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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os (Re)Encontros de Cinema do Fundão: uma força de atrito na cinéfila do nosso tempo

Hugo Gomes, 25.05.25

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Keoma (Enzo G. Castellari, 1976)

O Fundão quer-se cinéfilo!! Anotem nas vossas agendas: os 15º Encontros de Cinema do Fundão arrancam já no próximo dia 28 de maio, deixando para trás Agosto (o “querido mês” que acolheu as edições anteriores) e olhando para o verão de 2025 nos seus primeiros passos, para nos transmitir uma mensagem clara. À medida que o mundo muda a olhos vistos, e se pressentem períodos sombrios, o Cinema manter-se-á uma certeza.

Até 1 de Junho, A Moagem – Cidade do Engenho e das Artes (com apoio do Cineclube da Gardunha) estenderá a sua passadeira vermelha, recebendo convidados ilustres como Enzo G. Castellari e o madrileno Pablo García Canga, não apenas cabeças de cartaz, mas orientadores para a temática destes Encontros. Porque do grindhouse ao western, da poesia rural ao cinema a conservar e assimilar, da crítica à cinefilia das paixões — algo velado, pessoal — refletido fora das grandes cidades e dos centros culturais habituais.

Como já vem sendo tradição neste espaço, o Cinematograficamente Falando… desafiou José Oliveira, realizador e crítico, cinéfilo irrequieto, mas sobretudo programador, para desvendar o que se poderá antever desta nova jornada … deste Encontro ou (Re)Encontro.

Prosseguindo nas perguntas da anterior edição e tendo foco essa mesma, que desafios encontraram para os Encontros de Cinema do Fundão de 2025, em comparação com os de 2024?

Os desafios da programação são para nós iguais aos desafios da vida: tem de ser uma aventura. E tem de ser divertido, mesmo que seja bem duro. Não nos deixarmos ofuscar pelos brilhos do contemporâneo, mas sim escavar na história, tentar fazer um pouco de justiça, resgatar preciosas constelações há muito soterradas pelo imediatismo do espetáculo e do jornalismo (anti-jornalismo!) básico que nada tem a ver com a crítica nobre nem com qualquer tipo de paixão. O resto, como arranjar financiamentos e quem acredite, aparecerá. O que tem de ser (porque está certo) continua a ter muita força.

Enzo G. Castellari é um dos três realizadores convidados e à mercê de uma retrospectiva-homenagem. Pegando na estética do realizador: como é que o seu universo punk e barroco ressoa num espaço como o Fundão, onde a ruralidade e a memória histórica se entrelaçam? Há aqui uma espécie de fusão entre o grindhouse italiano e a melancolia beirã?

Obras-primas como o “Keoma” (1976) ou o “Johnny Hamlet” [“Quella sporca storia nel west”, 1968] poderiam ter sido feitas neste território, claro. Meios naturais gigantescos e omnívoros combinados com estruturas poeirentas e obsoletas existem a rodos. Talvez haja acordes, harmonias, sensações secretas e correspondências subterrâneas entre territórios e memórias. Talvez os montes e vales de Almeria ou de Abruzzo falem com estes, estejam ligados internamente ou espiritualmente. E sem dúvida que muitas das contendas políticas e puramente humanas são as mesmas… Mas a razão é que descobrimos, de repente, e como uma revelação óbvia e epifánica, que um dos maiores cineastas que alguma vez mexeu a câmara, uniu planos e deu significado às histórias e à História através dos puros e exclusivos meios cinematográficos, está aí para as curvas e gostou da nossa abordagem. 

Também é o grande representante vivo e a síntese de um cinema italiano inesquecível, operático, cheio de ação, risco, carregado de dramaturgia e de tragédia, de vitalidade e constante surpresa, onde pontificaram Sergio Leone, Sergio Sollima, Sergio Corbucci ou Lucio Fulci.  E como esquecer o seu trabalho com Franco Nero, Woody Strode, Fabio Testi, Henry Silva, Fred Williamson… os amadores e os duplos… Stefania Girolami, Ennio Girolami…

A retrospectiva de Pedro Ruivo levanta uma questão rara no cinema português: por que é que a ficção científica continua a ser tratada como um corpo estranho? “A Força do Atrito” (1993) será uma anomalia ou um prenúncio ignorado? Terá lugar nesta atual vertente de reavaliação do nosso património cinematográfico?

