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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Uma força maior à escala de Gene Hackman (1930 - 2025)

Hugo Gomes, 27.02.25

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The Quick and the Dead (Sam Raimi, 1995)

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The Conversation (Francis Ford Coppola, 1974)

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The Firm (Sydney Pollack, 1993)

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The French Connection (William Friedkin, 1971)

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Com Christopher Reeve em "Superman" (Richard Donner, 1978)

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Unforgiven (Clint Eastwood, 1992)

À semelhança de Sean Connery, Gene Hackman retirou-se das nossas vistas após um derradeiro filme que envergonharia os céus, um final indigno de uma carreira longa e duradoura. Anos e anos na discrição, pairando como um lembrete de que Hollywood albergara uma força estelar, hoje em longo processo de renovação — ou quiçá de extinção, e tal como o mencionado actor, o retorno de Hackman era uma incógnita quase sebastiana; cruzavam-se os dedos por um eventual “comeback”, por um último trabalhador merecedor do seu legado, o qual nunca chegou a acontecer. "Welcome to Mooseport" ficou com esse título, mas dele esquecemos, porque a “pegada” de Hackman foi muito maior do que qualquer nódoa no seu final de carreira. O incorruptível, o infiltrado, o mais ameaçador dos vilões e o mais fanfarrão também, o tigre da Malásia de colarinho branco, o último veterano, o eterno cowboy. Hoje, perante a sua despedida — esperada, não apenas do cinema, mas do mundo — recordar Hackman é recordar um prestígio em tela, uma galeria de filmes que, à sua maneira, marcaram Hollywood, a indústria e os espectadores. Fica a minha vénia a um gigante.

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Com Al Pacino em "Scarecrow" (Jerry Schatzberg, 1973)

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The Royal Tenenbaums (Wes Anderson, 2001)

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Mississippi Burning (Alan Parker, 1988)

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Ao lado de Rhys Ifans em "The Replacements" (Howard Deutch, 2000)

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Uncommon Valor (Ted Kotcheff, 1983)

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Twilight (Robert Benton, 1998)

Arranca o 9º Close-Up, contemplando o passado com mira para o futuro da cinefilia

Hugo Gomes, 11.10.24

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Celebramos a 9ª edição do Close-Up, desta vez com “películas” apontadas para o horizonte, o futuro para sermos precisos, ao encontro de uma Memória cinematográfica. Com arranque já no próximo dia 12 de Outubro, o Observatório de Cinema apresentará a sua mostra cinematográfica, uma compilação de filmes, temas e convidados com debate no presente para referir o futuro da cinefilia, com a Casa de Artes de Famalicão e o Teatro e o Teatro Narciso Ferreira como abrigos dessa resistência cultural. 

Como tem sido tradição, o Cinematograficamente Falando … conversou com o programador Vítor Ribeiro sobre o que nos espera este novo ano sob vista atenta do Close-Up.

Com a Infância enquanto tema anterior, seguimos em direção ao Futuro, às suas Memórias propriamente ditas. Se o Close-Up tivesse uma “bola de cristal” e tendo em conta esta programação, que Futuro terá o Cinema e a sua cinefilia?

Se a tarefa de antecipar o futuro não é coisa fácil, quando se trata do cinema a bola de cristal é ainda de maior dificuldade de acesso, atendendo às convulsões debitadas ao longo da sua história de mais de 100 anos. O que continuaremos a fazer é privilegiar a construção de programas que dialoguem com o público em espaço público, na promoção do cinema e dos seus autores. E a continuar a trabalhar, junto das gerações mais jovens, para proporcionar as condições para cimentar um território para os espectadores do futuro.

O Close-Up estende a sua proposta para além de uma mostra de filmes, temos cine-concertos, exposição (“Imagens da Nova Hollywood”) e outras atividades. O que nos pode dizer sobre elas, e a riqueza que assentam na programação do Close-Up.

