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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Um cruzeiro chamado Europa

Hugo Gomes, 28.09.22

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A Palma de Ouro soa-nos cuspida, mas em certa parte entende-se os dilemas que aquele júri enfrentou ao indiciar o seu premiado máximo. Ruben Ostlund é um provocador, incita inquietação no espectador enquanto o obriga a debater com os seus próprios medos sociais, um declínio da sociedade ocidental com os seus ritos padronizados como algo garantido. 

Em “The Square”, o “dedo na ferida” levou-nos aos limiares das fronteiras artísticas, no qual, segundo a sua tese imposta por sketches, o limite da arte ou a existência dela (“o que é a arte?”, essa questão que nos assombra), é de mera subjetividade, o cerco encontra-se na nossa própria consciência. O ensaio, em si, rendeu-lhe a primeira Palma em Cannes, atribuída por um júri presidido por Pedro Almodóvar (o que posteriormente confessou preferência no “120 Battements par Minute” de Robin Campillo), mas é à segunda distinção na Riviera Francesa que começamos a delinear um perfil quase patológico, o fazer do cinema, ou o formato de metragem, nas suas “tirinhas cartunescas", episódios de aguçadas lâminas lançadas aos espectros de um decadente ocidente. 

Quanto a “Triangle of Sadness”, outra geometria, envolve-nos no seu solipsismo umbiguista, apronta-se como uma viagem de cruzeiro, cuja embarcação dá-se pelo nome de Europa, não no sentido literal, mas figurativo. Que Europa é essa? A Europa da "culpa branca”. A Europa conformista que brama “igualdade” perante a sua própria indignação. Uma Europa de luxos. Uma Europa de castas. Uma Europa dividida em ideologias e  com constante receio de que as mesmas se materializem em naufrágios. Uma Europa comandada por um embriagado (tão metaforicamente representado por Woody Harrelson, talvez o único que tenha realmente se divertido com isto tudo). A Europa é por si o tema, a dissecação, a satirização, a crítica ácida nesta balbúrdia repugnante, de risos forçados e embaraçosos, de dicotomias diluídas que qualquer mãe facilmente rejeitaria (chora-se pelo cadáver e simultaneamente lhe rouba as jóias). São aproximadamente duas horas e meia de cuspidelas para o ar que nos atingem na própria face e que, mesmo assim, adoramos apelidar de “chuva”. Fora isso, é um filme de um ritmo atroz, o "Triângulo" não possui lados idênticos, afunda-se à primeira oportunidade (falo novamente sob uma luz figurativa e literal), a “terra à vista” opera como a “morte do seu artista” (até aqui já percebemos a cerne crítica, não era necessário esticar ainda mais a “corda” narrativa). 

Contudo, isto faz-nos pensar como as Palmas de Ouro são geradas. Serão frutos da nossa contemporaneidade? Talvez sim! Com uma pandemia que nos conscientizou ainda mais sobre os nossos privilégios e na díspar distância entre classes, seja normal que Ruben Ostlund tenha conquistado, e novamente tal estado de graça, perante o grupo de jurados (desta feita, presididos por Vincent Lindon). Foram diálogos diretos que os obrigaram a olhar para os seus respectivos umbigos, num exercício seguido pela observação dos seus arredores, do contraste culmina o ressentimento. Eis uma comédia risivelmente negra sobre o nosso estado. 

"Venom: Let There Be Carnage!: quando o cinema é somente "carne pra canhão" ...

Hugo Gomes, 12.10.21

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O primeiro “Venom” do Universo Cinematográfico Marvel da Sony que germina em paralelo com o do Marvel da Disney não foi, de todo, uma obra-prima do subgénero. Nem sequer uma variação que rompesse as suas próprias convenções. Tratou-se, sim, de um espetáculo graficamente dependente do CGI anexado a um enredo atrapalhado e simplista. Era mesmo em Tom Hardy que se concentrava o grande “mas” que recomendava ver todo aquele espetáculo anónimo.

Já por essa altura (2018) a sequela estava prometida e com um dos mais desejados vilões do universo do Homem-Aranha: Carnage/Carnificina. Os produtores contrataram Woody Harrelson para viver o monstro e o ator criou um "serial killer" entusiasta que invoca o de “Natural Born Killers” de Oliver Stone em doses amnésicas e aceitáveis para gerações órfãos de tal cinefilia. O resto, aqui deixado à mercê da direção de Andy Serkis (o ator profundamente ligado ao motion capture via "The Lord of the Rings", "King Kong" ou "Planet of the Apes") é uma salganhada visual, uma praia artificial em todo o seu esplendor, como se confirma num clímax igual ao de um frenético videojogo.

