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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Malditos domingos! O que fazer com vocês e com as vossas criaturas?

Hugo Gomes, 20.07.24

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Arthur Mersault, a emblemática personagem do romance de Albert Camus - “O Estrangeiro” - constantemente declarava a sua irritação, ou melhor, ódio, pelo domingo. A somente existência provocava a sua celeuma, uma quase maldição, que coincidindo com a sua natureza algo passiva, “abraçava” no tormento da sua inevitabilidade. 

Simpatizo com essas dores, até porque os domingos me tornam igualmente numa pessoa inconsolável, um sintoma quase patológico, e previsivelmente ao deparar com um filme que se apropria do pior cenário possível - um domingo eterno. Mas calma, não é nenhum “Groundhog Day”, nem uma variante dessas narrativas de dias em loop, pudera, porque imaginar a convivềncia de um domingo para o resto das nossas eternidades seria um pesadelo, autêntico e desesperante. É sim, uma primeira obra com o apadrinhamento de Wim Wenders sobre três jovens que vivem à luz da sua inconsequência, o domingo permanece como o dia sem programa, longo a sua deambulação ou improviso. 

Una sterminata domenica” é o seu título, Alain Parroni o seu realizador - e estranhem-se, um dos três argumentistas - deste, do qual é descrito, um choque geracional e confronto rural e citadino, com Roma, a cidade eterna, ali ao lado, e o campo decadente do outro, sem bucolismos é verdade, só ruína, física como moral. É uma daquelas histórias de juventudes traídas, defraudadas pelo destino e portanto longe da empatia, só que com isso posso eu bem, de jovens longe das nossas sensibilidades o cinema é pleno. Os zero em comportamentos da vida deram-nos saltos formais e de linguagem cinematograficamente incríveis [“400 Coups”, de François Truffaut, a “Kids”, de Larry Clark, é só escolher], ou até despertaram em nós um certo sabor proustiano, seja o ‘gozo’ do último dia de aulas [“Dazed and Confused”, de Richard Linklater], seja da fuga enquanto sonho húmido a tresandar pelo lascivo [“American Honey”, de Andrea Arnold] e depois existe o vazio, não a demonstração do vazio nessas existências (Harmony Korine sabe fazer isso bem e de bom grado), mas o vácuo seja estético, narrativo ou até naquilo que “Una sterminata domenica” fornece de mão cheia, “maliquices” carregadas de hiperatividade videoclippeira, ou … visto os tempos serem outros, a linguagem despojada do caseirismo que as redes sociais nos trouxe com afinco nesta sociedade em serviência.

Depois a fornalha: estes jovens sem alma, encarregados de estabelecerem-se enquanto figuras-choque, funcionais vítimas de um futuro incerto, de um passado besta e de um presente recheado de decepções em todos os seus esporos, mas também são elas, as personagens fúteis onde a sua futilidade não é de todo uma crítica construtiva (o filme não tem esse miolo), mas um factor do seu embelezamento. Vencedor da secção Horizontes do Festival de Veneza, Alain Parroni demonstra que sabe filmar o céu num determinado plano picado, mas que não sabe de todo o que fazer com esta juventude de meio tostão. É o recorrer ao realismo simulacro, com um efeito encantatório que o envenena, e esquecer do seu cenário, do seu contexto sócio-político, ou outro elemento que não traria esta “viagem” em vão.  

Tal como os domingos, meios-dias de um raio que têm um efeito doentio sobre mim, este filme parece condensar algumas dessas propriedades com vigor. 

Os Melhores Filmes de 2023, segundo o Cinematograficamente Falando ...