O Close-up integra a programação de um Teatro Municipal, a Casa das Artes de Famalicão, espaço que privilegia a criação artísticas, nas diversas disciplinas: a música, o teatro, a dança e o cinema. Desde a sua primeira edição, que o programa do Close-up procurou articular o cinema com as outras artes, especialmente com a música, muitas vezes com a apresentação de cine-concertos em estreia, resultado de um processo de criação patrocinado pelo Teatro Municipal e os seus objectivos. 

Nesta edição,  o encontro das imagens com as outras linguagens terá: a apresentação em estreia do cine-concerto “O Cão Andaluz” de Luis Buñuel por Surma; a projecção de duas curtas de Charlie Chaplin, em formato lúdico, em concerto promenade, Orquestra da Costa Atlântica; o reencontro do piano de Joana Gama com as electrónicas de Luís Fernandes, fomentado pelas imagens de Eduardo Brito; e finalmente Glimmer, um espectáculo de cruzamento que extravasa a ideia de cine-concerto, ao juntar uma coreografia de Rui Horta à música dos Micro Audio Waves, com imagens a pontuar uma projecção do futuro.

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Sorcerer (William Friedkin, 1977)

Em “Histórias do Cinema”, temos um quarteto de filmes de William Friedkin, realizador incontornável que nos deixou ano passado. Poderia-me falar sobre esta seleção de filmes, da sua importância e que cenário pretende trazer sobre a memória do cineasta?

São quarto dos filmes mais importante de Friedkin e todos produzidos na década de 1970, período efervescente da Nova Hollywood, que aproveitou a crise e o consequente colapso dos estúdios de Hollywood, e as profundas transformações sociais e culturais da América, para fazer chegar ao poder de um conjunto de novos autores, que asseguraram uma notável marca autoral, que foi também um reflexo das turbulências políticas de uma época, como a guerra traumática do Vietname ou o escândalo Watergate. Estes quatro filmes – “The French Connection”, “The Exorcist”, “Sorcerer” e “Cruising” – demonstram a clara importância de Friedkin na época e na memória gerada nas décadas seguintes e serão para alguns espectadores uma porta de entrada para a obra do cineasta, enquanto outros os reencontrarão em sala, depois de talvez se terem cruzado com uma parte deles em dvd ou numa sessão televisiva.   

Gostaria que me falasse sobre os convidados, sobre a ternura de construir uma família “Close-Up” através de caras recorrentes nas várias edições, e obviamente sobre os “novos” oradores.

Os convidados do Close-up, que apresentam as sessões, são escolhidos em função da intensidade demonstrada com os filmes programados, quer seja através de um texto que escreveram sobre eles, ou com uma ligação mais evidente, se forem os seus realizadores. Mas também há outros critérios, como a afinidade entre obras artísticas produzidas por quem foi escolhido para comentar e o autor desses filmes, por exemplo. Em cada edição pretende-se uma renovação desses convidados, mas olhando para as edições anteriores já houve repetentes, nas áreas da crítica, da investigação, ou de outras áreas artísticas, que evidenciam afinidades que os vários programas aclaram. 

Na edição deste ano, temos várias novidades: o escritor Alexandre Almeida, que acompanhará a tradutora Alda Rodrigues na apresentação de “Saint Omer”; o crítico e programador João Antunes, na apresentação de “Marinheiro das Montanhas”; o programador João Palhares, que cultiva afinidades com a nossa reverência a William Friedkin; mas também escolhas menos óbvias, como a do argumentista e produtor Edgar Medina para comentar “The French Connection”.

Quanto à masterclass da dupla João Pedro Rodrigues e Guerra da Mata?

A partir da estreia do seu mais recente filme, “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois”, a dupla de cineastas desenhará um mapa de relações entre o seu trabalho e o movimento do cinema novo do cinema português, com o filme “Os Verdes Anos” de Paulo Rocha no centro.  Esta masterclass complementa a secção Fantasia Lusitana, que para lá de exibir “Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois e “Os Verdes Anos”, atribuiu uma carta branca aos cineastas, que escolheram duas longas: “Dina e Django” (1981) de Solveig Nordlund e “As Ruínas no Interior” (1976) de José Sá Caetano.