“A Força do Atrito” é tanto uma anomalia - no sentido dos grandes filmes portugueses únicos, desalinhados, protótipos e acabados em si mesmos - como um risco sem cálculo, visto que o realizador quis fazer tanto um comentário sobre os tempos da altura como um conto romântico da juventude eternamente à deriva. Um filme tão frágil como belo no sentido do cinema do Nicholas Ray – tem de ser frágil porque tudo dentro dele o é, desde o ambiente até à dimensão temporal, passando pelos seres planantes, e assim é belo pela sua verdade despida de subterfúgios. Na altura foi tratado como lixo por toda a gente, mas isto continua a ser o pão nosso de cada dia – quem não faz os contactos certos nem fala (e como deve ser) com as pessoas certas, quem não vai às festas nem pratica os lobbys oficiais, não vai aos “grandes” festivais nem tem a papinha da crítica toda feita. O que descobrimos na entrevista ao Pedro Ruivo é que é um homem e um cineasta honesto.

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A Força do Atrito (Pedro M. Ruivo, 1993)

Pablo García Canga propõe uma poética do silêncio e da palavra contida. Como é que o seu olhar dialoga com o legado de Ozu, especialmente num tempo em que o ruído parece ser o novo realismo dominante?

Creio que essa será uma boa questão para colocar ao Pablo García Canga no Fundão. Mas julgo que parte da resposta, pelo menos, está no seu magnífico livro "Ozu, Multitudes", que será apresentado no dia 1 de junho, na livraria Livros Tintos. É um dos mais belos e apaixonantes livros dedicados a um cineasta, onde os fotogramas dos filmes de Ozu são como cartas de tarot, permitindo efabulações, tergiversações, histórias, sobre a ilusão, a felicidade, as contradições, os segredos, a amizade, o cómico, a espera, o tempo que passa sem fazer ruído, etc., como se estivéssemos a ler (ou a ver através das palavras) um autêntico vade-mécum para a vida de todos nós. E às vezes o drama contido nos pequenos gestos e movimentos, como a lata que cai da escadaria em “Uma Galinha no Vento” (“A Hen in the Wind”, 1948) e que conta toda uma história. Como disse o Mário Fernandes, “se imaginarmos um Montaigne cinéfilo estaremos próximos deste maravilhoso e original livro de Pablo García Canga”. 

Estes encontros celebram também a cinefilia enquanto gesto coletivo. Que papel ainda pode ter um cineclube, como o Gardunha, num país onde a política cultural parece esquecer o interior?

Não temos pensamentos de inferioridade, programamos com toda a lógica e coração: como não temos cinema comercial no Fundão, tanto tentamos dar uma imagem do panorama actual, como estar atentos às injustiças, para que filmes como “A Força do Atrito” ou “O Movimento das Coisas” não precisem de esperar trinta anos para serem vistos como devem ser. Nos últimos anos tanto tivemos no Fundão o Víctor Erice como o Raul Domingues, o Pedro Costa como o Diogo Costa, tratando-os como iguais. Claro que as políticas desta cidade foram cruciais, mas temos de tentar fazer o melhor trabalho possível na recepção de cada cineasta e de cada obra, de cada músico ou convidado de outra área: desde a produção de textos, entrevistas, diálogos, espetáculos; sentindo que o tempo e o ar do interior propícia a delicadeza e a pulsão necessária para tudo isto. Mostrar o filme certo da maneira certa é uma questão grave.

Os concertos que evocam Castellari trazem uma performatividade sonora que ultrapassa a sala de cinema. Esta aproximação entre imagem e som pode ser vista como um novo tipo de crítica? Uma crítica que se faz com guitarras e distorção?

É uma boa imagem essa, obrigado. Será com certeza uma grande descarga sónica de emoções e de considerandos. Um novo tipo de crítica, com certeza. Tal como uma outra maneira de transmitir as sensações de algo que foi marcante. A Marta Ramos interpretará o tema-mãe de “Keoma”, que é um filme fascinante e obsessivo para ela tanto em termos dramatúrgicos como musicais, que no caso são inseparáveis. Ao longo dos anos ouvimos esse tema a reverberar na sua voz. E outros do Dylan, que obcecaram também o Castellari na montagem dos seus filmes. E assim, tal como o grande historiador Tag Gallagher disse recentemente na Cinemateca que deixou de escrever quando descobriu que conseguia mostrar com um plano o que muitas vezes necessitava de dizer em dez páginas, produzindo agora vídeos críticos e poéticos ao invés de textos, também a música parece um tipo de crítica muito mais forte do que a que lemos diariamente nos jornais ou na net.