Hugo Gomes, 27.12.23

Plataformas há muitas! Cada vez mais chorou-se pelas salas vazias e as telas projetadas sem companhia, mas é no encontro de 2023 que testemunhamos uma mudança neste paradigma da sala de cinema, anteriormente dominado pelo cinema “disneysco” e “super-heroesco”. As notícias de fracassos de box-office, à primeira vista, fariam qualquer adepto do cinema em sala arrancar cabelos e a gritar desalmadamente pela vida - ”se os super-heróis fracassam, o que mais poderia funcionar para conquistar espectadores?” - porém, a resposta fez-se pelo ciclo natural, Disney e os seus afilhados falham, dando a vez a outros fenómenos e a outros cinemas a dominar. 2023 foi o ano de “Barbenheimer”, a conjunção de memes de internet que rendeu milhões na estreia simultânea - “Barbie” e “Oppenheimer” - Greta Gerwig e Christopher Nolan a dupla esboçar sorrisos aos investidores, e a partir daqui, pequenos “milagres”, um cinema, talvez, mais adulto a fazer as delícias de “moviegoers”. 

Mas quanto ao Cinema? Digamos que se 2023 fosse resumida a vinicultura, seria uma boa colheita, a ser degustada e servir à temperatura ambiente como acompanhamento de um prato refinado. Sim, foi o ano em que o cinema estruturalmente e essencialmente se pensou e nele desviou-se a atenção do slogan “Cinema Morreu”, e substituiu-se pelo “Cinema está Vivo”. Victor Erice acreditou na sua “segunda vinda”, Nanni Moretti cedeu aos novos tempos (mesmo com um ar derrotado), Damien Chazelle codificou a fórmula da energia cinematográfica (o caos que gera harmonia), Bradley Cooper releu o classicismo e atribui-lhe roupagem a condizer, Wes Anderson castigou o realismo simulado e a imperatividade da continuidade (essa praga dos novos tempos) e Wim Wenders sugeriu que parássemos e contemplássemos o nosso redor. Por outras, o Cinema permanece à nossa volta, basta procurar, olhar e deliciar, os “velhinhos” da casa que teimam em vender o contrário fecharam há muito nos seus respectivos sótãos. 

Segue, sem mais demoras, os 10 filmes que o Cinematograficamente Falando … selecciona como os melhores do ano, respeitando o calendário de estreias nacionais (sala ou plataforma de streaming):

 

#10) Falcon Lake

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“Porém, a viagem é ela mesma corrompida, “Falcon Lake” deseja a sugestão como ninguém e nisso quebra a narrativa numa encruzilhada quase shyamaliana, depois disso o filme ganha um outro significado, uma outra visão, um outro efeito, o que nos leva ao grande dilema da nossa modernidade enquanto espectador - continuidade? Fortalecer ou enfraquecer?” Ler Crítica

 

#09) Killers of the Flower Moon

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“A tempestade, o Scorsese “velho” porém estilizado e fora de horas, é exorcizada nestas recentes estâncias, possivelmente na busca de um derradeiro título, em “Killers of the Flower Moon”, se tudo correr bem não deterá esse papel, mas é o ritual de afirmação para com essas memórias que se contrapõe a um Scorsese “novo”, mais próximo para com o súbito desvanecer.“ Ler Crítica

 

#08) EO

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Conta-se que Noomi Rapace, integrante do júri da edição de 2022 do Festival de Cannes, julgou em “EO” encontrar um realizador jovem no hino das suas vidas promissoras. Nada disso, Jerzy Skolimowski vai nos seus 85 anos, e com esta peregrinação exemplar, cita e recita o esperado filme de Bresson [“Au Hasard Balthazar”], remexe num cinema animalesco, de uma animalidade em contraposição da suposta e vendida Humanidade. Trata-se dessa refilmagem espiritual que cede à sua perspectiva e nos evidencia um filme fora do registo antropocentrista, e para resultar nele um Cinema puro que há um par de anos o russo Viktor Kossakovsky parece ter tecido - “Gunda”. O Cinema na pureza do seu lar, a Natureza como seu berço narrativo. “EO” não se equipara nessa pretensão, faz uso dessas iguais ferramentas. 