Onde Fica Esta Rua? Ou Sem Antes Nem Depois (João Pedro Rodrigues & Guerra da Mata, 2022)

Voltando à pertinência do tema do Futuro, e em pergunta mais abstrata visto que o Close-Up lida com essa comunidade, questiono: podemos confiar na cinefilia para manter vivos e vitalícios eventos e propostas como estas?

Em parte, respondemos a esta questão na resposta à pergunta que abre esta entrevista. O Close-up, desde a sua génese que fez do cinema uma plataforma de diálogo com a comunidade, com as várias comunidades, desde a cinefilia devota do cinema de autor e da história do cinema, ao público escolar, mas também às famílias, e sempre atento na possibilidade de continuar a falar com públicos diversos, como o cinema sempre fez na sua história, como uma arte popular. Da nossa parte, esta possibilidade de colocar os filmes em diálogo uns com os outros, ao invés, por exemplo das competições, manter-se-á como o eixo principal das edições futuras, nesse diálogo continuado com o espectador, também privilegiado pela possibilidade de olhar para as mutações do cinema, da sua linguagem, e de o continuar a cruzar com as demais disciplinas.

Para o ano o Close-Up comemorá os seus 10 anos de existência, o que poderá “descortinar” sobre essa passagem e se está a pensar na próxima edição?

Sim, a meados de Outubro de 2025, o Close-up apresentará a sua 10.ª edição. Já temos uma ideia de mote orientador do programa, que se enreda com alguns dos anteriores, mas que será afinado pela pertinência dos autores e dos filmes que entendemos partilhar com os espectadores. Também já estão em marcha desafios para novas criações, à boleia do cinema, cruzamentos que no próximo futuro desenvolveremos e tornaremos públicos.

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Para mais informações sobre a programação, ver aqui

O meu medo preferido

Hugo Gomes, 23.10.23

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Outubro genérico, galdéria do seguidismo que sou, aproveito para ver o que os meus compinchas vão vendo nesta época tão tipicamente lusitana que é o Halloween. Filme após filme, sem sucesso, tento procurar a chama do medo que me obrigava na juventude a acender todas as luzes a caminho do quarto, a temer o ranger de um barulho parasita que o empreiteiro prometeu resolver há duas décadas, de sentir o agigantar do silêncio que parecia querer saltar sobre mim na forma de uma entidade maléfica fugida do sétimo círculo do inferno. Que bom este medo irrealista que entretanto foi substituído pelo terror existencial de perder a capacidade de alimentar os filhos, manter uma vida digna ou um caroço num testículo que anuncie o princípio do fim. Como um junkie à procura da sensação daquela primeira dose, também eu percorro as internets de cabo a rabo à procura do filme que me ressuscite o medo de que esteja um demónio escondido na banheira com a cabeça ensanguentada do vizinho de baixo numa mão, gritando lamentos demoníacos ensurdecedores em várias línguas extintas em simultâneo. 

*harpa do flashback*

Corria o ano de 1987. Meados de Julho. Já havia passado mais de um mês de férias grandes e a euforia ia-se transformando num emergente imperceptível tédio. 4 da manhã. Eu, o meu amigo Zé  e o meu primo João regressávamos de um baile de uma aldeia vizinha, onde fomos na esperança de ver pelo menos uma cover de Judas Priest ou Ramones. Recusamos várias danças e o balanço da noite resumiu-se a dois apalpões e a promessa de linguados atrás dos arbustos da igreja. Diante da carência do deboche que tanto se aguardava e nunca se manifestou, fomos para casa decidimos meter um VHS alugado no dia anterior. “O Exorcista”, um filme alugado pelo meu pai porque o senhor do clube de vídeo não me deixou trazer sozinho. 

Duas horas depois, três teenagers apavorados jaziam imóveis num sofá, sem pestanejar, quase sem respirar, a esperar pela luz do dia. Só com os primeiros raios de sol ganhamos força nas pernas e o sangue voltou a fluir com naturalidade. Até hoje continua a ser a  experiência de cinema mais aterrorizante da minha vida. Seguida de perto pelo momento em que a Marta, no nono ano, me levantou a saia para me mostrar as cuecas mas infelizmente ninguém lhe havia falado da prática do aparamento púbico.

