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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

A Linha de Sombra: 'a shop around the corner' e a conversa com um livreiro

Hugo Gomes, 28.05.25

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Foto.: Mafalda Martins

Bastou um pé dentro do espaço para ser recebido por um sorriso. “Boa tarde, Hugo. Hoje temos a apresentação deste livro.João Coimbra Oliveira, livreiro de profissão, cinéfilo por paixão, aponta para uma pequena edição de capa mole exposta na recepção, trata-se de “Contos das Histórias, Estórias dos Contos”, de António Haddad.

“Vamos ter a apresentação dele hoje.” Acrescenta a informação, para de seguida puxar de baixo do balcão um volume de tamanho generoso. “Mas penso que este te vai interessar: ‘Jean-Luc Godard’, numa edição de Serralves.” Por uns minutos pavoneei o livro na mão e, com entusiasmo, fiz-lhe um gesto de quem quer pedir algo. “Preciso de ti por uns momentos. Dá para irmos lá fora?

Naquele preciso instante, dois clientes exploram os cantos e recantos do espaço — não muito grande, é certo, 30 metros quadrados para sermos exactos, mas com uma voluntária desorganização no centro da livraria: pilhas de livros, revistas e outros coleccionáveis, raridades que só aqui parecem existir. “Este é uma jóia! Para ti, faço um desconto.” João exibe-me “Os Meninos de Ouro”, de Agustina Bessa-Luís, um livro claramente em segunda mão, de uma tiragem há muito extinta. “Se este livro falasse, que histórias teria me para contar sobre os seus antigos donos.” pensei eu.

Seguimos para o pátio que une a Linha de Sombra ao bar 39 Degraus, no primeiro andar da Cinemateca de Lisboa. Por entre a algazarra dos que apenas anseiam petiscar ou matar a sede, há toda uma parede enfeitada por edições de fazer inveja — cartazes e outras curiosidades, uma verdadeira máquina do tempo, de um passado que muitos ali, de passagem, não viveram. João faz um gesto a uma das empregadas do bar: dois cafés e uma garrafa de água de um litro. “Isto fica por minha conta”, apressa-se a dizer. Nesse momento, atravessando o pátio, somos interpolados por Samuel Andrade, um dos projecionista da Cinemateca, a meio do trajecto diário até ao seu “estúdio”, os bastidores onde a 'magia acontece' no Museu de Cinema.Como vai, João?”, acena. “Estou bem, obrigado. E contigo?” responde, fazendo-se acompanhar por um vigoroso polegar para cima.

Inaugurada a 5 de Janeiro de 2015 e com dez anos recentemente cumpridos, a Livraria Linha de Sombrasurgiu numa oportunidade e num momento de inspiração, o desejo de criar uma boa livraria de cinema na Cinemateca Portuguesa, que é uma excelente editora. Fazia todo o sentido que esses livros estivessem disponíveis, e acreditar no espaço era natural”, refere João Coimbra Oliveira, após um rápido sorvo no café.

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Foto.: Mafalda Martins

"Louis, I think this is the beginning of a beautiful friendship"

Essas jóias, as edições próprias da Instituição, muitas já descontinuadas, continuam a ser motivo de peregrinação da cinefilia lusófona e não só. “Esses livros são hoje considerados edições de coleccionador. É muito raro encontrá-los, porque, normalmente, os cinéfilos não se desfazem deles — são núcleos de biblioteca que passam de geração em geração.

João destaca o trabalho incansável da Cinemateca na área editorial: só no último ano, em 2024, foram 20 publicações, incluindo os próprios filmes actualmente a ser digitalizados no ANIM [Arquivo Nacional de Imagens em Movimento]. “Há também vários projectos em curso. E esta minha tentativa aqui, que é mais do que um projecto pessoal, começou com uma ideia apoiada desde o início pelo então director José Manuel Costa, pela Antónia Fonseca e por toda a equipa de programação. Desde o primeiro momento ajudaram, ofereceram livros e tornaram-se até clientes.