 

#07) Asteroid City

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“Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!” Ler Crítica

 

#06) Perfect Days

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Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente.” Ler Crítica

 

#05) Afire

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O protagonista (Thomas Schubert) não é de fácil empatia, mas banha-se dela porque nos sentimos identificados com a sua negada emancipação, das troças do destino ou do bloqueio que o atingem enquanto maldição vindo de Deuses embusteiros. O novo filme de Christian Petzold é um magnetismo a fantasmas, seja Paula Beer em evocação da musa petzoldiana perdida (Nina Hoss, saudades tuas), seja a aura malapata deste scrooge escritor que parte para o litoral na tentativa de completar o seu romance. Soa-nos remédio-santo para assumir uma mediocridade, personagens que fazem isso merecem a ala mais elevada do Além celestial, contudo, mais do que a inteira consciência desse feito (que nunca se materializa), “Afire” é um jogo cruel, castigador deste narcisismo autodestrutivo, chegado por vias de apólices, essas epifanias ardentes e misteriosamente cadavéricas. Recorro a esta obra como um “livro aberto”, a proeza de conseguir ligar-nos aos desprezíveis, logo, incompreendidos protagonistas. 

 

#04) Babylon

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“Quanto ao nosso contacto com “Babylon”, a sua reação dispar é um sintoma de como Damien Chazelle acertou na mouche, odiar o seu lado “monstruoso” é natural e fortalecedor ao seu conceito, deslumbrar com ele é de igual forma. Um risco de produção, acentuada numa indústria que atravessa a sua crise identitária (não confundir com outras identidades). Julgo que não teremos outro filme assim durante um longo período … Obrigado Chazelle, por mostrares que és o melhor dos dois mundos!” Ler Crítica

 

#03) Il sol dell'avvenire

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“Já em “Il sol dell'avvenire”, o criado filme aproxima-se do quotidiano de Nanni (Moretti sendo ele mesmo, quem mais?), envelhecido, cansado e à sua maneira reacionário, incapaz de lidar com as transformações que a sua vida experiencia uma e outra vez. Talvez é nesse intuito que aqui o filme muta, já não é mais um espelho de quem não consegue “olhar de frente” para o trajeto da sua existência; é antes uma determinação e quiçá uma superação.” Ler Crítica

 

#02) Tar

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“Contudo, este jogo de duas faces instala esse efeito de dupla interpretação, onde cada um vê consoante a sua sensibilidade, como nos fizeram crer, felizmente “Tar” é uma espécie de palimpsesto, duas melodias na mesma nota sem com isto ser necessariamente uma questão de leitura ou de perspetiva, ou diríamos melhor, numa inquisição de perguntas e não de resposta. O Cinema não tem obrigação de responder a nada, por isso quem procura decifrar a autenticidade do seu simbolismo perde instantaneamente o seu efeito aqui.” Ler Ato I, II, III

 

#01) Cerrar los Ojos

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“Um despertar com contrariedade, porque é no encerrar os olhos que o Cinema vive. É no fechá-los que voltamos a Acreditar. Victor Erice acredita, acreditou e acreditará, a sua persuasão leva-nos a acreditar também.” Ler Crítica

 

Menções honrosas: Knock at the Cabin, Nação Valente, Nayola, Maestro, World War III, Sur L’Adamant

Hoje é o teu primeiro dia ...

Hugo Gomes, 16.12.23

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Dentro deste caldo ocidental impregnado num capitalismo feroz, a “salvação” é vendida na disciplina, na ambição ou na aprendizagem gerida pela nossa resistência, milésimas dicas e truques hoje apoderadas pela classe “coach” (estes tutores da competição frenética e charlatães), são contrapontos com a sua antípoda, esses ensinamentos orientais, sobretudo japoneses, de consolidar a vida e contentar-se com os seus frutos suculentos, e nunca esperando algo mais adocicado. Muitos de nós ouvimos repetidamente, e talvez em jeito de troça, esse termo denominado ikigai, a busca do propósito vivente, ou de outro ponto, o wabi sabi, o de lidar com as imperfeições envolto, resignar a elas como nossas. 

