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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Receita de iscas sem nenhum amor para dar

Hugo Gomes, 03.07.24

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Por entre distopias desenfreadas e pratos esquisitos, Yorgos Lanthimos rumou para os EUA com o propósito de conquistar, não o agrado consensual, e sim, a repugnância enquanto espectáculo, garantindo essa formulação nos mais diferentes quadros, seja performativo, temático, visual ou até moralmente.

Entre ganhos e perdas, o ódio ao realizador grego tem sido a sua combustão, o seu presente envenenado ao espectador, que hoje lida com o desastre e mesmo assim recusa desviar o olhar. Nesse sentido, Lanthimos fala para nós, para a nossa sociedade, e dentro desse ramo dos assumidos provocateurs, sempre pontuado por produções excêntricas, conjuga um trabalho eficaz em captar audiências largas com um elenco estrelado (o isco à sua bizarria), muitos deles atores movidos pela atração de transfigurar os seus papeis-tipo, daí Emma Stone ser a sua “musa” nos últimos filmes (como também a estranha 'dançante' a todo o serviço).

Depois de algumas coroas de flores atiradas ao palco com “Poor Things”, adaptação de um livro de Alasdair Gray, Lanthimos prossegue em sociedades vis e disformes, conjuradas da sua realidade neste encontro antológico de três “contos” que tão bem transluzem os limites da devoção (regresso à colaboração com o argumentista conterrâneo Efthimis Filippou). Para isso, recorre a um elenco parcialmente fixo: Emma Stone, novamente, emborcada e de olhos vítreos, embriagados, a servir das três a raiz dos problemas, e no outro canto Jesse Plemons (tão sósia de Matt Damon) a concentrar-se em protagonistas de difícil empatia.

São “histórias de bondade”, como assinala o título em português com muito sarcasmo embrulhado; a história de um homem sem autonomia na sua vida, a de um marido que não reconhece a sua mulher retornada após dias desaparecida e de devotos de um culto qualquer que procuram uma espécie de messias. Três narrativas que exploram os devaneios de Lanthimos, no encontro indigesto das suas primeiras narrações - pontuados na sua frieza e, sobretudo, estranheza - são igualmente retalhos aparentemente sofisticados no sentido formal. A primeira, intitulada “The Death of R.M.F.”, é um abraço apertado às estéticas kubrickianas, essa demanda que Lanthimos inveja, aqui, olhando de soslaio às margens de “Eyes Wide Shut”, com o seu protagonista a pavonear por territórios estranhos que não lhe competem, um conto de devoção ao Poder, desse encarregado 1%, a “minoria” dominante segundo a lógica das hierarquização social.

Contrastado com a imperatividade da Família (a próxima devoção) no segundo trecho - “R.M.F. is Flying” - de contornos shyamalanianos e cuspidelas a sentimentos pasolinianos. Já no terceiro - “R.M.F. Eats a Sandwich”, é a Religião devota que comanda, sendo do tríptico o mais desengonçado esteticamente, onde se nota a clara ambição de Lanthimos em regressar ao seu estilo desconcertante dos trabalhos gregos. Os três, sempre embebidos num humor ácido de negritudes plenas, não escondem esse sorriso trocista do realizador em desafiar o espectador do seu conforto (rimos, muitas vezes embaraçosamente, do próprio embaraço ou da tragédia destas personagens sem um pingo de compaixão).

Não é "cinema confortável", está evidente, mas tem iscas a acompanhar um prato longe da iguaria, longe da calorosa refeição doméstica, uma mixórdia fria, descontente, disfuncional, concretizada através das sobras encontradas no frigorífico, algumas das quais expiradas, apenas 'disfarçadas' com temperos ativos. Existe, e daí ele não conseguir desenvelhiçar, um sentimento de “projetos na gaveta”, atados e vendidos como antológicos. A experiência dá-nos pouco, para além da provocação sobre a provocação.

Filme das Feias-Artes

Hugo Gomes, 25.01.24

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Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção. 