João Coimbra Oliveira é hoje visto como uma figura querida dentro das quatro paredes da Cinemateca. Todos os departamentos o conhecem, tratam-no como um vizinho a quem de vez em quando pedem "emprestado o sal". O seu trabalho hercúleo em preservar uma ligação afectiva com a Cinemateca e com o público habitual revela-o como mais do que um mero livreiro, dir-se-ia mesmo, um curador. “Quer dizer, acabo por sentir que estou a prestar um serviço à comunidade. Tanto para os cinéfilos como, até, para a própria Cinemateca. Juntos fomos construindo uma livraria bastante original, que começa a reunir bastantes títulos, inclusive de outros centros.

"A minha abordagem à fileira do cinema é um bocadinho idêntica à fileira do livro. Vem desde a criação à produção, da exibição à leitura e à distribuição."

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Foto.: Mafalda Martins

"Tu n’as rien vu à Hiroshima."

Do interior da livraria é possível ouvir Thomas Newman, a banda sonora do oscarizado filme de Sam Mendes, “American Beauty”. Uma cadência atípica, reconhecível, que se mistura com a algazarra do bar: o tilintar de copos e talheres, conversas alheias, e até a máquina de café a lançar os seus sonoros vapores - mais uma chávena para a mesa 56. Enquanto isso, é a música oriunda da Linha de Sombra que nos encaminha para outra realidade. Ou melhor, para várias. Todas elas impressas naquelas páginas e páginas de livros e folhetins.

É, aqui na livraria está sempre a passar bandas sonoras. É a música que me faz companhia… e também as pessoas gostam. Perguntam de que filme é, comentam… e cria-se ali uma dose, assim, um bocado de... de comunidade a acontecer”, esclarece, apercebendo-se da minha atenção à sonoridade do espaço. “Porque creio que todos os cinéfilos — pelo menos na minha realidade pessoal, na minha experiência de vida — têm uma certa dose de misantropia. Em certos momentos preferem estar sós. E aqui, na livraria, acho que os livros são nossos amigos.

Antes da sessão de cinema, a pessoa pode vir ao espaço do 39° e tomar um copo, comer qualquer coisa, ou vir ver as novidades. É muito comum… mesmo… os clientes habituais, os amigos da Cinemateca, ou estudantes da Escola Superior de Teatro e Cinema, aparecerem e perguntarem logo: ‘Quais são as novidades?’

Criámos o site, e tem sido uma ótima plataforma, até para distribuição a nível nacional e internacional. Temos recebido encomendas de todo o mundo: Indonésia, Brasil… os brasileiros estão sempre muito atentos ao que se vai produzindo cá em Portugal ... mas também de França, dos Estados Unidos… e o catálogo está todo lá, disponível.

Para além da venda de livros, DVDs e outros acessórios cinéfilos, a Linha de Sombra é também vista como um espaço privilegiado para apresentações de obras, eventos e alguns beberetes, obviamente, com os livros e o cinema como pano de fundo e contexto social.

Contam-se entre dois a três por semana, albergando convidados ilustres como Pedro Mexia, Carlos Vaz Marques, Daniel Ribas, Regina Guimarães, Catarina Mourão, Rui Simões, entre outros: críticos, realizadores, poetas, professores, escritores e filósofos. Toda uma gama de personalidades que contribuem para enriquecer a comunidade criada e envolvente da livraria. No decorrer da conversa, atrás de nós, uma mesa já estava preparada para o evento daquela tarde. João não resistiu a lançar-me outro convite: “Tens que ficar, vai ser espectacular.”

“É essa a poesia do quotidiano. Ao mesmo tempo, temos consciência de que este trabalho é também fruto das próprias exigências da actividade editorial e dos amigos, autores e criadores que nos procuram.”

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Foto.: Mafalda Martins

”When the truth becomes legend, print the legend.”

Prometi-lhe o último tópico, e, por sua vez, um dos mais sensíveis para o João: a sua própria editora Linha de Sombra. Lançada em 2017 com a publicação de “O Cinema Não Morreu”, um colectivo de textos do site À Pala de Walsh, popular plataforma de crítica cinematográfica surgida da blogosfera e alimentada por cinéfilos atentos.

