológico.

Queremos amplificar as vozes por detrás destes programas, porque o que elas estão a fazer comprova que soluções eficazes e humanas são possíveis, sobretudo num momento em que cada vez mais pessoas enfrentam dificuldades no acesso à habitação. O filme não documenta apenas um abrigo; documenta um sistema de valores alternativo que funcionou dentro dos limites da nossa ordem social atual.

O mais poderoso é a abordagem em si: oferecer ajuda real e concreta, que não se limita a um tecto. É também o acompanhamento, o cuidado contínuo, o reconhecimento da complexidade de cada pessoa: a saúde, o bem-estar mental, o sentido de pertença, a capacidade de trabalhar e de se sentir parte significativa de uma comunidade. São esses valores, essas práticas, que esperamos que o filme consiga trazer para o debate público como algo vivido, possível e merecedor de ser replicado. Uma alternativa concreta às abordagens individualistas e orientadas pelo mercado, que já provaram falhar perante a insegurança habitacional crescente na Europa.

O documentário adota uma estética observacional à la Wiseman, evitando intervenções diretas. No entanto, houve momentos em que sentiram a necessidade de intervir na realidade que estavam a filmar, ou mantiveram sempre uma postura estritamente documental?

Usámos diferentes abordagens durante as filmagens, incluindo reencenações e, de facto, métodos observacionais na sua maioria. Também houve muitos momentos em que conversávamos diretamente com o Tiago ou o Plácido, trocas que surgiram de forma natural e humana. Durante a edição, explorámos o uso de todos esses elementos, mas, eventualmente, percebemos que a linguagem observacional servia melhor o filme. Isso significou que tivemos de abrir mão de uma certa intimidade proporcionada pelas nossas conversas, mas, por outro lado, permitiu que o foco permanecesse no programa e nas trajetórias dos protagonistas, em vez de centrarmos a atenção em nós, enquanto cineastas. Pareceu-nos mais honesto dessa forma, permitindo que as suas ações e palavras falassem por si mesmas.

Num momento em que a crise habitacional afeta cada vez mais pessoas, vê "Estou Aqui" como um filme ligado a um momento específico, ou como uma representação atemporal de um problema estrutural que continuará a repetir-se?

Acreditamos que "Estou Aqui" capta um momento crucial que reflete uma tendência mais ampla nas nossas sociedades capitalistas modernas: o agravamento da crise habitacional e a crescente falta de resposta à situação dos sem-abrigo. A epidemia de COVID foi apenas um "acelerador", um momento de crise que trouxe à tona uma realidade subjacente que já vinha a piorar há anos. Estivemos no lugar certo, na altura certa, para testemunhar isso: uma forte vontade de encontrar respostas alternativas para a negligência sistémica, possibilidades de soluções conscientes e a longo prazo. 

Nos tempos que pareciam mais desesperançados, nasceu uma comunidade que propôs uma metodologia crescente e sustentável. Insistimos no termo "metodologia" porque o que aconteceu naquele lugar foi muito bem pensado e organizado ao longo de mais de um ano de existência; definitivamente não foi uma questão de sorte ou acaso. O programa Housing First fez parte de toda uma metodologia inovadora, apoiada e aprimorada pelo programa, que tentámos transmitir através do filme. Por exemplo, esse programa não foi adequadamente apoiado e financiado nos últimos anos, embora um relatório de 2016 da Comissão Europeia conclua que os resultados foram muito bem-sucedidos. Relatórios mais recentes continuam a apoiar o Housing First como uma solução significativa e sustentável. 

Desde que a iniciativa Casal Vistoso foi encerrada, em 2021, não foram fornecidas soluções comparáveis em Portugal. Tudo aponta para uma falta de transparência e vontade política em relação a este problema na Europa, e com as mudanças políticas e os tempos vindouros, a situação só tende a piorar.

Em relação aos novos projetos, irão continuar como dupla ou seguirão caminhos diferentes?

A pandemia foi um momento único para nós: estávamos a viver juntos em Lisboa, e essa experiência partilhada levou-nos naturalmente a fazer voluntariado e, eventualmente, a fazer este filme juntos. Hoje, vivemos em países diferentes e não temos nenhum projeto cinematográfico conjunto planeado no momento. Estamos a explorar os nossos próprios caminhos pessoais, a ver onde a vida nos levará a seguir.

