Na companhia dos "sem sombra"
Todos os objetos e seres convocam através da sua posição ou passagem uma sombra, a prova “viva” da sua dimensão, a pegada, neste Mundo. Sem sombra, alegoricamente invocado, seria um plano para o vazio, para a inexistência, porém, será isso um dogma para ser assertivamente acenado? Nos subúrbios de Pequim, existe uma torre, um templo budista do século XIII, alcunhada de “torre sem sombra”, monumento cujo aparato arquitetônico o deixa imune a esse banalizado fenómeno de sombreamento. Seja de que ângulo for, nenhuma impressão no solo é visível como presença da sua “vivência”.
Nesse mythos aqui artificializado - “The Shadowless Tower” - o realizador Zhang Lu transcreve a “não-sombra” desse monumento para um dos habitantes periféricos, um quarentão ex-crítico gastronómico, Gu Wentong (Xin Baiqing), desprovido de palato, divorciado e financeiramente esfarrapado, sendo atualmente sombra daquilo que fora e que por sua vez sem sombra deixa “escapar” ao longo do seu percurso. Este homem vagueia por estradas afora, na esperança de um abraço quente e jovem para recordar da sua ex-vitalidade, nas demandas na descoberta do seu pai há muito desaparecido e nos pequenos momentos que dispõe para conviver com a sua filha menor, esta, sob o cuidado da sua irmã, como lembrete da sua inaptidão social. Pequenos prazeres ainda habitam naquele corpo desajeitado e desassociado, seja na degustação de pratos tradicionais em albergues de velhos conhecidos,nas anuais reuniões de turma, cuja embriaguez é um ato imperativo sob o mote da nostalgia e dos sentimentos a serem libertados sem rendição nem julgamentos aparentes (“Chorar é um direito humano”, refere um dos seus ex-colegas no banquete da melancolia) ou nos passinhos de dança em salões exadrezados onde porventura habitaria personagens tão “wongkarwaianas”.
Tratando-se da primeira obra de Zhang Lu a deter distribuição nacional, nela depararmos uma similaridade estética para com um conterrâneo colega seu, Jia Zhangke (“Mountains May Depart”, “Ash is the Purest White”), mas clarifica-se que muito mais os separa dos que os une, sendo que a união, por mais pequena que seja, resolve-se numa forte adjacência de ambas as cinematografias. O cinema de Zhangke marcou-nos como uma ponte imaginária para Ocidente, de cultura emaranhada nos distorcidos códigos da emancipação, enquanto o cineasta desta poesia mundana e enfervilhada a álcool resulta num cerco, cujo interior procura a gravitas das suas personagens perdidas, ora no tempo, ora no espaço.
Portanto, é evidente deparar na narrativa desta deambulação, uma desorientação condutora a becos sem saída, ou muros a merecer a trespassagem. O protagonista incorpora esse rodopio temporal, em busca de um passado do qual muitas vezes não participou (questões com paternidade, a dele e a dos outros), como a de uma carreira alienada que lhe atravessou em frente sem pé no travão, agora cedido a essa melancólica e insustentável leveza de ser. “The Shadowless Tower” promove-se como esse filme arquitetonicamente existencial, amargurado, e que por sua vez acredita numa socialidade, numa identidade única e invisivelmente chinesa, incapaz de desligar dessa coletividade identitária, mesmo que o passado guardado com rancor e de uma tristeza empobrecida lhe resta como tatuagem. Esse efeito o interliga a Zhangke, e daí se separa.
O desengonçamento captado, voluntariamente sublinha-se, por Lu e a epopeia fracassada do seu Wentong, o homem sem sombra, tal como o seu “pai”, essa imagem-reflexo que nos surge num dos momentos mais poéticos de uma obra de lirismos ao vento e ocasiões é de uma bela tristeza. Tal alinhamento parece-nos impraticável à luz do dia, só que o senso comum é contrariado pelo próprio filme, através de uma das personagens passageiras no rumo deste protagonista. O mesmo refere, citando a linguagem coreana, as semelhanças fonéticas entre as palavras 'amor' e 'tolo', aparentemente não-funcional a associação, mas, na verdade, e como deixa-se transparecer, só os tolos poderão amar o que quer seja nesta vida efémera. Talvez seja essa a nossa sombra neste solo terrestre.