Eram pessoas por quem tinha - e continuo a ter - imenso respeito intelectual e humano. Na altura, a livraria tinha cumprido os objectivos traçados desde o início: não ter dívidas e não prejudicar ninguém. Os objectivos foram atingidos. E então pensei logo que a melhor maneira de retribuir todo o apoio que os cinéfilos me tinham dado até então seria publicar um livro.”

Havia toda uma geração que, naquele momento, estava a terminar os seus percursos… em mestrados, em doutoramentos… E, em muitos casos, dos vinte e tal autores que publicámos, muitos desses textos eram primeiras obras impressas. Eu sei que vale o que vale, mas a academia é muito receptiva às publicações. Foi a minha maneira de fazer uma pontuação simbólica  - sem qualquer objectivo financeiro ou económico - junto das pessoas que me apoiaram desde o princípio: por virem à livraria, por visitarem a livraria, por falarem da livraria.

Depois desse livro inaugural, seguiram-se mais dois títulos lançados nos últimos meses. Primeiro, “O Desembarque das Ondas: Uma Antologia de Ingmar Bergman”, organizado por Raquel Nobre Guerra, poeta por quem João nutre grande estima: “É um objecto perfeito. Ela é das melhores poetas da sua geração.”. E, por fim, um segundo volume do colectivo À Pala de Walsh, “O Cinema das Palavras” — uma colectânea de entrevistas a realizadores e outras figuras do cinema.

Na Feira do Livro de Lisboa, os editores brasileiros brincavam: ‘É só ao terceiro livro que uma pessoa se torna realmente editora.’ O primeiro livro é movido pelo entusiasmo, seja do próprio editor, seja do público. Ou seja, tem tudo para correr bem, para ser um sucesso. O segundo… já não. Não tem aquele efeito de novidade. É um trabalho de continuidade. E o terceiro… pronto, é o momento da verdade. Ou a pessoa está mesmo para editar, ou não estáFoi com o terceiro livro que lançámos que eu me apercebi: mais do que editor, sou livreiro.

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Foto.: Mafalda Martins

"Well ...Nobody's perfect"

Um dos clientes que resistia no interior chega ao balcão com uma pequena pilha de livros na mão — a deixa perfeita para encerrar a conversa. “Bem, o dever chama-me.João levanta-se, sai da mesa e regressa à livraria, atravessando para o outro lado da recepção. De novo na pele de livreiro, conversa com o cliente, sugere outros livros, aponta sessões futuras na Cinemateca. No final da compra, brinda-o com um postal. “Uma pequena lembrança.

É a minha vez de regressar à livraria. Faço-lhe um gesto de gratidão e uma promessa: “Guarda-me a Bessa-Luís. Da próxima levo.” Com um sorriso de satisfação, o livreiro pisca-me o olho e despede-se, deixando no ar o compromisso selado. Pequeno espaço no coração de Lisboa, raro, sobretudo numa cidade cada vez mais despida culturalmente (mas isso são outros cinco tostões). Enquanto houver Linha de Sombra — nome inspirado numa das obras preferidas de João, o homónimo livro de Joseph Conrad — estamos garantidos.

"Quorum" em Junho!!

Hugo Gomes, 22.05.25

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Menção no jornal da Cinemateca Portuguesa! Contudo, há que frisar que "Quorum", a curta-metragem de Rafael Fonseca, vai estrear no Museu do Cinema no dia 27 de junho.

Poderia estar aqui a escrever uma ou duas frases 'bonitas' sobre o filme para vos aguçar a curiosidade, mas basta ler o cujo texto [ler aqui]. Está lá tudo, e o que falta podem encontrá-lo no "Quorum".

No V.H.S., com conventos e curtas a prémio ...

Hugo Gomes, 19.03.25

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Dei a cara pelos Prémios Curtas no V.H.S., o podcast oficial da gala de prémios, e aproveitamos para falar sobre Luís Miguel Cintra e “O Convento” de Manoel de Oliveira, com histórias da autoria de Paulo Branco, resgatar um cineasta do preconceito geral e ainda promessas de cerveja.

 

Um Imperdoável com Michael Caine e Zulus!