"A câmara é sempre um instrumento de poder": uma conversa sobre a dignidade em "Estou Aqui" com Tiago Hespanha

Hugo Gomes, 11.04.25

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Em 2020, com o primeiro confinamento devido ao COVID-19, que instaurou um clima de medo e inquietação, o maior pavilhão desportivo da cidade de Lisboa transformou-se num abrigo de emergência para sem-abrigos e outras situações de precariedades. No seio dessa “experiência” municipal, encontram-se dois alunos de documentário [Zsófi Paczolay e Dorian Rivière], que, pela sorte da ocasião, se convertem em realizadores. Decidem pegar numa câmara e registar um projeto solidário. O que captam é mais do que uma mera observação: há ali pessoas, e estas tornam-se o centro de criação e os desafios artísticos para estes jovens, ainda verdes na cadência do Cinema.

“Estou Aqui”, documentário celebrado na última edição do Doclisboa [Prémio Escola - Prémio ETIC para Melhor Filme da Competição Portuguesa], chega às salas de cinema com uma proposta humanista, mas também inquisitiva, em relação à natureza deste espaço, agora devolvido ao seu propósito original, e ao projeto, que, infelizmente, se reduz a uma ideia não-praticável.

Em conversa com o produtor Tiago Hespanha, também realizador da casa Terratreme, passeamos pelo pavilhão inexistente, numa discussão sobre criatividade, ética e humanização, com ainda espaço para coletividades.

Quero começar pelo facto do Tiago não ser realizador do filme, mas enquanto um dos fundadores da Terratreme possui um trabalho bastante próximo ao projeto, visto que a natureza da produtora é quase de colectivo. Podemos designar a Terratreme nestes termos, mais colectivo de realizadores do que produtora?

Na verdade, diria que somos uma produtora que nasce de um coletivo: ou seja, um coletivo de realizadores-produtores. Somos cinco integrantes fixos, aos quais se junta um coletivo mais amplo de realizadores com quem colaboramos frequentemente. No fundo, somos uma empresa de produção gerida por cinco, ou talvez doze, produtores.

Refiro-me a essa ideia de coletivo porque, em uma entrevista com a Susana Nobre, também produtora e realizadora, ela destacou bastante essa natureza da Terratreme. Ela mencionou que, por exemplo, um realizador pode colaborar brevemente em um projeto, depois trabalhar na montagem de outro, e assim se constrói uma espécie de comunidade cinematográfica. No entanto, este esclarecimento se dá pelo facto de o Tiago estar diretamente envolvido com o projeto [“Estou Aqui”], embora o seu nome não figure diretamente nos créditos de produção do filme.

Nós assinamos sempre os filmes em conjunto, como Terratreme e com os nossos nomes de produtores. O que acontece com frequência é que, devido ao grande número de nós e aos muitos filmes que produzimos, há sempre um dos sócios-produtores que está mais envolvido num filme ou num conjunto de filmes, mas não em todos, ou seja, eu não acompanho todos os projetos e filmes em detalhe. 

Este caso, em particular, não é inédito, mas é especial. Também dou aulas no mestrado internacional em Documentário, o DocNomads, que é uma parceria entre a Universidade Lusófona, a SZFE (de Budapeste, na Hungria) e a LUCA School of Arts, em Bruxelas. Este mestrado reúne alunos de todo o mundo e tem a duração de dois anos e foi nesse contexto que conheci a Zsófi [Paczolay] e, mais tarde, o Dorian [Rivière], alunos do mestrado em momentos diferentes. Este projeto nasceu nesse ambiente: começou como um trabalho de graduação da Zsófi, em 2020. Na fase final do programa, cada aluno tem um mentor, um professor que acompanha o seu projeto, e, neste caso, fui eu. Por isso, acompanhei este filme desde a sua génese.

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"Estou Aqui" (Zsófi Paczolay e Dorian Rivière, 2024)

Mas tendo conhecimento que este filme acontece em 2020 — um ano bastante sui generis, assim por dizer — também houve um certo timing para fazer este projeto. Ou seja, eles iam trabalhar a sua proposta de graduação em 2020, acontece a pandemia, dá-se as mudanças sócio-políticas que bem sabemos e sobretudo no nosso quotidiano, e com esse testemunho   “encontraram o filme”?

