Na sorte do humorista, ou diria antes, do coveiro
Uma das obsessões recorrentes de Ricardo Araújo Pereira é, sem dúvida alguma, o humor, e, concretamente, a pejoratividade associada ao ato de rir. Nestes constantes esquadrinhamentos, o humorista coloca em primeiro plano a gargalhada como uma expressão sombria, animalesca (na medida em que as nossas faces se transformam drasticamente perante ela) e, ao mesmo tempo, fúnebre. Rimos porque é nisso que nos separa do restante Reino Animal: a consciência da nossa mortalidade, e mesmo assim, a defraudação perante a efemeridade que é a vida. O riso é também um antídoto temporário para as dores destes tempos difíceis, para os males do mundo, como se os distorcêssemos numa espécie de contemplação à impotência. Talvez seja essa mesma negritude que o humor seja estabelecido, e consequentemente colocado na ofensiva a ideologias reacionárias ou puristas. É também através do humor que nos confrontamos com o lado mais perverso e mórbido da vida, como um 'coveiro' que observa com rigidez a morte que o rodeia, aceitando essa inevitabilidade, cujo rir, esse remédio, seja o de consolidar com os contornos humanos que sempre desejamos ultrapassar.
Disto isto, não haveria pessoa melhor do que Ricardo Araújo Pereira para receber Woody Allen na sua mais recente passagem por Lisboa, mais precisamente na Cinemateca [no dia 14 de setembro], que há muito não via tamanha enchente. Na conversa que antecedeu a enésima exibição de “Manhattan”, discutiram-se os diferentes tipos de risos, humores e dores, e dessas diferenças surgiu uma aliança: a morbidez com que olhamos para a insignificância da nossa existência face ao definitivo ponto final, a Morte. Algumas semanas depois, estreia em território nacional - “Golpe de Sorte” (“Coup de Chance”) - o novo filme do nova-iorquino melindrosamente maldito, onde quer que passe (o único toque na controvérsia envolvendo a sua figura a que irei referir neste texto). Num primeiro ato, ele resume-se a uma tentativa de “filme francês”. Percorrer a Europa não é novo para o cineasta, tendo Londres, Roma, Barcelona e agora (repetentemente) Paris, cenários de albergue para os seus tiques e manias (ou será escape do outro lado do Atlântico?).
No entanto, ao contrário do nostálgico “Midnight in Paris” (2011), Allen, possivelmente em jeito de sobrevivência, abdica de estrelas ou intérpretes 'americanizados' e 'abraça' o francês de gema (Lou de Laâge, Niels Schneider, Melvil Poupaud e Valérie Lemercier), polvilhando uma intriga com os rodriguinhos associados a um senso comum de “filme à francesa”. Enumera-se então: amantes, intelectualidades, poetas urbanos, filosofares sobre a existência ou as razões do ato, tudo resumido num postal à Rohmer de levar para casa. É uma visão bastante americana de Paris em particular, e França no geral, no âmago do cinema popularucho norte-americano. Woody Allen realmente se revela nesta deslocação, quando a sua tenebrosidade assume de uma vez por todas o guião, nesse ponto, o filme altera, seja em tom, em propósito, afastando-se do que até então era um 'wannabe’, optando por construir e trilhar territórios, como diria, mais allenescos.
A culpa, a suspeita, a tentativa de um “crime perfeito” (ou algo parecido), elementos hitchcockianos que sempre estiveram presentes na sua carreira (com a recente memória de “Match Point” (2005) como exemplo), mapeiam esta nova colaboração com Vittorio Storaro (a melhor 'coisa' que aconteceu ao cinema de Allen desde Scarlett Johansson), que parece manter-se independente do registo habitual do acórdão cómico à Allen. Até porque é humor, e portanto, a morte funciona como um ingrediente válido, e Woody sabe disso como ninguém, mesmo nos seus, e ditos, “filmes menores”.