Receita de iscas sem nenhum amor para dar
Por entre distopias desenfreadas e pratos esquisitos, Yorgos Lanthimos rumou para os EUA com o propósito de conquistar, não o agrado consensual, e sim, a repugnância enquanto espectáculo, garantindo essa formulação nos mais diferentes quadros, seja performativo, temático, visual ou até moralmente.
Entre ganhos e perdas, o ódio ao realizador grego tem sido a sua combustão, o seu presente envenenado ao espectador, que hoje lida com o desastre e mesmo assim recusa desviar o olhar. Nesse sentido, Lanthimos fala para nós, para a nossa sociedade, e dentro desse ramo dos assumidos provocateurs, sempre pontuado por produções excêntricas, conjuga um trabalho eficaz em captar audiências largas com um elenco estrelado (o isco à sua bizarria), muitos deles atores movidos pela atração de transfigurar os seus papeis-tipo, daí Emma Stone ser a sua “musa” nos últimos filmes (como também a estranha 'dançante' a todo o serviço).
Depois de algumas coroas de flores atiradas ao palco com “Poor Things”, adaptação de um livro de Alasdair Gray, Lanthimos prossegue em sociedades vis e disformes, conjuradas da sua realidade neste encontro antológico de três “contos” que tão bem transluzem os limites da devoção (regresso à colaboração com o argumentista conterrâneo Efthimis Filippou). Para isso, recorre a um elenco parcialmente fixo: Emma Stone, novamente, emborcada e de olhos vítreos, embriagados, a servir das três a raiz dos problemas, e no outro canto Jesse Plemons (tão sósia de Matt Damon) a concentrar-se em protagonistas de difícil empatia.
São “histórias de bondade”, como assinala o título em português com muito sarcasmo embrulhado; a história de um homem sem autonomia na sua vida, a de um marido que não reconhece a sua mulher retornada após dias desaparecida e de devotos de um culto qualquer que procuram uma espécie de messias. Três narrativas que exploram os devaneios de Lanthimos, no encontro indigesto das suas primeiras narrações - pontuados na sua frieza e, sobretudo, estranheza - são igualmente retalhos aparentemente sofisticados no sentido formal. A primeira, intitulada “The Death of R.M.F.”, é um abraço apertado às estéticas kubrickianas, essa demanda que Lanthimos inveja, aqui, olhando de soslaio às margens de “Eyes Wide Shut”, com o seu protagonista a pavonear por territórios estranhos que não lhe competem, um conto de devoção ao Poder, desse encarregado 1%, a “minoria” dominante segundo a lógica das hierarquização social.
Contrastado com a imperatividade da Família (a próxima devoção) no segundo trecho - “R.M.F. is Flying” - de contornos shyamalanianos e cuspidelas a sentimentos pasolinianos. Já no terceiro - “R.M.F. Eats a Sandwich”, é a Religião devota que comanda, sendo do tríptico o mais desengonçado esteticamente, onde se nota a clara ambição de Lanthimos em regressar ao seu estilo desconcertante dos trabalhos gregos. Os três, sempre embebidos num humor ácido de negritudes plenas, não escondem esse sorriso trocista do realizador em desafiar o espectador do seu conforto (rimos, muitas vezes embaraçosamente, do próprio embaraço ou da tragédia destas personagens sem um pingo de compaixão).
Não é "cinema confortável", está evidente, mas tem iscas a acompanhar um prato longe da iguaria, longe da calorosa refeição doméstica, uma mixórdia fria, descontente, disfuncional, concretizada através das sobras encontradas no frigorífico, algumas das quais expiradas, apenas 'disfarçadas' com temperos ativos. Existe, e daí ele não conseguir desenvelhiçar, um sentimento de “projetos na gaveta”, atados e vendidos como antológicos. A experiência dá-nos pouco, para além da provocação sobre a provocação.