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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Xia Magnus: "O cinema é no seu melhor quando nos faz sentir, e o género de terror é extremamente afetivo"

Hugo Gomes, 25.01.20

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Uma das grandes apostas da competição do Festival de Slamdance é Xia Magnus, que chega-nos com um não convencional filme de terror, Sanzaru.

No filme seguimos um quarteto de personagens, cada uma delas desafiada a lidar com os seus fantasmas. Esta primeira longa-metragem leva-nos ao coração de uma América que ainda não superou os seus demónios interiores e que negligencia a sua solução.

Conversei com uma das promessas do cinema de género nos EUA Xia Magnus – porém, ele próprio despreza essa atitude de diferenciação. O terror como metáfora, como manifestação individual e sobretudo como materialização de traumas, tudo reunido em “Sanzaru”, a mais sombria conversão do provérbio dos três macacos sábios (“não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal“).

Para uma primeira longa-metragem, porquê o género do terror como inauguração?

Sempre adorei filmes de terror. Adorava ter medo quando era criança e acho que é porque o medo é uma emoção tão pura. Na vida quotidiana, definitivamente, não temos o controlo sobre isso. Mas quando o transformamos em arte, podemos possuí-lo, dizer ao medo o que fazer. É como domesticar uma besta selvagem, é um tipo de proteção. Na minha primeira longa-metragem, sabia que iria trabalhar com recursos limitados. O meu pensamento era que poderia alcançar o tipo de história que queria, isto se pudesse manter-me contido num único local.

Além disso, sou atraído por histórias em que o antagonista é um lugar ou uma circunstância. Assim, uma casa assombrada parecia óbvia! Isso deu-me tempo e precisava colaborar com os atores e manter o foco nas personagens e nas suas ações. Eu não iniciei este projeto tendo a perceção de estar a escrever um filme de terror, apenas começou a tornar-se obscuro e como tal o “Sr. Sanzaru” apresentou-se para mim. Na altura percebi: “bem, esta será uma história assustadora“.

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Como sabe, o género de terror nem sempre é um exercício lúdico, existe em muitos casos uma intenção de metáfora ou de repreensão dos nossos medos. Em “Sanzaru”, esse olhar ao nosso redor é uma espécie de ponto de partida.

Certamente. Acho que qualquer bom filme tem algo em mente, algo a dizer. Todas as histórias têm metáforas, mas acho que são mais eficazes quando o autor não fica muito prescritivo sobre o seu significado. Uma metáfora pode variar o seu significado para diferentes pessoas, é isso que as torna tão poderosas. Direi que, quando se trata de mudar, devemos sempre começar a olhar para nós mesmos.

Gostaria que me falasse sobre a sua decisão na “materialização” do sobrenatural. A nível estético, a sua entidade tem algo de semelhante com o Diabo de “Post Tenebras Lux”, de Carlos Reygadas, até porque ambos apresentam uma artificialidade propositada.

Sim! Reygadas foi definitivamente uma referência visual. Queríamos trazer algo surreal, com qualidade onírica à maneira como o sobrenatural se manifesta. Por mais que refletimos sobre fantasmas, uma verdadeira assombração só é real para a pessoa que a experimenta. É um evento psicológico. Imaginei que duas pessoas não a experimentariam da mesma maneira. Os espíritos em “Sanzaru” apresentam-se diferentemente para cada personagem, portanto, era importante fazê-los parecer visões, não manifestações objetivas.

O que é o medo para si? Pretende manter-se no género de terror ou explorar novos territórios cinematográficos?

O cinema é no seu melhor quando nos faz sentir, e o género de terror (especialmente quando é fundamentada num drama real) é extremamente afetivo. Acho que reduzir tudo a géneros é geralmente uma maneira de comercializar um filme, não façam isso. Nesse sentido, todos os filmes têm um género. Os dramas de maioridade têm tantos “rodriguinhos” e clichés como os filmes de terror. O género estabelece uma estrutura para o público abordar o seu filme com um conjunto de expectativas. Adorava trabalhar dentro da estrutura de horror e, se tiver sorte, poderei fazê-lo novamente. Dito isto, espero ter a sorte de experimentar a minha assinatura em outros géneros também. De momento estou a escrever um neo-western.