A adaptação do  bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgos Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto? 

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Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica. 

Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …

"Dance to me to the end of love"!

Hugo Gomes, 13.06.19

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8 1/2 (Federico Fellini, 1963)

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Scent of a Women (Martin Brest, 1992)

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Pulp Fiction (Quentin Tarantino, 1994)

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Mia Madre (Nanni Moretti, 2015)

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 The Lobster (Yorgos Lanthimos, 2015)

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Os Verdes Anos (Paulo Rocha, 1963)

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Le Notti Bianche (Luchino Visconti, 1953)

Há barafunda por debaixo das saias da Rainha

Hugo Gomes, 05.02.19

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Tendo a atenção da monarca como grande prémio, duas primas confrontam-se intelectualmente dando origem a uma rivalidade que atingirá patamares de mirabolante loucura. Esta é a premissa do novo filme de Yorgo Lanthimos, realizador grego que assinou algumas das obras mais atípicas desse território cinematográfico que nesta nova aventura por Hollywood procura o seu momento de emancipação.

A liberdade segue a passos lentos. Depois de “Alps” (2011) e “Canino” (2009), terem conquistado a atenção de uma comunidade cinéfila vasta - convém sublinhar a nomeação ao Óscar do último, possivelmente o mais doutrinariamente corajoso dos nomeados de Filme Estrangeiro pela Academia - Lanthimos em conjunto com o seu argumentista-cúmplice (Efthymios Filippou) partem para território norte-americano. Aí, a colaboração de ambos gera a distopia amorosa “The Lobster” (vencedor do Prémio de Júri no Festival de Cannes em 2015) e o não tão consensual “The Killing of the Sacred Deer” (2017). Ambas as obras detinham, não só, a incapacidade comunicacional entre as personagens, como também uma reinvenção dos códigos sociais. Por outras palavras, eram filmes “estranhos” para o público mais “mainstream”.

A cerne desta dupla poderia apanhar Hollywood por entre os dedos, enquanto depositam neste legado toda uma bizarrice metafórica dos nossos comportamentos mais animalescos. Enfim, depois do “Sacred”, realizador e argumentista rompem-se e cada um segue para o seu lado. Filippou é “recambiado” de volta para a Grécia e expõe o seu talento no drama “Pitty” (2018), já Lanthimos a jornada por este cinema ainda é uma partida.“The Favourite” não é só a quebra de uma criativa colaboração, é um Cinema cada vez mais longe das raízes demonstradas por Lanthimos e o eventual encontro para com uma herança hollywoodesca.

Já se falava de Kubrick na sua obra anterior - aquela Nicole Kidman em modo "rigor mortis" despojada na cama tinha refluências a “Eyes Wide Shut” - em “The Favourite” é “Barry Lyndon" como decoração e uma subsistência autoral no coração. E assim faz o que pode, usufruindo da escrita de Deborah Davis e Tony McNamara para transportar para o ecrã este arrojado filme de época sobre as aventuras e desventuras na corte da Rainha Anne da Grã-Bretanha (em pleno século XVIII), numa sátira que adquire contornos de violência emocional trazida por um trio de mulheres oriunda de diferentes graus hierárquicos. São elas que fazem a diferença. As atrizes - Olivia Colman, Rachel Weisz e Emma Stone – estabelecem um triângulo de relações acutilantes, que se laminam constantemente no decorrer da intriga.

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Porventura, é uma batalha de classes empregando os termos projetados do livro dentro do livro de 1984 de George Orwell. Em três classes diferentes, apenas duas se orientam posicionalmente de forma a garantir a preservação do ponto máximo da hierarquia. Ao jeito pingado, Lanthimos joga uma vez com políticas e as metaforiza nas imagens. Desta feita, essa representação é aplicada no trabalho conjunto deste elenco feminino … salienta-se … portento. Aliás, a questão dos atores insere-se como uma amarra rompida no cinema trazido desde então por Lanthimos. Os desempenhos mecanizados a que estávamos habituados em “The Lobster” e o “‘Sacred” são substituídos pela orgânica estratégia destas estrelas: o grego revela-se num exímio diretor de atores, o que compensa uma técnica que constantemente questionamos.