Com “Há uma Sombra”, do realizador e poeta radicado no Fundão, Alejandro Pereyra, continua-se a explora a cinematografia que despoleta na região. Existe esforços, e se há frutos colhidos, sobre esse constante sublinhar do cinema fundanense?

Não creio que haja um "cinema fundanense". O que tem acontecido no Fundão nos últimos anos, felizmente, é uma concentração de cineastas muitos diversos e de diferentes gerações, que aqui residem ou que aqui têm produzido algumas das suas obras, muitas delas marcantes. Cineastas tão diferentes como Nelson Fernandes, João Dias, Rodolfo Pimenta, Joana Torgal, Manuel Mozos, Mário Fernandes, Marta Ramos, Alejandro Pereyra (poeta, músico e também realizador do agora programado “Há uma Sombra”), Aurélie Pernet, Raul Domingues, Manuel Melo, Leonor Noivo, Margaux Dauby, Gonçalo Mota, Mariana Neves, Hugo Pereira, Ana Pio, Fernando Carrolo, entre muitos outros. Creio que os Encontros de Cinema do Fundão também têm desempenhado um papel de relevo na atracção e descoberta da região por vários destes cineastas, uns mais conhecidos, outros mais invisíveis que importa revelar. É realmente uma sorte, ou talvez não seja uma questão de sorte, se olharmos para a história cinematográfica do concelho do Fundão

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La nuit d’avant (Pablo García Canga, 2019)

Recordemos, a título de exemplo, que há registos de projecções de filmes no Fundão desde 1903; que o cartoonista, escritor e pintor José Vilhena realizou aqui o seu único filme, “O 5º Pecado” (1959), antecipando nalguns aspectos o que viria a ser o cinema novo; que o Jornal do Fundão teve quase desde o início crítica de cinema (um dos primeiros jornais portugueses a defender realizadores tão diferentes como Manoel de Oliveira ou Sam Peckinpah, quando estavam longe de ser consensuais); que o “Jaime” do António Reis teve a sua primeira exibição pública no Cineteatro Gardunha do Fundão, em Janeiro de 1974, com a presença do próprio António Reis, mas também de Fernando Lopes, Margarida Cordeiro, Carlos Paredes, Eugénio de Andrade, José Cardoso Pires, Lagoa Henriques, Óscar Lopes, Alice Vieira, etc; que à época, por iniciativa da equipa do IMAGO - Festival Internacional de Cinema, o Fundão teve um dos primeiros festivais do país dedicados exclusivamente ao cinema documental - o Festival Dok. Portanto, diria que o filme do Alejandro Pereyra é um dos frutos colhidos de uma árvore imensa com diversas ramificações. 

Voltando a uma questão recorrente, mas quem sabe: há planos de expansão, de alguma forma, do Encontros de Cinema do Fundão em edições futuras?

Existe todos os anos uma extensão na Cinemateca Portuguesa, e este ano não fugirá à regra. De resto, não há planos para aumentar ou diminuir os Encontros, mas apenas, reforço, embarcar sempre numa aventura, rio ou montanha acima ou abaixo, para que depois o público possa participar em eventuais perigos ou maravilhas.

Toda a programação poderá ser consultada aqui

Yoshiko Kuga (1931-2024)

Hugo Gomes, 15.06.24

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Cruel Story of Youth (Nagisa Oshima, 1960)

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The Woman in the Rumor (Kenji Mizoguchi, 1954)

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Love Letter (Kinuyo Tanaka, 1953)

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Com o ator Keiji Sada em "Good Morning" / "Ohayu" (Yasujiro Ozu, 1959)

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Com Yasujiro Ozu na rodagem de "Equinox Flower" / "Higanbana" (1958)

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Equinox Flower / Higanbana (Yasujiro Ozu, 1958)

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Drunken Angel (Akira Kurosawa, 1948)

Para Sempre Tanaka!