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Quer falar-me mais sobre esse neo-western?

É sobre uma mulher que tenta libertar o seu filho de um grupo de supremacia masculina. As coisas vão ficar tensas … eu tenho um outro projeto no forno também. Definitivamente, mais virão!

Quanto ao casting? Como escolheu os seus atores?

Tive muita sorte! Eu “caçava” a Aina [que interpreta a protagonista, “Evelyn”] online depois que vi o seu showreel. Ela fez o teste e soubemos imediatamente que queríamos trabalhar com ela. Justin [que interpreta Clem] veio até nós através de um dos nossos produtores. Eu estava apenas a procurar por pessoas com quem queria colaborar. Era um cenário muito íntimo, então sabia que precisávamos que todos estivessem na mesma página.

Na minha interpretação, “Sanzaru” é um filme sobre o trauma. Os traumas que não pretendemos e que não conseguimos superar. De certa forma, encontramos neste seu filme um pequeno retrato dos EUA hoje em dia, um país de traumas profundos e sem incapacidade de superá-los.

O trauma é uma das principais palavras-chave nos EUA neste momento. Estamos publicamente a lutar com gerações de merda constituídas por pessoas de merda. Às vezes, pode ser um pouco esmagador, mas é um trabalho importante a ser feito como sociedade. Acho que nada mudará fundamentalmente até que realmente possamos abordar os traumas subjacentes nos quais a América se baseia. Ou seja, genocídio e escravidão. Trauma gera trauma, ações de merda causam reações de merda. Está tudo conectado.

"Sanzaru": pelos traumas profundos do terror

Hugo Gomes, 20.01.20

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A grande força deste “Sanzaru” situa-se no que não é dito e no que é invisível aos nossos olhos. Xia Magnus estreia-se nas longas-metragens com um híbrido dramático no dito cinema de género: um terror psicológico que intersecta na artificialidade com que aborda o sobrenatural, da mesma forma que Reygadas executou no seu delirante “Post Tenebras Lux”, sem receio em contornar a credibilidade.

O enredo centra-se numa “anciã” (Jayne Taini) que resiste em vão à demência numa casa isolada algures no Texas. O filho (Justin Arnold) desta refugia-se numa caravana nesse mesmo terreno, tentando exorcizar o stress pós-traumático de uma guerra no Médio Oriente. A casa, esse esconderijo para os segredos mais obscuros, pelas entidades misteriosas que são tudo menos passageiras e pelos fantasmas que assombram as ‘vivalmas’, é “guardada” por Evelyn (Aina Dumlao) e o seu irmão Amos (Jon Viktor Corpuz), dois filipinos, cada um com segredos, os quais tentam manter seguros nas sombras.

Como se pode verificar, num prisma generalizado, este é um filme que retrata um meio caminho para a regressão, personagens sob o selo dos traumas que se confrontam perante o iminente desvendar deles. Um pouco ao sabor do título, “Sanzaru”, que segundo Xia Magnus refere-se à designação japonesa do provérbio dos três sábios macacos (não ouça o mal, não fale o mal e não veja o mal), um símbolo de uma passividade harmonizada do budismo. E é sobre essa “cantiga” que percebemos a essência e a construção desta obra que foge sobretudo do óbvio modelo das “casas assombradas” ou das permanências do terror fácil e didático. A “Sanzaru” apenas falta-lhe uma expressividade quanto ao seu terceiro ato, que surge algo apressado perante um desenvolvimento em lume brando que tenta sintetizar os dramas pessoais e com isso entregar-nos figuras que correspondem ao ente trágico de toda esta variação de género.

Como primeira longa-metragem, Xia Magnus vai num bom caminho. O aprumo, isso, é algo que poderá surgir em próximas jornadas. Por enquanto, eis uma proposta de alguma forma exótica num certo tipo de terror norte-americano, aquele que não “lambe” as feridas de uma nação, mas que “escarafuncha o dedo” nelas, de uma América, mais que tudo, traumatizada.