Preenchendo com diversos planos angulares e movimentos semicirculares por entre o eixo cénico de forma a captar a dimensão dos espaços confinados do palácio, este “The Favourite” é atualmente o seu filme mais desengonçado a nível visual. Falta-lhe a fluidez, aliás, dispensa-se essa atitude em prol de um desconforto voluntário. Mas este incómodo para com o olhar do espectador garante-lhe uma tendência de caos. Um vórtice caótico que nos oferece uma recompensa como solução final da metáfora. Um plano de constante transposição que serve de embate para todo este empregar de classes, com Lanthimos mais uma vez a utilizar os animais (neste caso os coelhos) para fabular o nosso foro sociológico.

É uma tentativa de emancipação a tudo o resto. Yorgos Lanthimos tenta reconstruir uma nova linguagem autoral dando frutos ao seu filme mais convencional, porém, diga-se de passagem, entusiasmante dentro do panorama atual de Hollywood.

Lanthimos, o caçador furtivo sem clemencia

Hugo Gomes, 22.05.17

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Yorgos Lanthimos incomoda, tira-nos o chão das nossas morais, desafia o politicamente correto e sob o jeito meticuloso e calculista conduz o espectador numa viagem para o além sentido. “The Killing of the Sacred Deer” é um filme frio, na sua teoria, onde as personagens, como é hábito na sua filmografia, comportam-se de forma mecanizada, operadas por um texto que não lhes condiz e movimentando planejadamente cada gesto.

Mas ao contrário do anterior “The Lobster”, a nova aventura de Lanthimos adquire um surpreendente sentimento de frivolidade colmatada, as personagens tentam gradualmente sair dos seus velcros, sonham alcançar a humanidade não reconhecida dos seus “bonecos”, até porque o realizador opera como um psicopata, psicologicamente falando, conhecendo as barreiras das éticas ocidentais e mesmo assim transpondo-as de livre vontade. Verdade seja dita, “The Killing of the Sacred Deer” não está longe do território do cinema de terror, muita vezes desafiante nessas questões morais, mas não estamos a referir um filme de terror, estamos a falar de uma estranha distopia de Lanthimos – não outra sociedade alternativa, e sim, a nossa realidade onde um elemento “alienígena”, algo impróprio, parece criar as suas raízes.

Tudo começa com um cardiologista (Colin Farrell), de família feita (esposa e dois filhos), que visita constantemente o filho de um falecido paciente, provavelmente culpado pela sua morte. O rapaz (Barry Keoghan) apresenta traumas psicológicos, o espectador fica na dúvida quanto a esses mesmos tormentos, até porque os maneirismos anormais confundem-se com a “normalidade” a lá Lanthimos (e do sempre colaborador argumentista Efthymios Filippou). Contudo, chega o momento em que percebemos que estes ciclos pretendidos corrompem-se quando o cardiologista é ameaçado por uma escolha. A escolha que o fará redefinir novamente como humano sentimental, ou talvez expondo a sua frieza no seu estado mais puro e esterilizado. Sim, essa escolha, essa difícil escolha requer a morte de um ente querido, e apenas ele terá que anunciar a sua mesma morte.

Lanthimos continua com o seu estilo obcecado pela estética, quase kubrickiana. Esta, limpa e mecanizada, uma banda sonora esquizofrênica (entre o rompante e minimalista, a condizer com o espírito do filme), personagens atípicas e aparentemente sem sopro de vidas, reféns da sua sociedade. A inovação de “Killing of the Sacred Deer” advém desse gradual rompimento com as suas próprias regras, conservando ainda o seu modo de provocar de maneira subtil, mas enganosamente explosiva o público. A vingança confrontada sob outra perspetiva e uma atormentada Nicole Kidman são os tiros certeiros para a morte deste “veado sagrado”.