O que aconteceu foi o seguinte: a Zsófi chegou no final de fevereiro desse ano e, como todos os colegas, iniciou o seu projeto de graduação, começou a pesquisa e, poucas semanas depois, deu-se o confinamento. Todos os seus planos, que nesse momento ainda estavam numa fase muito inicial, caíram um pouco por terra, porque, de repente, todas as pessoas tiveram de ficar fechadas em casa. O Dorian, que ficou confinado com ela nesse momento, expressou-me a necessidade de sair de casa e encontrar as pessoas que, justamente, não tinham casa para se fechar. Havia aquele slogan propagado do "fique em casa", mas, depois, havia as pessoas que não a tinham. Diante dessa preocupação, falámos sobre isso intensamente. 

Na altura, uma amiga minha estava a fazer voluntariado no projeto do Casal Vistoso, no pavilhão desportivo, e falou-me sobre o projeto municipal. Então, propus a ideia: "Tenho conhecimento desta experiência, conheço pessoas que estão lá dentro e tenho contacto com elas." A Zsófi e o Dorian aceitaram e foram para o Casal Vistoso fazer voluntariado. Mas, naquela altura, ainda não havia qualquer ideia de filme.

Não havia ideia, mas havia uma certa observação.

Ela tinha que fazer um filme, mas todos os processos foram interrompidos, não é? Foi para o Casal Vistoso como voluntária e ao fim de duas a três semanas — não sei ao certo, mas foi relativamente rápido — falámos, perguntei-lhe como é que estava a ser o dia-a-dia ali, etc. E foi nessa mesma conversa que se começou a definir a ideia de propor ao projeto Casal Vistoso filmar e fazer um filme a partir daquela experiência. A proposta foi aceite, eles deixaram de ser voluntários e passaram a ir como realizadores.

Isto começou em março de 2020, e depois a Zsófi terminou o mestrado. Houve um ligeiro atraso justamente por causa do confinamento e em vez de acabarem em julho, acabaram em setembro, mas o projeto não acabou nessa altura. Eles continuaram a filmar já depois de ela ter acabado a graduação, mais tarde entendemos que aquele filme atravessava os limites temporais. Havia algumas características dos filmes de graduação: têm que ter uma determinada duração - não podem passar os 24 minutos - e são produzidos num determinado espaço de tempo. Este, pelas suas características, atravessava isso, então decidimos continuar a trabalhar juntos. Continuaram a filmar até início de 2021, quando o projeto saiu do Casal Vistoso. Tentaram filmar até ao final, mas acabaram mais a seguir.

A minha questão também com este filme — e com o que ele levanta — é o facto de aquilo ser um abrigo ou, vamos dizer, uma espécie de abrigo provisório para pessoas em condições de sem-tecto ou extremamente precárias. Há também uma questão, um debate ético: se vamos filmar estas pessoas e de que maneira vamos filmá-las, porque muitas delas, claro, nem querem ser filmadas. Isso levanta também um ponto — claro, não sei se é a melhor pessoa para responder, talvez os alunos — mas na Terratreme também têm um filme que se chama "A Morte de uma Cidade", do João Rosas, e nele recordo de uma frase: “a câmara é uma arma de poder”. Neste caso, sempre sentiu — orientando estes realizadores, que vamos já chamar de realizadores — houve essa questão de poder? Ou se houve uma forma de mediar o que se podia filmar e o que não se podia filmar, em honra da dignidade humana? 

A câmara é sempre um instrumento de poder. Em todas as situações, e não é nesta em particular. O que acontece nesta é que as pessoas que estavam à frente da câmara encontravam-se numa situação de maior fragilidade, porque estavam dependentes de uma estrutura para garantirem as suas necessidades básicas. Claro que essa foi uma questão durante todo o processo, desde logo como é que se entra, e por isso é que também fiz questão de explicar este processo, porque ele vem de uma experiência, de uma presença diária ali da Zsófy e do Dorian enquanto voluntários. Portanto, é aí — ainda antes de pensarem fazer um filme ali — que eles começam a relacionar-se com as pessoas, tanto as em situação de sem-abrigo que estavam ali a viver, como as pessoas da coordenação do projeto — porque isso depois é uma outra conversa que se pode ter, há muita gente a circular ali, há ali muita coisa a acontecer. Este estabelecer de laços, conhecer as pessoas, ser reconhecido, é fundamental para o que vem a seguir. Quando há uma mudança de estatuto da relação deles, e eles passam a vir com a câmara, é claro que tudo muda.