Hugo Gomes, 04.04.23

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Kinuyo Tanaka dirige o ator Shuji Sano em "The Moon Has Risen" (1955)

A distribuidora The Stone and the Plot prossegue a sua demanda em difusão de cinema nipónico, muito dele inédito, nas nossas salas comerciais. São propostas, que de certa maneira, surgem como catalisadores e incentivadores do nosso circuito comercial, diversas vezes refém das produções norte-americanas oriundas de estúdios megalomanos ou na imposição influenciada pelos festivais de cinema. 

Depois dos mini-ciclos “Mestres Japoneses Desconhecidos”, Parte 1 e 2, chega-nos Kinuyo Tanaka, a primeira mulher a aventurar na realização na indústria japonesa pós-guerra (antes dela houve Tazuko Sakane, cujo espólio perdido até então). Tanaka, atriz e musa de alguns “mestres” hoje canonizados, como Kenji Mizoguchi, Yasujiro Ozu, Mikio Naruse e Keisuke Kinoshita - determinada em remexer o sistema cinematográfico da época, apoiada e acarinhada por muitos dos seus mentores, principalmente por Ozu e Naruse (o qual trabalhou como assistente de realização), e silenciosamente negada por Mizoguchi - concretizou um total de seis longas-metragens, focando principalmente nas perturbações político-sociais depois da Segunda Grande Guerra centrando-o no elemento feminino, a Mulher, mais que uma bandeira, o corpo como veremos, e magnificamente, em “The Eternal Breasts” (1955). 

Desta maneira, a The Stone and the Plot convida-nos a “mergulhar” nas suas jornadas fílmicas, as três primeiras longas a chegar às nossas salas correspondem aos cronologicamente aos passos inaugurais, uma artesão em busca da sua voz autoral, que constantemente vai ao seu encontro e vice-versa. 

E agora, algo completamente diferente … Kinuyo Tanaka!

 

Love Letter (1953)

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Na sua primeira longa-metragem, “Carta de Amor” (“Love Letter”), Tanaka revela-nos um romantizado observatório a um Japão em inerente mudança, cuja derrota na Segunda Grande Guerra limite-a a uma relação de submissão para com o “estrangeiro”, nomeadamente os EUA (o filme é lançado um ano após a ocupação americana). 

Nesta adaptação de um romance homónimo de Keisuke Kinoshita (também autor do argumento), somos guiado ao bairro de Shibuya, em Tóquio, pela mão de Reikichi (Masayuki Mori), um veterano de Guerra que ganha a vida a traduzir correspondência entre prostitutas e os seus soldados americanos com o intuito destas extorquir dinheiro, uma tarefa que não orgulha nem um pouco, porém, não impedindo-o de repreender moralmente as suas "clientes", exaltando um reprimido senso de nacionalismo, “tabu” num país de bandeira branca visível. Certo dia, Reikichi reencontra, acidentalmente, o amor de juventude, o seu Grande Amor, ela, Michiko (Yoshiko Kuga), casada por obrigação da família, agora viúva e com um passado “sujo” nestas andanças de “reconstrução social”. 

Carta de Amor” estabelece um romance quase naruseano para expressar a nacionalidade enamorada pelos seus triunfos passados, eternamente grato às memórias e sob desejos febris de reaver essa mesma glória. Mas a realidade embate, materializando-se num grupo de prostitutas, “corvos-humanos” que trovam feitos de sobrevivência e consequentemente o choque, a emergência de reencontro e o eventual desencontro. Ou seja, dentro de uma trágica história de amantes restringidos e retidos (belíssima sequência no comboio, fazendo antever a personalidade na câmara de Tanaka, ainda não despertada), temos um sintoma de um país vergado e inconsolado. A realizadora capta as dores com uma delicadeza ímpar, como também de uma crueldade pontuada, requisitando a fábula para a trair com a própria epifania. Japão em modo de adaptação? Talvez sim, como a personagem do livreiro a fim de expandir o seu negócio, com revistas e outras publicações “yankees” a servirem de mote para atração numa cultura híbrida a mercê no horizonte. 

 

The Moon Has Risen (1955)

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Ozuesco até à medula, e genuinamente, se não fosse o facto de estarmos perante um argumento da autoria do realizador de “Tôkyô Monogatari", e por si só aproveitado como uma homenagem da pupila a um dos seus mestres. Todo o universo do seu “professor” é aqui conservado, e não apenas a “família” que migra para outros hemisférios (Chishu Ryu, essa presença tão Ozu), como também a estética, a estrutura narrativa e a sua lógica (a salganhada de temas matrimoniais e tradicionais são novamente servidos). 