Ao ver o último filme de Wim Wenders - “Perfect Days” - no qual me uno ao coro do “melhor trabalho do realizador alemão desde o longínquo [inserir latitude-título]”, deparo-me com essa imperfeita assunção, daí a lenta jornada de Hirayama (um sensibilizado Koji Yakusho, um dos ‘musos’ do cinema de Kiyoshi Kurosawa), homem dado e dedicado à sua própria rotina, não pretendendo mais do que a ‘mediania’ aí oferecida. De meia-idade, longe das promessas que a sua existência usufrui, limpa casas de banhos públicas por Tóquio adentro, ouve música através das suas estimáveis cassetes, alimenta-se nos mesmos ‘barrancos’ e presta-se às mesmas companhias mesmo que ele seja um homem lacónico (a verborreia persiste nesse desperdício que o nosso protagonista parece evitar a todo o custo), lê um livro todas as noites até os seus olhos se cansarem, cuidas das suas plantas, pequena vida com o carinho preciso e nutrindo um afecto inesgotável. Hirayama optou pela estabilidade, e para isso descarta qualquer projecção, qualquer objetivo, qualquer cobiça, mira o céus, as folhas “dançantes” nas árvores graças às prazerosas brisas que também desfruta, observa o seu redor, os desconhecidos que passam sem rasto, sob um olhar carinhoso, sem malícia, sem inveja. 

Nós, espectadores, somos convidados a esse recatado mundo, do eremita da mais populosa cidade por metro quadrado. “Perfect Days” é o “viver o momento”, frase feita de psicólogos e desses ‘malditos’ coaches em modo remixado e em loop, só que despido de qualquer “sonho capitalizado”, Hirayama ensina-nos a ser gratos pelo que conseguimos, o simples respirar, e em consequência sentir. É um filme de sentimentos, como é óbvio, embebido, e entranhado na sua serenidade zen. Wim Wenders parece seguir essa “escola de vida” com uma ternura inabalável. Porém, não nos quedamos pelo equilíbrio duradouro. Pouco a pouco, o ciclo ritualístico do protagonista começa a diferenciar-se: ora o colega fala-barato o faz desviar da rota, ora a sua sobrinha surge sem avisar, ora o seu cantinho de degustação gerido pela figura-gueixa alcunhada de “Mãe” (Sayuri Ishikawa) não abre portas naquele exacto momento, pequenas mudanças que por pouco faz Harayama duvidar da subsistência da sua então construída “fortaleza”. Mas a lição, longe da moralidade barata, é apenas constatação do óbvio - nada se mantém intacto; a mudança é inevitável. Edifícios erguidos e certo dia desabados cujo vazio observado e questionários pelos anciães ocasionais: “O que estava aqui? Já não me lembro. É o preço da velhice”. 

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Wim Wenders também está, como é claro e sucinto, a envelhecer, não é o realizador de antes (e quem poderá ser na verdade?), pegando nesta curta de encomenda - uma aclamação pelos banheiros públicos da capital japonesa - transformou-a numa longa em perseguição à sua própria sombra, a metáfora de reconhecer o inalcançável. A vida é de curta estadia, aproveitar o que dela contêm, os “pequenos prazeres” de dia a dia, ou simplesmente devagar e devagarinho, receber cada raio de Sol uma benção, um “perfect day” cantarolando pelo esperado single de Lou Reed. Soa-nos conversa motivacional, pois soa, mas garanto-vos que a obra nada tem de desbaratamento inspiracional, porque não passa de uma filosofia quotidiana constatada, o yang ao lufa-lufa e do sucesso enquanto objetivo vivente, pregado vezes sem conta pelos falsos-ídolos do Ocidente. No fim de contas, Wenders regressa a Ozu, o seu ídolo, não à sua arte de filmar, mas à sua arte de entender o seu redor - “A felicidade não se espera, cria-se” - debitado por Chishū Ryū em “Late Spring” (1949), a encarnação espiritual deste luminoso Koji Yakusho