Nem mesmo Tom Hardy e o dinâmico jogo entre "slapstick" e “underdog” (em constante atrito com o seu parasita “irmão” Venom, o "bromance" latente) ou o deliciosamente sádico Woody Harrelson, conseguem resgatar este novo "Venom" da sua inconsequente existência. Mesmo que a sequela assuma a sua patetice com uma defensável impotência, tudo implode na ânsia de se lançar para novos horizontes industriais no Universo Marvel, nem que, para isso, tenha que se vender a alma à possessão tecnológica.

A Estátua da Liberdade já se vê ao longe ...

Hugo Gomes, 14.07.17

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Em tempos existia um pássaro que encontrou refúgio numa ilha, remota e intocável pelo tempo, onde nenhuma ameaça pairava naquele reduto paradisíaco. A ave nidificou aí, viveu feliz por gerações, levando uma vida sem preocupações nem temores. O seu corpo habituou-se a tal “pasmaceira”, engordou, perdeu a capacidade de voo, assim como o instinto de sobrevivência. Algum tempo depois, o Homem conseguiu por fim chegar a essa tão paradisíaca ilha, proclamando como seu lar. O pássaro outrora pacífico e depois nada atlético, não deparou nos seres humanos uma ameaça, nem sequer a intuição de fugir aos seus “abraços mortais”. O pássaro, que foi batizado de dodó pelos holandeses, foi caçado até à extinção, sem oferecer qualquer resistência, isto apenas um século após a sua descoberta. Hoje, o dodó, um espectro de criatura que em tempos pisou o nosso planeta, converteu-se num símbolo da ameaça real da extinção, e por sua vez do desmazelo, da negligência desta.

Um paradigma que fora utilizado vezes sem conta para representar de que maneira um indivíduo não se apercebe da sua própria extinção, mesmo que os sinais estejam ao nosso alcance. Em 2002, o êxito de animação “The Ice Age” (Carlos Saldanha & Chris Wedge, 2022) apresentou de forma paródica e direta esse mesmo simbolismo, onde um grupo de dodós que planeava escapar ao fim de uma era, mas sem a incapacidade de se aperceber das causas da sua eventual dizimação, levava-lhes a esse caminho mais que certo. No terceiro capítulo da trilogia / prequela “Planet of the Apes” (“Planeta dos Macacos”), os humanos são os pássaros dodós da trama, os seres mais próximos da extinção, ora vítimas de uma peste, ora vítimas das suas mais primitivas características – o gosto pelo conflito e pela guerra.

Novamente sob a batuta de Matt Reeves, após a fábula política de “Dawn of the Planet of the Apes”, esta Guerra promete-nos um desfecho ao prolongado êxodo iniciado em 2011, e possivelmente, um dos surpreendentes êxitos desta recente Hollywood tecnológica. É um exemplar pomposo, de um parabolismo dramático que nos convence perante uma invocada memória cinéfila, a exposição de uma guerra sob os adereços que o Cinema tão bem conhece. Se por um lado encontramos referências de um cinema de John Ford (onde nem falta o Monument Valley), ou do febril guerrilheiro de “Apocalypse Now” (faltava a Woody Harrelson o pregão “Horror… Horror has a face”), e as tendências dos efeitos visuais ao serviço da narrativa e não o oposto (não víamos tamanha exatidão nesse sentido desde o “Avatar”).

Mas em todo o caso, este é dos ditos blockbusters “armados em espertinhos”, porém, a sua astúcia tem um lado mais politicamente filosófico que as metafísicas do costume, é o retrato da desumanização da Humanidade, que acarreta a extinção como um Atlas martirológico, e a humanização do Primata (o aparecimento da subconsciência em Caesar – novamente concebido graças ao empenho de Andy Serkis – como momento-chave para o derradeiro destino que todos nós conhecemos), o testemunho forçadamente deixado da nossa “soberania”. Cada vez mais longe de “Rise of the Planet of the Apes”, cada vez mais perto do clássico de Franklin J. Schaffner, daquela distopia pelo qual Charlton Heston cedeu a tamanha culpa perante as ruínas da Estátua da Liberdade.

O único senão deste “War of the Planet of the Apes" é a sua vontade de agradar a gregos e troianos, o de equilibrar o registo cinéfilo com a perspetiva política assim como os elementos tão corriqueiros do entretenimento hollywoodesco. Nesta última estância, refiro a entrada do comic relief (um chimpanzé pelado com voz de Steve Zahn) ou de um último terço literalmente explosivo, como 95% dos blockbusters que se produzem atualmente. Todavia, é boa macacada aquela que encontramos aqui, e num Verão disperso por franchises falhados e de produtos inconsequentes do costume, “Planet of the Apes" vem provar o que de melhor se faz nesta grande indústria.