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"A Morte de uma Cidade" (João Rosas, 2022)

Há outro instrumento de mediação dessa relação, que é a câmara, e, portanto, há que reafirmar os termos dessa relação com cada pessoa. Cada pessoa filmada tem que autorizar a filmagem, mas isto é feito de uma forma muito mais orgânica, porque já havia um conhecimento mútuo. Portanto, é mais fácil, os limites  e as intenções já são conhecidos de alguma forma. É mais fácil fazer essa gestão, porque é muita gente. Aliás, há uma cena no filme em que há uma pessoa que diz, em off, que foi filmada sem saber. Essa cena não está no filme por acaso. Está porque numa situação como aquela, como em qualquer situação, estar a fazer um “filme na rua”, nem sempre é possível ir perguntar às pessoas se podemos filmá-las ou não. Porque a pessoa passou ou apareceu numa reunião que já estávamos a filmar, como é o caso no filme — aquelas assembleias — e à hora de início da assembleia, quando se coloca a questão, não está lá toda a gente. Portanto, há pessoas que se vão somando.

Não quero dizer que essa conversa não possa ser tida a certo momento da filmagem, ou no final, ou num momento posterior, que foi o que aconteceu naquele caso. Não acho que seja muito diferente de outras situações de filmagem. A questão da ética é muito curiosa porque não há propriamente um manual. Existe nas nossas vidas pessoais também. Nós sentamo-nos aqui os dois a conversar e não estabelecemos um pacto: “vou fazer estas perguntas”, “vou responder desta maneira”. Nós vamos nos entendendo. E isso tem a ver com uma ética que é muito pessoal e que se transporta para quando fazemos filmes que vivem da subjetividade do autor, estamos a trabalhar com a ética dele e das relações, da forma como ele estabelece as mesmas. Não há propriamente um manual para isso.

O que você está-me a querer dizer — e de certa forma concordo — é que nenhum filme é verdadeiramente objetivo.

Absolutamente! Nenhum filme é objetivo.

Deixa-me só fazer uma ponte, vi este filme no DocLisboa, também com outro filme que vocês [Terratreme] vão lançar pouco tempo depois, que é “O Palácio dos Cidadãos” (Rui Pires, 2024), e com ambos, noto uma questão de estética observacional para os diferentes espaços, mas sentimos em todo o lado que não é objetivo, não é uma coisa imparcial o que se está a fazer. Mais evidente em “Estou Aqui”, um bocadinho mais subtil, exigindo interpretação, em “Palácio dos Cidadãos”. Por isso é que gosto destas questões sobre ética, porque, a nível do documentário, é um debate que leva-nos a algumas rasteiras, de certa forma.

É totalmente isso, ou seja, a objetividade não existe. A neutralidade não existe. A partir do momento em que se liga uma câmara e se entra com uma câmara, tudo mudou. Por isso é que disse: estamos a falar de filmes que assentam na subjetividade do autor. É a sua visão, a sua relação com aquela realidade, com aquelas pessoas, com aquele contexto e é a forma como representa isso. Que será uma para aquela pessoa e outra para a pessoa ao lado, que vê as coisas de forma diferente — como em todas as situações da vida. Isso é um ponto de partida.

Gostei dessa ideia do autor, porque falamos no singular, mas este filme é realizado por duas partes. Isso é um desafio também na busca dessa perspetiva autoral.

Sim, mas atenção: são poucos os filmes que se fazem a solo. Falamos no autor, mas o autor não quer dizer que seja uma pessoa que faz as ‘coisas’ sozinha. No cinema — e na maioria dos filmes — há um conjunto de relações entre pessoas que confluem num processo de trabalho, que é liderado por uma visão. E essa mesma pode ser partilhada, como é o caso deste filme. É um desafio maior e particular, porque estas duas pessoas vão definindo e construindo o seu ponto de vista sobre aquela realidade. Isso é algo que acontece sempre no documentário. Mesmo quando faço filmes sozinho, a minha forma de me relacionar com as pessoas, com as situações, com os lugares, vai evoluindo ao longo do tempo. Não me relaciono com as pessoas que filmo da mesma maneira no primeiro dia e no último. Ela evolui. A minha visão daquele contexto altera-se. Vai-se construindo. O filme vai-se definindo. O documentário tem esta ‘coisa’ particular: não são filmes escritos à partida para depois serem apenas executados. São filmes que se vão escrevendo. Vamos descobrindo como podemos desenvolvê-los.