Oh, it's such a perfect day

I'm glad I spent it with you

Oh, it's such a perfect day

You just keep me hanging on

Lou Reed

 

Na noite de Lisboa, nem todos os filmes são pardos

Hugo Gomes, 28.02.22

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The State of Things / O Estado das Coisas (Wim Wenders, 1982)

Lisboa, menina e moça, ou será antes, Lisboa, madura e experiente? Quem me conhece, sabe bem do meu fascínio para com a capital. No entanto, não vou fazer disto uma ode à cidade que me viu nascer ou dos pontos “altos” e umbilicalmente turísticos que levam, e muitos, a encontrar deleite nas paisagens banhada do rio Tejo (ouve-se em "língua estrangeira" a denominação Tagus, um ser corrente e mítico, ou lá o que seja). A cidade com que me apaixonei e que cada vez mais me leva a procurar nela uma razão para permanecer nesse estado de encantamento, contrariando o “destino” que parece relembrar das impossibilidades do mesmo, é a mesma cidade “pintada” em muito do cinema mais crítico sobre da região, aquela sem medo de demonstrar a sua decadência mergulhada em noites soturnas, uma reunião de criaturas errantes e mal-amparadas prontas para aquele “copo” duradouro no balcão contínuo e estendido em cantos do Galeto, ou do sempre resistente (ou será “resiliente”, essa palavra em voga?) Cais Sodré, a agora ruela rosada situada a poucos metros das margens “ribeirinhas”. 

Uma noite de bons vivants, ou assim pensam ser, de perversos ou simplesmente incompreendidos que penetram nos peepshows de becos, “vejam, mas não tocam”, ou dos esquecidos, amargurados, os solitários vencidos pela derrota que olham com tamanho pessimismos à bebida servida à sua frente. A noite de Lisboa não é mágica, mas é saudosista por tempos áureos, o qual nunca existiram, apenas perpetuam como lendas inconformistas entre os “trovadores de tasca”. O cenário em desenvolvimento e de expansão em “Os Verdes Anos” (Paulo Rocha, 1963), com Rui Gomes e Isabel Ruth perdendo no seu interior - por entre labirintos de árvores em jardins de refúgio a salões de dança (num travelling único que desde a sua prova nunca mais o esqueci) - e cuja incompatibilidade de ambos leva o protagonista a procurar companhia numa cidade noturna cuja sua divulgação era impedida pelos altos-órgãos (“uma afronta à boa moral lisboeta”, imagino que pensaram desta forma). 

Mais tarde, nos últimos sopros do Estado Novo, essa Lisboa é capturada por personagens sem eira, nem beira, pontuadas pelas sardas de Maria Cabral como distrações para a sua crise existencial na “modernidade” levada da breca em “O Cerco” (António da Cunha Telles, 1970) ou do jovem curioso que resiste ao sedentarismo extraindo desse quotidiano falsos-profetas e Dulcinéias sem brilho em “Perdido Por Cem” (António-Pedro Vasconcelo, 1973), essa primeira longa-metragem contagiada pelos tiques da fervorosidade da Nouvelle Vague conservava uma noite sem dormidas, de encontros imediatos e espontâneos entre teatros à beira da ruína, residenciais de urgência para noctívagos sob o cuidado de um João César Monteiro de cerveja na mão e de jogos de póquer ilegais na companhia de Paulo Branco, aquelas apostas anteriormente acordadas em salões de bilhar. 

