Saltar para: Posts [1], Pesquisa [2]

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na companhia dos "sem sombra"

Hugo Gomes, 16.08.24

The-Shadowless-Tower-e1676244718742-cr-res.webp

Todos os objetos e seres convocam através da sua posição ou passagem uma sombra, a prova “viva” da sua dimensão, a pegada, neste Mundo. Sem sombra, alegoricamente invocado, seria um plano para o vazio, para a inexistência, porém, será isso um dogma para ser assertivamente acenado? Nos subúrbios de Pequim, existe uma torre, um templo budista do século XIII, alcunhada de “torre sem sombra”, monumento cujo aparato arquitetônico o deixa imune a esse banalizado fenómeno de sombreamento. Seja de que ângulo for, nenhuma impressão no solo é visível como presença da sua “vivência”. 

Nesse mythos aqui artificializado - “The Shadowless Tower” - o realizador Zhang Lu transcreve a “não-sombra” desse monumento para um dos habitantes periféricos, um quarentão ex-crítico gastronómico, Gu Wentong (Xin Baiqing), desprovido de palato, divorciado e financeiramente esfarrapado, sendo atualmente sombra daquilo que fora e que por sua vez sem sombra deixa “escapar” ao longo do seu percurso. Este homem vagueia por estradas afora, na esperança de um abraço quente e jovem para recordar da sua ex-vitalidade, nas demandas na descoberta do seu pai há muito desaparecido e nos pequenos momentos que dispõe para conviver com a sua filha menor, esta, sob o cuidado da sua irmã, como lembrete da sua inaptidão social. Pequenos prazeres ainda habitam naquele corpo desajeitado e desassociado, seja na degustação de pratos tradicionais em albergues de velhos conhecidos,nas anuais reuniões de turma, cuja embriaguez é um ato imperativo sob o mote da nostalgia e dos sentimentos a serem libertados sem rendição nem julgamentos aparentes (“Chorar é um direito humano”, refere um dos seus ex-colegas no banquete da melancolia) ou nos passinhos de dança em salões exadrezados onde porventura habitaria personagens tão “wongkarwaianas”.

白塔之光-the-shadowless-tower-2023-directed-by

Tratando-se da primeira obra de Zhang Lu a deter distribuição nacional, nela depararmos uma similaridade estética para com um conterrâneo colega seu, Jia Zhangke (“Mountains May Depart”, “Ash is the Purest White”), mas clarifica-se que muito mais os separa dos que os une, sendo que a união, por mais pequena que seja, resolve-se numa forte adjacência de ambas as cinematografias. O cinema de Zhangke marcou-nos como uma ponte imaginária para Ocidente, de cultura emaranhada nos distorcidos códigos da emancipação, enquanto o cineasta desta poesia mundana e enfervilhada a álcool resulta num cerco, cujo interior procura a gravitas das suas personagens perdidas, ora no tempo, ora no espaço. 

Portanto, é evidente deparar na narrativa desta deambulação, uma desorientação condutora a becos sem saída, ou muros a merecer a trespassagem. O protagonista incorpora esse rodopio temporal, em busca de um passado do qual muitas vezes não participou (questões com paternidade, a dele e a dos outros), como a de uma carreira alienada que lhe atravessou em frente sem pé no travão, agora cedido a essa melancólica e insustentável leveza de ser. “The Shadowless Tower” promove-se como esse filme arquitetonicamente existencial, amargurado, e que por sua vez acredita numa socialidade, numa identidade única e invisivelmente chinesa, incapaz de desligar dessa coletividade identitária, mesmo que o passado guardado com rancor e de uma tristeza empobrecida lhe resta como tatuagem. Esse efeito o interliga a Zhangke, e daí se separa. 

O desengonçamento captado, voluntariamente sublinha-se, por Lu e a epopeia fracassada do seu Wentong, o homem sem sombra, tal como o seu “pai”, essa imagem-reflexo que nos surge num dos momentos mais poéticos de uma obra de lirismos ao vento e ocasiões é de uma bela tristeza. Tal alinhamento parece-nos impraticável à luz do dia, só que o senso comum é contrariado pelo próprio filme, através de uma das personagens passageiras no rumo deste protagonista. O mesmo refere, citando a linguagem coreana, as semelhanças fonéticas entre as palavras 'amor' e 'tolo', aparentemente não-funcional a associação, mas, na verdade, e como deixa-se transparecer, só os tolos poderão amar o que quer seja nesta vida efémera. Talvez seja essa a nossa sombra neste solo terrestre.