Kinuyo Tanaka dirige o ator Shuji Sano em "The Moon Has Risen" (1955)
A distribuidora The Stone and the Plot prossegue a sua demanda em difusão de cinema nipónico, muito dele inédito, nas nossas salas comerciais. São propostas, que de certa maneira, surgem como catalisadores e incentivadores do nosso circuito comercial, diversas vezes refém das produções norte-americanas oriundas de estúdios megalomanos ou na imposição influenciada pelos festivais de cinema.
Depois dos mini-ciclos “Mestres Japoneses Desconhecidos”, Parte 1 e 2, chega-nos Kinuyo Tanaka, a primeira mulher a aventurar na realização na indústria japonesa pós-guerra (antes dela houve Tazuko Sakane, cujo espólio perdido até então). Tanaka, atriz e musa de alguns “mestres” hoje canonizados, como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Mikio Naruse e Keisuke Kinoshita - determinada em remexer o sistema cinematográfico da época, apoiada e acarinhada por muitos dos seus mentores, principalmente por Ozu e Naruse (o qual trabalhou como assistente de realização), e silenciosamente negada por Mizoguchi - concretizou um total de seis longas-metragens, focando principalmente nas perturbações político-sociais depois da Segunda Grande Guerra centrando-o no elemento feminino, a Mulher, mais que uma bandeira, o corpo como veremos, e magnificamente, em “The Eternal Breasts” (1955).
Desta maneira, a The Stone and the Plot convida-nos a “mergulhar” nas suas jornadas fílmicas, as três primeiras longas a chegar às nossas salas correspondem aos cronologicamente aos passos inaugurais, uma artesão em busca da sua voz autoral, que constantemente vai ao seu encontro e vice-versa.
E agora, algo completamente diferente … Kinuyo Tanaka!
Love Letter (1953)
Na sua primeira longa-metragem, “Carta de Amor” (“Love Letter”), Tanaka revela-nos um romantizado observatório a um Japão em inerente mudança, cuja derrota na Segunda Grande Guerra limite-a a uma relação de submissão para com o “estrangeiro”, nomeadamente os EUA (o filme é lançado um ano após a ocupação americana).
Nesta adaptação de um romance homónimo de Keisuke Kinoshita (também autor do argumento), somos guiado ao bairro de Shibuya, em Tóquio, pela mão de Reikichi (Masayuki Mori), um veterano de Guerra que ganha a vida a traduzir correspondência entre prostitutas e os seus soldados americanos com o intuito destas extorquir dinheiro, uma tarefa que não orgulha nem um pouco, porém, não impedindo-o de repreender moralmente as suas "clientes", exaltando um reprimido senso de nacionalismo, “tabu” num país de bandeira branca visível. Certo dia, Reikichi reencontra, acidentalmente, o amor de juventude, o seu Grande Amor, ela, Michiko (Yoshiko Kuga), casada por obrigação da família, agora viúva e com um passado “sujo” nestas andanças de “reconstrução social”.
“Carta de Amor” estabelece um romance quase naruseano para expressar a nacionalidade enamorada pelos seus triunfos passados, eternamente grato às memórias e sob desejos febris de reaver essa mesma glória. Mas a realidade embate, materializando-se num grupo de prostitutas, “corvos-humanos” que trovam feitos de sobrevivência e consequentemente o choque, a emergência de reencontro e o eventual desencontro. Ou seja, dentro de uma trágica história de amantes restringidos e retidos (belíssima sequência no comboio, fazendo antever a personalidade na câmara de Tanaka, ainda não despertada), temos um sintoma de um país vergado e inconsolado. A realizadora capta as dores com uma delicadeza ímpar, como também de uma crueldade pontuada, requisitando a fábula para a trair com a própria epifania. Japão em modo de adaptação? Talvez sim, como a personagem do livreiro a fim de expandir o seu negócio, com revistas e outras publicações “yankees” a servirem de mote para atração numa cultura híbrida a mercê no horizonte.
The Moon Has Risen (1955)
Ozuesco até à medula, e genuinamente, se não fosse o facto de estarmos perante um argumento da autoria do realizador de “Tôkyô Monogatari", e por si só aproveitado como uma homenagem da pupila a um dos seus mestres. Todo o universo do seu “professor” é aqui conservado, e não apenas a “família” que migra para outros hemisférios (Chishu Ryu, essa presença tão Ozu), como também a estética, a estrutura narrativa e a sua lógica (a salganhada de temas matrimoniais e tradicionais são novamente servidos).
Tanaka revira o holofote, as mulheres tornam-se gradualmente o centro neste emaranhado de enredos e subenredos de “casórios” e “arranjinhos”, e é sob esse signo feminino, e convém ressaltar rebelde, incorporado em Setsuko (Mie Kitahara), que saltitamos de “caso” a “caso”, as três filhas do patriarca Chishu Ryu (quem mais seria?) e os seus eventuais “nós” atados, em dramas de enganos e consolidações. Num bucolismo haiku, “A Lua Ascendeu” (“The Moon Has Risen”) nunca chega a roçar a genialidade devido ao seu encosto estilístico (câmara a meio metro do chão como manda a "bíblia Ozu”), e por mais boas intenções que isso traga, sentimo-nos perante uma variação de Ozu do que um salto ao eixo de Tanaka.