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Perdido por Cem (António-Pedro Vasconcelo, 1973)

Já na década de 80’, nos seus primeiros passos, Lisboa cedente à sua autodestruição, ilustrava-nos uma noite de atrasos culturais perfeita para “quem parou no tempo”, ou que devaneia com o inatingível. “Kilas, o Mau da Fita”, obra de sucesso de José Fonseca e Costa, título escorraçado pelo crítico da altura [Augusto Seabra], cercava ainda mais essa cidade cinzenta, de sex appeal pacóvio e de brandos costumes fingidos por uma libertinagem de moda. Os fura-vidas ou o típico alfacinha absorvido pela tentações de uma "metrópole" de bairrismo evidente e dos locais vincados não como passagem, mas de “segundas casas”. De braços abertos para receber os “fugitivos do dia” e aprisioná-los nos seus vícios. Esta capital caberia num dos êxitos da banda "Táxi" - “Sozinho” - onde a noite é mais que uma noite, uma cidade na camada de outra cidade, com os habitantes alternativos, hábitos alternativos e habitações alternativas, e a manhã indesejada porque nela pronuncia-se o fim de uma Lisboa oculta para o renascimento da Lisboa de postal.

Os “estrangeiros”, de certa forma, captaram esse “fado” proeminente, seja o escape de Wim Wenders ou de Christine Laurent, por entre rodagens e ensaios (“The State of Things”, “Vertiges”) respetivamente, os bares de cheiro a mofo soam abrigos para almas perturbadas, ou da transformação da cidade-portuária num porto imaginário onde marinheiros anseiam conhecer a sua derradeira sereia, em “A Cidade Branca” (Alain Tanner, 1983). Lisboa, o resgate de todos os pecados do mundo entranhados numa só arquitetura, com o Café Império, orgulhoso do seu vazio e ao mesmo tempo dos ocasionais clientes que aguardam sem vez, uma imagem imortalizada numa outra primeira metragem, “O Sangue” (Pedro Costa, 1989). "Sabes qual é a maior invenção do Homem?", a pergunta é feita repetidamente, do meu lado respondo Lisboa, sem sucesso. A década de 90 instalou-se, o encantado desencanto não vinga mais, a marginalidade revelou um outro tipo de “criaturas”, “leprosos” que servem como avisos por parte dos nossos pais para que as noites tivéssemos. Lisboa mudaria nestes anos e no fim dos mesmos, abrindo para a multiculturalidade e para o capital de outras coordenadas, o turismo em máximo expoente da ação. Paulo Abreu elaborou no seu ensaio docuficcional - “Alis Ubbo” - uma cronologia a essas metamorfoses, realçando a anterior “menina e moça” como uma resistente entre épocas. 

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Ramiro (Manuel Mozos, 2017)

Mas a noite, essa mesmo, regressou ao seu estado de desencanto, obviamente orbitando nos arredores dos eventos promovidos de uma cidade-modelo Time Out. Um público “fiel” aos “comícios improvisados” no interior do Galeto,dois dedos de conversas” que se alargam para imperiais e snack-bar de horas “ordinárias”. Um público fiel aos últimos redutos do Cais’, observando a sua juventude a fugir por entre os seus dedos, ao mesmo tempo que mentaliza o término dessa longa noite, de lábios aquecidos enquanto saboreiam um pão com chouriço. Um público fiel à última sessão do Nimas, após a projeção percorrem a Avenida do 5 de Outubro procurando o “cantinho aberto” para prosseguir a tertúlia cinematográfica, até porque são nessas mesmas noites que nascem as melhores dissertações sobre o Cinema, aquelas histórias ocultas ou as revelações sinceras, tudo isso acompanhado por aquele hambúrguer pós-meia-noite e da imperial tirada ao sabor da praxe. 

Esta é a Lisboa que muitos preservam, que dialogam em segredo e em código, e que lamentam pelas drásticas mudanças, aquele fecho ou figura sucumbida, a noite de outrora cada vez para lá da miragem. Essa mesmo, convertida em não-lugar nas mãos de Bruno De Almeida (“Cabaret Maxime”, 2018), ou na passividade rústica a mercê do seu desaparecimento em Ramiro de Manuel Mozos, aliás, o homem, que talvez por outra via, pensa em Lisboa como um território cinematográfico [“Lisboa No Cinema, Um Ponto De Vista”, 1994], e através dele recita os seus mais requintados contos. Ou será antes, pontos de vista?