Neste caso em particular, há uma comunidade, mas dentro dela desenham-se três figuras que funcionam como âncoras para o espectador, que guiam o filme e o desenvolvimento da história. Não estavam definidas à partida. Quando começámos, não sabíamos ainda que o filme se ia centrar no Plácido, na Teresa e no Tiago. Isso foi algo que se foi descobrindo, também com a disponibilidade do outro lado para entrarem nesse processo. Não foram os únicos. Houve mais pessoas que participaram e que construíram com eles um percurso no filme. Alguns, a montagem colocou mais no centro; outros, menos. Mas tem a ver com esse evoluir das coisas. 

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Zsófi Paczolay e Dorian Rivière

Sendo dois, há duas sensibilidades, duas formas de relação. Mas, nesta construção progressiva, há também um certo apoio. Porque, de alguma forma, a visão complexifica-se. Não é só a forma como entendo as coisas, mas também o diálogo com a outra pessoa que está ao meu lado, a viver o mesmo processo, atenta a outras coisas, com outras ideias. E esse diálogo é muito produtivo e criativo.

É essa a ideia de coletividade que estava a falar no início. 

Só por curiosidade: o título “Estou Aqui” surge numa altura em que facilmente é confundível com o sucesso brasileiro “Ainda Estou Aqui” (Walter Salles, 2014). [Risos] 

[Risos] O filme já tinha saído quando percebemos isso. Mas sim, o título “Estou Aqui" já existia em 2020, quando os realizadores terminaram o mestrado. Ainda houve tentativas de outros títulos, mas acabou por ficar este.

Mas este título tem qualquer coisa... Voltando à dignidade … de trazer essa dignidade a estas pessoas que são uma "não presença" na cidade. Só quando chegam ao pavilhão adquirem uma identidade, essa mantida através da câmara, através destes filmes. O filme dá-lhes uma certa identidade, de facto. Então o título é quase como um manifesto.

"Eu existo e estou aqui." Neste ponto no espaço, neste ponto no tempo, neste ponto na vida. É uma afirmação de presença. Porque sim, há muita invisibilidade, há muitas estratégias para que pessoas em situação de sem-abrigo, em enorme fragilidade, sejam remetidas para a sombra, para o desaparecimento — até do espaço público. O que aconteceu naquele momento muito particular foi que não se via ninguém na rua. Mas de repente via-se uma fila de pessoas à porta de um lugar, de uma igreja, de um centro de acolhimento, ou de várias estruturas que estavam a prestar algum apoio. Isso trouxe-nos essa presença. 

O filme tem essa carga. É como se dissesse: “E quem não tem casa? Onde está? Para onde foi? Como faz?”. Houve até casos não só com pessoas em situação de sem-abrigo — mas também pessoas que viviam sozinhas e não tinham capacidade de fazer a sua gestão diária, de ir ao supermercado… e que de repente, ficaram sem rede. Toda a rede que tinham desapareceu.

Portanto, o filme tem essa chamada, essa afirmação.

Sobre o curso de documentário. Porque — e vou dizer talvez a maior banalidade de sempre — ao ver este filme, a primeira coisa que senti foi que havia quase um... e acho que é um dos grandes documentaristas no nosso tempo, Frederick Wiseman, e o estilo observacional dele, de quase “descascar” as instituições... É um pouco o que se sente neste filme. Gostava de saber mais ou menos quais são os autores que vos influenciam na área documental, ou se o curso é mais prático ou de vertente mais teórica?

É muito prática. Neste mestrado em particular, é muito prático. São quatro semestres em que os alunos estão sempre a ser desafiados a filmar. Começam com exercícios, e cada semestre termina com um filme, um exercício um pouco maior. O programa termina com um filme final que ocupa um semestre inteiro. Tem várias características: uma delas é que reúne cerca de 24 alunos de todo o mundo. Na mesma turma, há pessoas de todo o lado. Poucos europeus. É um mestrado financiado pela Agência Erasmus+, que privilegia determinadas regiões. Isso vai mudando a cada edição.

Como assim?