Hugo Gomes, 19.03.25

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Aceitando com bastante agrado o convite do Rui Alves de Sousa ao seu podcast / jornada “Imperdoável”, sobre filmes “imperdoáveis”, eis uma conversa com pontos sérios mas muita galhofa à volta de “Zulu” de Cy Endfield (1964). Nos 39 Degraus da Cinemateca, falamos para além do filme, guerras em grande ecrã, fraquezas de Nolan que ninguém admite, Michael Caine, propagandas no cinema, Ninjas Americanos e Academia de Polícias e frases de engate. Para ouvir aqui:

 

Tertúlia oscarizada!

Hugo Gomes, 24.02.25

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Óscars!! Lá vamos nós! Amanhã (25 de Fevereiro) haverá tertúlia entre os críticos da Metropolis (Jorge Pinto e eu) e da Tribuna do Cinema (Rafael Fonseca, Rita Cadima de Oliveira, David Bernadino, André Filipe Antunes e Pedro Barriga), com moderação de Rui Pedro Tendinha, na FNAC Chiado. Pelas 18h30. Entrada livre. Apareçam e levem pompons.

Empatia!! Somente histórias de empatia!

Hugo Gomes, 11.02.25

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We here to become human again, to put on nice clothes and dance around and enjoy the things that is not in our reality."

Histórias de empatia! Por entre galões de um lado da mesa e imperiais do outro, no bar da Cinemateca falou-se de trivialidades, assuntos privados ou opiniões avulsas. Entre um gole e um bitaite fresco, a empatia surge inesperadamente como tema. Daí para sensibilidades, emoções ou “fraquezas” (como quiserem chamar), a conversa converge para um único ponto: um filme, para sermos concretos — “Sing Sing”, de Greg Kwedar.

Filme de Óscar sem presença na crucial eleição dos 10 finalistas: culpa-se o calendário da temporada de prémios ou a lógica do lobby como persuasão, mas a verdade é que Colman Domingo lá está representado com a interpretação (além de mais duas nomeações, argumento adaptado e canção), até porque ele é o ator no meio de não-atores, um peixe em correntes imprevisíveis que nada numa fluidez danada. Já os restantes — os chamados "não-atores" (ou atores não-profissionais, como alguns preferem dizer, recuperando a velha máxima de que qualquer um pode atuar) — são farpas aguçadas no coração deste filme anti-cárcere, são autenticidade que desfazem qualquer fantasia imposta nessas latitudes.

Construído com base dessas experiências, empíricas até (daí o argumento adaptado], e focando no programa de reabilitação por via das artes performativas, teatro lê-se e vê-se, “Sing Sing” é todo ele uma entrega à arte como segunda oportunidade — um molde para homens clandestinos ou aprisionados na sua própria violência, que encontram libertação no escapismo curador deste voluntarismo. Domingo, por sua vez, voluntaria-se para entrar na prisão (na sua essência e não somente a sua geografia) com estes ex-reclusos (no filme encenam as suas vidas passadas entre grandes na dita prisão de alta segurança que aufere título à película) e encaixa-se nessa visão cercada sem induzir e preencher o filme nos rodriguinhos do seu subgénero de cativeiro, a agressividade, essa fica-se na sugestão dos relatos, nos olhares de perdão ou até no “faz-de-conta” da peça dentro da peça - mixórdia de temáticas com viagem temporais e mil e um géneros a dar conta (e Hamlet no meio).

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Greg Kwedar, realizador ainda discreto, homem invulgar para estabelecer esse vínculo para com a emoção bruta trazida, e por vezes ocultada destes agentes da pacificação espiritual, exerce um filme como igualmente um exercício performativo, indiciando no seu experimento a sua capacidade de cura. De um cinema independente que fala a língua dos Homens sem recorrer à fabulação insuflada (celebra-se a aproximação ao docudrama), nem ao conforto de uma narrativa massajada de um público-expandido. Funciona, por vezes, contra si mesmo, por ser uma história profundamente masculina, carregada de semiótica e gíria desse universo, podendo intuitivamente afastar os que clamam por igualdade nos gazes (olhares). Mas por não seguir essas ordens / diretrizes de mercado, o torna - e os últimos momentos são prova de uma riqueza pura de fragrâncias autenticadas -, “Sing Sing” em algo à parte das habituais promessas desse cinema adulto americano. Numa secura fingida, mexe no coração — a qual América de hoje carece disso. Empatia!