Room Service!

Hugo Gomes, 09.06.20

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Chambre 212 (Christophe Honoré, 2019)

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Anomalisa (Duke Johnson & Charles Kaufman, 2015)

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The Best Exotic Marigold Hotel (John Madden, 2011)

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Don't Bother to Knock ( Roy Ward Baker, 1952)

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Four Rooms (Allison Anders, Alexandre Rockwell, Robert Rodriguez & Quentin Tarantino, 1995)

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The Grand Budapest Hotel (Wes Anderson, 2014)

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Home Alone 2: Lost in New York (Chris Columbus, 1992)

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1408 (Mikael Håfström, 2007)

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2046 (Wong Kar-Wai, 2004)

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The Shining (Stanley Kubrick, 1980)

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Some Like It Hot! (Billy Wilder, 1959)

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Room 304 (Birgitte Stærmose, 2011)

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The Bellboy (Jerry Lewis, 1960)

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The Million Dollar Hotel (Wim Wenders, 2000)

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Chelsea on the Rocks (Abel Ferrara, 2008)

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Hotel (Jessica Hausner, 2004)

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Love Steaks (Jakob Lass, 2013)

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Mekong Hotel (Apichatpong Weerasethakul, 2011)

Era uma vez … um anjo que cobiçava os Homens.

Hugo Gomes, 16.02.19

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Ele olhava de cima para estes minúsculos pontos em vanglória intensa, enquanto desperdiçavam a sua existência com futilidades. Mas o anjo não quis saber de morais, apenas desejava aquele (des)encanto, e acima de tudo a liberdade destes, a negação das asas, as mesmas que o mantinham preso ao seu céu. Tanto pediu que acabou por se tornar num eles; colorido, pecaminoso e efémero de desejos. Num ápice essas imperfeições converteram-se em qualidades. O anjo caiu, coexistiu com a gente mortal para depois, após ter experienciado todos os sabores da vida, voltar ao seu Reino. Se viveu feliz para sempre? Não sei, mas a eternidade foi lhe devolvida e agora é o “fruto” que mais lhe convém.

Para sempre nos nossos corações cinéfilos – Bruno Ganz

 

Cinematograficamente Falando ... 11 anos de vida!

Hugo Gomes, 27.07.18

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Paris, Texas (Wim Wenders, 1984)

Então, mas este estaminé faz os seus 11 anos de existência e nem celebro dia?!

Bem, sim, passamos a primeira década e continuamos em movimento, mesmo em modo lento. Enfim, mea culpa!

Agradeço a todos que me acompanham e que me ajudaram a tornar o Cinematograficamente Falando … naquilo que é hoje.

Muito obrigado! ;)

O Estado da Luta

Hugo Gomes, 18.02.18

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O Estado das Coisas (1982)

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Hammet (1982)

A denúncia é uma carta fechada no envelope que mais se enquadra, e Wim Wenders apenas a preparou da maneira que lhe mais condiz. O Estado das Coisas resultou nessa expressão, essa manifestação a três dimensões. A três, porque o filme refere uma ficção dentro doutra ficção que por sua vez sustentam um retrato de meta-cinema. As experiências vividas pelo realizador naquele que foi o seu primeiro projeto em terras americanas, Hammett, um retrato biográfico de Dashiell Hammett, cujo trauma foram as decisões artísticas frente a Francis Ford Coppola e a Zoetroppe, o produtor. A imposição de um preto-e-branco, mutável para com a natureza do filme, colocou em risco uma colaboração há muito desejada. Coppola, que era Coppola, estava contra à coloração da biografia, o que desde então tornaram esta produção num conflituoso “braço de ferro”. O preto-e-branco de O Estado das Coisas é o statment do artista frustrado e pronto a guerrilhar através do seu cinema.