A Agência Erasmus atribui bolsas aos estudantes. Essas bolsas pagam as propinas e dão algum dinheiro para viver. Em cada ano, a agência define as regiões e os países elegíveis. Imagina que há 20 bolsas para distribuir: 5 são para a América do Sul e, dentro do continente, para um conjunto de países que, no ano seguinte, serão outros. Não é algo fixo. O que acontece é que há poucas bolsas para o espaço europeu, porque a vocação do programa é internacional, direcionado para regiões mais afastadas. Estas 24 pessoas chegam e começam imediatamente a filmar. E quase todas não falam a língua. Isso é uma constante.

É um obstáculo.

Sim. Depois há a Hungria, onde também não falam a língua. Alguns falam espanhol ou português e conseguem perceber, mas a maioria não. O inglês torna-se aqui a língua universal.

É muito curioso ver as estratégias que encontram para lidar com isso. Mas também, por não perceberem a língua, a atenção foca-se noutras coisas. Não passa tanto pelas palavras. E isso é interessante, porque falaste no Wiseman — que tem esse processo de observação intensiva, de passar muito tempo num lugar. Curiosamente, o Wiseman faz o som dos seus filmes e dirige a câmara com a perche. Essa ideia de escuta — de uma escuta relativa — é muito importante neste filme.

Porque é uma realidade muito dispersa. Há muita gente, muitas situações. É preciso encontrar um caminho ali no meio: dentro de tudo o que acontece, onde concentrar a nossa atenção. Isso é um processo.

Com essas multitarefas todas, ainda há espaço para realizar?

Ser realizador é a minha principal tarefa. Tudo o resto que faço vem a partir daí.

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Tiago Hespanha

O seu último “Campo, foi realizado antes da pandemia, em 2019. Mantém esse desejo de realizar para breve, ou já tem algum projeto?

Sim, já estou a filmar. Tudo o que faço — as aulas, a produção — tem como centro a criação. E a Terratreme, voltando ao início da nossa conversa, também carrega essa ideia: é uma produtora de produtores que são realizadores. Isso coloca o centro de tudo na criação e nas suas necessidades. Não é uma criação estanque, separada da produção e das outras dimensões do filme. São processos que colocam a criação nesse mesmo centro. É a partir dessa sensibilidade, desse desejo, que tudo o resto se começa a articular para formar o filme, no meu trabalho é um bocadinho assim também. É curioso: agora que estamos a falar do "fazer" — se é prático ou teórico —, é muito prático, mas são processos práticos que também são muito reflexivos. Têm muita investigação. Teoria, se quiser.

É um processo que me levou ali [ao Campo de Tiro de Alcochete, no filme “Campo”]. O início não era aquele. O início era um filme. Não era um filme, era uma ideia de saber mais sobre... Quando comecei esse processo, tinha acabado de ser anunciado que o aeroporto ia ser ali.

Há uma dimensão deste filme [“Estou Aqui”] que acho que é importante e que nem sou a melhor pessoa para falar. Mas que tem a ver não tanto com a forma do filme, mas com aquele contexto em concreto, com o teu projeto em particular. Porque aquilo foi uma experiência e foi uma que durou aquele tempo. Não existia antes e não passou a existir.

Falamos do projeto do Casal Vistoso no “Estou Aqui”? 

Sim. O centro de acolhimento do Casal Vistoso foi um projeto inédito, conduzido pela Teresa Bispo, que era técnica da Câmara, e que criou condições muito particulares para este tipo de apoio. Espero que ao longo deste processo de promoção e de estreia do filme consigamos ter essa conversa em vários contextos, porque foi realmente especial, inovador e um bocado incompreensível como é que não teve continuidade e como é que esse tipo de experiência não criou uma espécie de hábito da sociedade. Era um projeto em que eram admitidos casais, e até eram admitidas pessoas com animais.

Era um projeto que colocava as pessoas no centro. Ou seja, em vez de uma pessoa em situação de sem-abrigo, que se encontra numa enorme fragilidade, com grandes dificuldades e pouca autonomia, sendo constantemente obrigada a ir ao encontro das respostas que lhe são apresentadas, este projeto fez exatamente o contrário. Em vez de exigir que a pessoa tivesse conhecimento das respostas disponíveis, soubesse como cada uma delas funcionava e estivesse em constante movimento, o projeto reuniu, no pavilhão, as várias respostas existentes. As pessoas estavam ali e tinham contacto direto com os diferentes programas.