Brindamos de forma desigual os copos — lácteo de um lado da fronteira, cevada na oposição — mas o acordo estava traçado. A empatia uniu aquela mesa, àquele filme, precioso e pequeno filme sublinho por baixo …

 

One faith but you don't see

Search for peace but no one speaks

Burn a bridge to light my way

Climb the tree before I called you the victim

Heaven and evil, caught in the middle

Someone set me free, be wind beneath my wings

  • “Like a Bird”, Adrian Quesada e Abraham Alexander (música da banda-sonora “Sing Sing”, nomeado ao Óscar de Melhor Canção Original)

Ainda estamos aqui ...

Hugo Gomes, 18.01.25

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A despedida de David Lynch deixou-nos a todos profundamente abalados. Por isso, na altura, nem me pareceu adequado mencionar que o jornal Público, na sua ramificação brasileira (via o jornalista Jair Rattner), me contactou para partilhar algumas palavras sobre "Ainda Estou Aqui" e a "possível" entrada do cinema brasileiro no cardápio português.


Ler aqui

Que enigmas ficam para este mundo órfão de David Lynch?

Hugo Gomes, 16.01.25

Silencio, No hay banda!

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… e agora? Quem nos dirá o tempo?

Quem interrogará o primata até sabermos o que Jack realmente fez?

Quem nos aterrorizará com prematuros fetosos ou bochechas gigamórficas?

Quem nos conduzirá pela rota das especiarias de Arrakis, ouvindo pensamentos e a salivar por Sting emergindo de vapores?

Quem poderá decifrar o mistério daquele tronco? 

Onde está Laura Palmer

Porquê que David Bowie desapareceu num estalar de dedos?

Porque ninguém o ouve?

Quem nos elucidará sobre as perversidades atrás das cortinas e dos veludos azuis?

Quem nos ensinará o que é ser humano, mesmo que as feições sejam monstruosas?

Quem criará coelhos antropomórficos e os soltará numa Hollywood incendiada pelas mais nefastas coincidências?

De que tem medo Laura Dern?

Quem se esconde no beco do dinner?

O que têm em comum cowboys e franceses?

O que está na caixa?

Para onde nos leva a estrada perdida?

Seguindo em frente, alcançaremos a felicidade?

 

Enigmas para os quais não desejo respostas. Desejo apenas que se mantenham como tais, enigmas. Eternos enigmas. Porque Lynch, um dos senhores absolutos da minha cinefilia (se tivesse cinco euros por cada vez que vi “Mulholland Drive", conseguiria pagar um jantar a uma equipa de futebol no Gambrinos), preencheu o meu mundo com tais mistérios. Foi com ele que, em tenra idade, descobri que o cinema não era em linha recta. Era algo além da compreensão imediata, um território onde nem todas as questões precisam do seu par solucionável.

Curiosamente, quase como uma madalena proustiana, foi perante uma turma de adolescentes que falei pela primeira vez sobre Lynch. Sobre “Twin Peaks", sobre “Dune”, sobre “Eraserhead”. Abordei Laura Palmer e os cavalos misteriosos que surgiam no seu quarto. “Sexo com solípedes?”, perguntou, chocado, um colega – estávamos na Escola Agrícola, daí o palavreado. Ficaram atónitos com aquelas descrições. Eles, sedentos de um cinema escapista, tão comestível quanto possível, não conseguiam conceber que algo tão delirante, tão ilógico, tão críptico pudesse brotar de uma tela.

David Lynch, o cineasta que, nos últimos tempos, tem sido negado financiamento – uma mostra de que mistérios estão a faltar numa Hollywood cada vez mais em linha recta. 

A ti, Lynch, as memórias, a minha perplexidade, a minha vénia. Espero que o tempo esteja maravilhoso onde quer que estejas. Possivelmente um tempo lynchiano!

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David Lynch (1946 - 2025)