Tanaka revira o holofote, as mulheres tornam-se gradualmente o centro neste emaranhado de enredos e subenredos de “casórios” e “arranjinhos”, e é sob esse signo feminino, e convém ressaltar rebelde, incorporado em Setsuko (Mie Kitahara), que saltitamos de “caso” a “caso”, as três filhas do patriarca Chishu Ryu (quem mais seria?) e os seus eventuais “nós” atados, em dramas de enganos e consolidações. Num bucolismo haiku, “A Lua Ascendeu” (“The Moon Has Risen”) nunca chega a roçar a genialidade devido ao seu encosto estilístico (câmara a meio metro do chão como manda a "bíblia Ozu”), e por mais boas intenções que isso traga, sentimo-nos perante uma variação de Ozu do que um salto ao eixo de Tanaka

Embora seja um filme do qual não lhe negamos a inteligência (e possessão aos corpos das suas atrizes, incentivando-as a ‘rasgar’ os trajes milenares num gesto libertador), dialogando com o trabalho anterior como um desejo, cobiçando o regresso a Tóquio, à capital, ao progressismo, à terra das oportunidades ou simplesmente a proximidade para com o ocidente. A fuga é, porém, balanceada, os elementos ozuescos pesam nessa mesma balança, tentando invocar um Japão devotamente ancestral, os cânticos religiosos enquanto rituais de lés-a-lés marcam o compasso desta obra, são um memorando que aquele país existe e somente a juventude o deseja esquecer, não voluntariamente, mas por serem seduzidos às promessas feitas pela modernidade. 

Tanaka observa o oásis como um elemento invisível e igualmente tangível, só que nada muda as suas pretensões, a capital nunca nos surge, nunca nos visita, é naquele espaço familiar (para a realizadora é, e com gratidão) que pretende ficar, instalar, mais do que meramente pernoitar, como a terceira e última das irmãs, viúva e “enclausurada” no seu “castelo”. O seu pai (Ryu, quem mais?) como a derradeira oferenda lhe permite reviver, voltar a casar (quem sabe?), só que a resposta negativa aufere um tom nostálgico, a última das últimas de pé firme naquele solo, rejeita qualquer evasão. Tal como a realizadora, vemos naquela mulher o seu statement. Ficamos com a homenagem, a partir daqui ganharemos uma autora por inteiro. 

 

"The Eternal Breasts” (1955)

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As essências de Naruse e de Ozu proveniente dos anteriores filmes são elementos que ficam à porta nesta esperada emancipação, Tanaka conquistou o seu lugar por direito através de uma mulher divorciada cujo cancro da mama converte os seus poemas numa espécie de quintessência literária … mas vamos por partes. Primeiro, não é delirante afirmar que “Para Sempre Mulher” (“The Eternal Breasts”) possui uma faceta muito Mizoguchi, até porque a fronteira delineadora do assombro e do mortal oscila, consequencialmente e inadvertidamente, mas o gesto em si não se fica pelo tributo como acontecera com “The Moon has Risen” em relação a Ozu, aqui a realizadora declara-se dona do seu próprio destino, e com isso provocando na sua protagonista a mais divina escadaria ao mártir, não religioso, mas espiritual. 

Brilhantemente protagonizado por Yumeji Tsukioka, Fumiko Shimojô [uma poetisa real] é uma mulher desinteressada com um casamento desinteressante, árdua trabalhadora e mãe ocupada, procura apaziguar o seu descontentamento num clube de poesia da cidade. A sua adesão a este círculo de autores-amadores advém de uma paixão antiga, e não inconsolada de facto, com um dos organizadores, amigo de infância porventura. Certo dia, após "apanhar" em flagrante delito a traição do seu marido, se divorcia e mergulha num lastimável estado de melancolia. No clube, refere-se que a miserabilidade é aliada à poesia, sugerindo que a sua experiência com a dureza da vida a fará atingir com um outro patamar artístico.  