Era uma visão profundamente humanista desta situação, que depois desapareceu. Desapareceu, não porque deixou de ser necessária, e esse é o drama. Já se sabia que a ocupação daquele espaço era temporária e que, posteriormente, ali ficaria um projeto desportivo. Não é isso que está em causa. O que realmente se perdeu foram os princípios do projeto, as suas linhas estruturais, que não foram levadas adiante.

Hoje temos mais pessoas em situações sem abrigo do que tínhamos naquele momento. Portanto ... terminou não porque deixou de ser necessário, mas porque deixou de haver interesse, vontade política para que ele continuasse. A Teresa Bispo costuma dizer que tudo isto são decisões políticas, como é que se lida, como é que se gera estas situações. É muito curioso porque no filme há uma técnica que explica isso numa assembleia, em que uma pessoa em situação de sem-abrigo sai mais caro de estar num centro de reabilitação.

Agora, de forma pertinente, gostaria de saber se me podem falar sobre a questão da distribuição, que tem sido, aliás, tema de uma conversa recorrente nos últimos dias nos círculos cinéfilos. A Terratreme funciona quase como uma distribuidora independente também. Queria perceber os desafios que enfrentam na distribuição dos vossos filmes, porque, há umas semanas, estreou um filme português distribuído por uma grande distribuidora, mas que, segundo o ICA, teve apenas 70 espectadores e já não está em exibição nas salas. Em comparação com os filmes que vocês distribuem, que fazem muito mais espectadores (e vida em sala), sendo uma distribuidora pequena. Gostava de saber se estão presentes nesta questão da distribuição dos filmes e como é o desafio de ser uma distribuidora.

Nós tornámo-nos uma produtora que também faz o trabalho de distribuição dos nossos filmes, e já fizemos um ou outro filme que não poderia ser produzido por nós, um pouco... empurrados para essa função. Ou seja, não nascemos como distribuidores. No entanto, isso surge de um conjunto de constatações e uma delas tem a ver com a precariedade do circuito de distribuição em Portugal. Existe um circuito de distribuição, mas ele é bastante limitado: há dois grandes operadores, algumas, muito poucas, salas independentes, e depois um circuito considerável de cineclubes e outras estruturas que fazem programação de cinema. Essas estruturas mostram filmes, mas não atuam como uma sala de cinema comercial, porque não mantêm os filmes em exibição durante uma semana, que é um critério obrigatório para que os estúdios de cinema considerem a distribuição de um filme. O que temos é uma realidade diferente.

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Campo (Tiago Hespanha, 2019)

No caso dos filmes que fazemos, ou conseguíamos que fossem distribuídos por um dos operadores — o que é extremamente difícil, também devido ao tipo de cinema que fazemos, gerando um desencontro — ou desistíamos de os distribuir. Como o objetivo de fazer filmes é mostrá-los, e só faz sentido se forem vistos, decidimos começar a tentar, por nós próprios, criar essa rede. Queremos construir as relações necessárias para fazer um filme circular, criando um circuito o mais abrangente possível, embora cada filme tenha a sua própria especificidade.

O que temos vindo a observar ao longo destes 15 anos em que estamos na produção de filmes, desde o início, é que realmente há cada vez menos espectadores nas salas comerciais. Mas é um erro pensar que não há público para estes filmes, porque, quando vamos aos cineclubes, aos cineteatros, a uma série de estruturas que fazem programação de cinema, vemos que as sessões são bastante compostas. O problema é que é difícil pedir a um cineclube, seja na cidade ou no interior, para exibir um filme durante uma semana inteira.

Outro ponto é que não há público suficiente para encher uma sala durante seis dias seguidos, portanto... Enfim, tentar encaixar este tipo de cinema num modelo de distribuição importado, que é um modelo comercial baseado numa série de características que todos acabámos por perceber que não funcionam, não é viável. Portanto, andamos sempre a tentar lidar com esta realidade.

Para nós, é extremamente importante estrear os filmes em sala, em cinemas, porque fazemos filmes para o cinema. É muito pouco gratificante mostrar um filme sem as condições adequadas: sem uma projeção de qualidade, sem um bom som, sem a presença das pessoas. Por isso, é crucial conseguirmos exibir os filmes nas salas de cinema. E é igualmente importante o que estamos a fazer agora: a partir do momento em que conseguimos estrear um filme, isso abre a possibilidade de os meios de comunicação darem visibilidade ao filme. Isso é essencial para que o filme seja conhecido e para que as pessoas se desloquem às salas para o ver.