Embora seja um filme do qual não lhe negamos a inteligência (e possessão aos corpos das suas atrizes, incentivando-as a ‘rasgar’ os trajes milenares num gesto libertador), dialogando com o trabalho anterior como um desejo, cobiçando o regresso a Tóquio, à capital, ao progressismo, à terra das oportunidades ou simplesmente a proximidade para com o ocidente. A fuga é, porém, balanceada, os elementos ozuescos pesam nessa mesma balança, tentando invocar um Japão devotamente ancestral, os cânticos religiosos enquanto rituais de lés-a-lés marcam o compasso desta obra, são um memorando que aquele país existe e somente a juventude o deseja esquecer, não voluntariamente, mas por serem seduzidos às promessas feitas pela modernidade.
Tanaka observa o oásis como um elemento invisível e igualmente tangível, só que nada muda as suas pretensões, a capital nunca nos surge, nunca nos visita, é naquele espaço familiar (para a realizadora é, e com gratidão) que pretende ficar, instalar, mais do que meramente pernoitar, como a terceira e última das irmãs, viúva e “enclausurada” no seu “castelo”. O seu pai (Ryu, quem mais?) como a derradeira oferenda lhe permite reviver, voltar a casar (quem sabe?), só que a resposta negativa aufere um tom nostálgico, a última das últimas de pé firme naquele solo, rejeita qualquer evasão. Tal como a realizadora, vemos naquela mulher o seu statement. Ficamos com a homenagem, a partir daqui ganharemos uma autora por inteiro.
"The Eternal Breasts” (1955)
As essências de Naruse e de Ozu proveniente dos anteriores filmes são elementos que ficam à porta nesta esperada emancipação, Tanaka conquistou o seu lugar por direito através de uma mulher divorciada cujo cancro da mama converte os seus poemas numa espécie de quintessência literária … mas vamos por partes. Primeiro, não é delirante afirmar que “Para Sempre Mulher” (“The Eternal Breasts”) possui uma faceta muito Mizoguchi, até porque a fronteira delineadora do assombro e do mortal oscila, consequencialmente e inadvertidamente, mas o gesto em si não se fica pelo tributo como acontecera com “The Moon has Risen” em relação a Ozu, aqui a realizadora declara-se dona do seu próprio destino, e com isso provocando na sua protagonista a mais divina escadaria ao mártir, não religioso, mas espiritual.
Brilhantemente protagonizado por Yumeji Tsukioka, Fumiko Shimojô [uma poetisa real] é uma mulher desinteressada com um casamento desinteressante, árdua trabalhadora e mãe ocupada, procura apaziguar o seu descontentamento num clube de poesia da cidade. A sua adesão a este círculo de autores-amadores advém de uma paixão antiga, e não inconsolada de facto, com um dos organizadores, amigo de infância porventura. Certo dia, após "apanhar" em flagrante delito a traição do seu marido, se divorcia e mergulha num lastimável estado de melancolia. No clube, refere-se que a miserabilidade é aliada à poesia, sugerindo que a sua experiência com a dureza da vida a fará atingir com um outro patamar artístico.
Entretanto, o seu amigo / paixão secreta falece subitamente (numa despedida graciosa, quase inadjetivável, combinando uma paragem de autocarro, chuva e um travelling que confronta com a sua própria durabilidade), e porque uma “desgraça” nunca vem só, é diagnosticada com cancro na mama (em contexto imagético, filme ousa em dois precisos momentos, a da protagonista apalpar os seus próprios seios em busca de nódulos, e mais tarde, surgindo ao natural numa sala de operações a mercê da aptidão dos seus cirurgiões, a câmara que percorre corpos femininos de Tanaka não ostenta pudor e sexualização). É de peito desfigurado e num quarto de hospital, em paralelo os seus poemas atravessam o Japão conquistando um reconhecimento mórbido, que a nossa protagonista aprende, finalmente, a viver. A vida está-lhe por um fio, o corredor que nos direciona à morgue, constantemente saí do plano onírico, de sonho a pesadelo, de previsão a realidade. Mas é na vinda de um jornalista de Tóquio (sempre Tóquio!) que Fumiko descobre um prazer mórbido, a veneração (mais precisamente o de ser venerada) ou mais que isso, uma projeção do sexo enquanto conforto de almas.
A ternura quase cruel com que a mulher acaricia e aperta o seu corpo para com o do jovem jornalista, um adeus à carne e a tudo o resto. É nos seus últimos sopros que a nossa protagonista vive intensamente. O jeito fúnebre de pé pesado no melodrama ditará os últimos momentos, uma despedida sadomasoquista, apenas sucedido por um pesar que nos cola como “carraça” após a sua projeção. Contudo, não nos deixemos enganar pelo enredo sucedâneo de tragédias e miserabilidades, “The Eternal Breasts” é Cinema, feminino convém sublinhar (o argumento na pena de uma mulher, Sumie Tanaka, sem parentesco com a realizadora) que rima numa conjugação improvável a vida com a morte, aliás, foi na morte que mais vida esta mulher nos exibiu. O poema, esse que vai perseguindo o filme, relembrando o espectador, é só um “aperitivo” na longa estrofe com que Kinuyo Tanaka pinta com a sua câmara. Uma autêntica obra-prima!