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Entretanto, o seu amigo / paixão secreta falece subitamente (numa despedida graciosa, quase inadjetivável, combinando uma paragem de autocarro, chuva e um travelling que confronta com a sua própria durabilidade), e porque uma “desgraça” nunca vem só, é diagnosticada com cancro na mama (em contexto imagético, filme ousa em dois precisos momentos, a da protagonista apalpar os seus próprios seios em busca de nódulos, e mais tarde, surgindo ao natural numa sala de operações a mercê da aptidão dos seus cirurgiões, a câmara que percorre corpos femininos de Tanaka não ostenta pudor e sexualização). É de peito desfigurado e num quarto de hospital, em paralelo os seus poemas atravessam o Japão conquistando um reconhecimento mórbido, que a nossa protagonista aprende, finalmente, a viver. A vida está-lhe por um fio, o corredor que nos direciona à morgue, constantemente saí do plano onírico, de sonho a pesadelo, de previsão a realidade. Mas é na vinda de um jornalista de Tóquio (sempre Tóquio!) que Fumiko descobre um prazer mórbido, a veneração (mais precisamente o de ser venerada) ou mais que isso, uma projeção do sexo enquanto conforto de almas.

A ternura quase cruel com que a mulher acaricia e aperta o seu corpo para com o do jovem jornalista, um adeus à carne e a tudo o resto. É nos seus últimos sopros que a nossa protagonista vive intensamente. O jeito fúnebre de pé pesado no melodrama ditará os últimos momentos, uma despedida sadomasoquista, apenas sucedido por um pesar que nos cola como “carraça” após a sua projeção. Contudo, não nos deixemos enganar pelo enredo sucedâneo de tragédias e miserabilidades, “The Eternal Breasts” é Cinema, feminino convém sublinhar (o argumento na pena de uma mulher, Sumie Tanaka, sem parentesco com a realizadora) que rima numa conjugação improvável a vida com a morte, aliás, foi na morte que mais vida esta mulher nos exibiu. O poema, esse que vai perseguindo o filme, relembrando o espectador, é só um “aperitivo” na longa estrofe com que Kinuyo Tanaka pinta com a sua câmara. Uma autêntica obra-prima!

Cada um com a sua infância, cada um com o seu Cinema

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Good Morning (Yasujiro Ozu, 1959)

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The Childhood of a Leader (Brady Corbet, 2015)

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Capernaum (Nadine Labaki, 2018)

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Wadjda (Haifaa Al-Mansour, 2012)

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Home Alone (Chris Columbus, 1990)

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The White Ribbon (Michael Haneke, 2009)

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Let the Right One in (Thomas Alfredson, 2008)

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Little Fugitive (Ray Ashley & Morris Engel, 1953)

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The Florida Project (Sean Baker, 2017)

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The Sixth Sense (M. Night Shyamalan, 1999)

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The 400 Blows / Les Quatre Cents Coups (François Truffaut, 1959)

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The Kid (Charlie Chaplin, 1921)

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The Last Emperor (Bernardo Bertolucci, 1987)

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Zero to Conduite / Zéro de conduite: Jeunes diables au collège (Jean Vigo, 1933)

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Bicycle Thieves / Ladri di Biciclette (Vittorio di Sica, 1948)

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Village of the Damned (John Carpenter, 1995)

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My Life as a Zucchini / Ma vie de Courgette (Claude Barras, 2016)

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The Boy with Green Hair (Joseph Losey, 1948)

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Aniki Bóbó (Manoel de Oliveira, 1942)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Cinema Paradiso / Nuovo Cinema Paradiso (Giuseppe Tornatore, 1988)

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Come and See (Elem Klimov, 1985)

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Pather Panchali (Satyajit Ray, 1955)

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E.T. the Extra-Terrestrial (Steven Spielberg, 1982)

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André Valente (Catarina Ruivo, 2004)

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Ivan's Childhood (Andrei Tarkovsky, 1962)

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Nana (Valérie Massadian, 2011)

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Pixote, a Lei do Mais Fraco (Hector Babenco, 1981)

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Poltergeist (Tobe Hooper, 1982)

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800 Balas (Álex de la Iglésia, 2002)

Arranca o Close-Up, Observatório de Cinema em Vila Nova de Famalicão

Hugo Gomes, 16.10.16

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Steamboat Bill, Jr. (Charles Reisner & Buster Keaton, 1928)

Vila Nova de Famalicão será, durante os próximos quatro dias, o derradeiro Observatório de Cinema, o Close-Up, para ser mais exato. E é já a partir de amanhã (27 de outubro), que esta iniciativa projetada pelo Cineclube de Joane, arrancará com uma impressionante programação de filmes e eventos paralelos, que ligam o passado, presente e futuro do Cinema. Reflexões sobre a Sétima Arte, os primórdios em jeito de arqueologia, assim como os caminhos a seguir ou previsivelmente a instalar-se, muitos convidados e uma mostra selecionada de filmes, com principal ênfase às produções nacionais, dividido em oito sessões temáticas, preencherão a Casa das Artes da cidade.

