Em Las Vegas, os mortos-vivos também apostam
Em modo de troça poderíamos garantir que “Army of the Dead” ("Exército dos Mortos”) é um “Ghost of Mars” de John Carpenter, mas com zombies … e sem Ice Cube (em compensação temos um tigre zombie para “animar” a festa). Se o filme lançado em 2001 bebia das inspirações de Howard Hawks e o seu “Rio Bravo”, a nova incursão de Zack Snyder (“The Justice League”) tem influência espiritual nos westerns da velha fórmula dos “civilizados” contra “selvagens”.
Obviamente, não querendo fazer "Exército dos Mortos” mais do que aquilo que é, um júbilo por parte do realizador (visto o filme ser uma ideia original dele) como pretexto para regressar às suas origens - aos mortos-vivos propriamente ditos do seu bem-sucedido remake de “Dawn of the Dead” (2003). Mas não esperemos sequela aqui, aliás, assim como George A. Romero, esse “rei dos zombies”, fez com que o “Amanhecer dos Mortos” (o original “Dawn of the Dead”), história própria, tornasse parte de um universo projetado e putrefato iniciado por “Night of the Living Dead”.
E continuando nessa trajetória paralela, "Exército dos Mortos” bem poderia integrar qualquer uma dessas visões (visto que hoje somos altamente viciados na continuidade e na partilha de franchises), não desfaz as criações de 2003 e ainda persiste em ideias deixadas por Romero, neste caso no “zombie inteligente” e animalesco de “Day of the Dead” a “Land of the Dead”. Ora bem, passando a “bola”, Zack Snyder consegue em 2 horas e meia a confirmação do morto-vivo mainstream, vinculado com o conceito blockbuster, milhões e milhões investidos.
Cruzamento dessas réstias de western sofisticado e heist movie (filme de golpe), este musculado “comboio-fantasma” presta-se por um ritmo trabalhado em constante trambolhão com os códigos familiarizados do cinema-pipoca. Porém, o nosso realizador não é nenhum tarefeiro, e perante o peso “insuportável” das majors que trabalha (basta ver as suas incursões da DC [com “Watchmen” incluído] para entendermos que temos um artesão em plena resistência para cumprir as suas visões), expressa uma assinatura (mesmo que aqui esteja contida para servir-se primordialmente à narrativa e não há estética) e uma gradual atualização de um enredo de A a B para consolidar com o nosso mundo (as subtis apropriações do fenómeno Covid19) e com o seu (a relação de pai e filha que inevitavelmente leva-nos a uma fantasia de redenção do autor).
Pode-se dizer o que quiser, que “Exército dos Mortos” é mera chapa do atual cinema "industrial". E sim, também é isso. Mas com a liberdade total de que aqui dispôs, Zack Snyder provou ser mais coerente, enquanto autor "pipoqueiro", do que Michael Bay com o mirabolante e febril (não consigo arranjar mais adjetivos) “Underground 6”, também para a Netflix. Temos aqui cinema de milhões lubrificado e requintado, com o gozo suplementar de descobrir Matthias Schweighöfer a romper com o estereótipo "comic relief" da sua personagem. É um pequeno “achado”.