Temos como principal destaque o ciclo “Noite e Nevoeiro – 70 anos de Imagens do Holocausto“, que tal como o título focará sobretudo no registo cinematográfico e documental dos horrores cometidos na Segunda Guerra Mundial. Inserido na sessão Paisagens Temáticas, neste espaço serão exibidos filmes, que vão desde o recente e premiado “Saul Fia”, de László Nemes, sobre um prisioneiro de Auschwitz que reencontra a sua Humanidade até ao mais novo trabalho de Sérgio Tréfaut, “Treblinka”, um testemunho materializado daqueles que partiram contra em comboios cujos destinos são impensáveis. Passando pelo biográfico “Hannah Arendt”, de Margarethe Von Trotta, sobre a mulher por detrás dos pensamentos da Banalidade do Mal, até chegar, por fim, ao documentário “The Decent One”, de Vanessa Lapa, que retrata a vida de Heinrich Himmler, o mentor da chamada “Solução Final”, o extermínio dos judeus. Elena Piatok, diretora do Judaica: Festival de Cinema e Cultura, e a jornalista e escritora Clara Ferreira Alves, serão as oradoras.

Em “Fantasia Lusitana “, espera-nos sete filmes que no seu todo formam um quadro, quer etnográfico, quer artístico de um país. É uma seleção de documentários nacionais sobre pessoas, animais, lugares e estados, escolhidos a dedo e interligados de alguma forma. Destaca-se as exibições do filme-testamento de Manoel de Oliveira, “Visita ou Memórias e Confissões”, seguido pela homenagem de João Botelho ao “mestre” em “O Cinema, Manoel de Oliveira e Eu”.

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Saul Fia (László Nemes, 2015)

Dois dos mais venerados autores japoneses, Yasujiro Ozu e Isao Takahata, serão analisados e reavaliados nesta edição de Histórias de Cinema. De um lado, o dramático e emocionalmente expoente Ozu, um realizador marcado pela sua maneira inconfundível de filmar, planificar e dirigir os seus atores sobre um conjunto de falsos raccords. E do outro “canto”, Takahata, um dos mestres da animação nipónica, que poderá não ter gozado da mesma aclamação que o seu colega Hayao Miyazaki desfrutou, mas que mesmo assim, se apresenta como o criador de algumas das mais emotivas obras da Ghibli Studios. Animação e ação real, duas dimensões entrepostas neste olhar pelo cinema japonês.

Um dos mais ascendentes cineastas brasileiros da atualidade será homenageado no Close-Up. Serão cinco, as obras exibidas nesta secção Cinema do Mundo, dedicada ao “outro Brasil” de Gabriel Mascaro. Nesta retrospetiva poderemos encontrar os muito aclamados “Ventos de Agosto”, um atípico romance de verão, e o recente Boi Neon, que nos leva ao outro lado dos rodeos brasileiros sob uma confrontação com a própria ode da masculinidade.

O resto da programação será constituída por sessões direcionadas para escolas, com foco principal no tema da juventude. Vale a pena salientar que a primeira longa-metragem de Andrei Tarkovsky, "Ivan 's Childhood”, encontra-se integrada no programa. Para além disso, está agendado uma Oficina de Animação dedicada aos mais novos. Close-Up ainda exibirá uma sessão especial de O Ornitólogo”, a quinta longa de João Pedro Rodrigues que remete o espectador a uma viagem esotérica de um observador de pássaros, perdido nas encostas do Douro.

Por fim, como sessão de abertura, temos um “double bill” constituído pelo filme-concerto “Steamboat Bill, Jr”., um dos grandes clássicos do “rei do slapstickBuster Keaton, será transformado sob a vertente musical de Bruno Pernadas. E “Cinco para Kiarostami”, o filme-homenagem a Abbas Kiarostami, o cineasta iraniano que infelizmente nos deixou recentemente, uma produção da Casa das Artes e do Cineclube de Joane, com direção de Vítor Ribeiro e Mário Macedo.