*harpa do flashback invertida*

Apesar de ter atribuído a experiência “borra-cueca” do Exorcista à idade e à falta de contactos com conteúdos assustadores, o certo é que vi várias vezes desde então o Exorcista e o resultado mantém-se bem aterrorizante e fiel ao dia em que o vi pela primeira vez. Eu mudei, é certo, o filme mantém-se rei indestronável do terror. Centenas de filmes que lidam com exorcismos ou possessões demoníacas seguem linearmente a sua fórmula, esta cadência rítmica ao estilo Friedkin que se tornou norma. 

Uma família normal, sem raízes religiosas, ausente do circuito das maldições e profecias, uma aproximação científica e clínica aos problemas, a esperança que desaparece de modo lento e descontrolado, a inevitabilidade do mal, a impotência do homem perante forças que cuja sua compreensão mal arranha, uma criança lidada como um trapilho descartável, a aproximação clara e objetiva de Friedkin e os dotes vocais Mercedes McCambridge. Apesar desta tour de force de McCambridge, eu diria que em Johnny Guitar ou na sua fugaz passagem por Touch of Evil, ela não é menos aterrorizante.

Friedkin revela aqui o segredo do medo, de assustar o cinéfilo, que sentado incrédulo com a sua coca-cola e as suas pipocas caríssimas, consegue sentir aquelas dores como suas. A identificação, aparente normalidade, como a de nossa casa. Como Kubrick fez em Shining, ao nos mostrar a facilidade como o mal se manifesta pelas razões mais inesperadas, aqui Friedkin explica que qualquer um pode ser escolhido porque o mal quer apenas mostrar o seu poder. De notar que existe uma cena colocada na versão de 2001, a explicar exatamente isto para quem não percebe pelo tom geral do filme.

Desde então vi e revi milhares de filmes, sempre em busca dessa sensação primordial. Não há mês em que não apareça “o filme mais assustador de sempre”, embocando sempre na frouxidão do costume, nos trejeitos e costumeiras regras que os denunciam logo no primeiro ato. Elevou-se o terror, com a tendência intelectual de materializar em monstros e entidades os traumas, fobias, fantasias ou culpas, como se isso já não existisse desde o início dos tempos sem a necessidade de o anunciar a megafone Depois os filmes meta para quem já viu tudo, enfim, uma panóplia infindável de cinema que consumo sem restrições por ser a minha principal fonte de dieta cinematográfica. Mas o exorcista, meus amigos, o exorcista e eu dançamos abraçados ao luar há quase 40 anos e somos felizes assim. 

Tirando isto, só aquele email do IMI me fazem tremer angústia e suores frios. 



*Texto da autoria de Pedro de Alarcão Lombarda. Reconhecido internacionalmente como “aquele blogger que foi perseguido durante uma noite inteira por um grupo de donas de casa enraivecidas à conta de uns reparos à virilidade do Leonardo DiCaprio em Titanic”, Pedro acumula o maior número de cargos inúteis de todo o ecossistema cinematográfico nacional. Engenheiro de profissão, sonhador por vocação, pode ser frequentemente encontrado a olhar pela janela a ponderar narrativas alternativas para o quarto Indiana Jones ou a ignorar chamadas dos seus compinchas das Nalgas do Mandarim quando lhe querem vender suplemento de Herbalife. Utilizador ativo de três leitores de VHS e recordista nacional de Pang e OutZone tem também a única cópia restante em VHS de “She, A Raínha da Guerra e do Amor”.

O homem que colecionava medos

Hugo Gomes, 07.08.23

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"The Exorcist" é um daqueles filmes que sempre me desafia a (re)entrar no seu domínio proibido e herético. Há poucos dias, confessava a alguém a minha atração quase mórbida por esta obra e como a sua passagem (seja onde for) é sempre uma oportunidade para a reavivar. No entanto, não é de exorcismos nem de pazuzus que viveu William Friedkin, o mesmo tem expressado arrependimento em relação à sua abordagem nos recentes anos, o qual culminou no documentário "The Devil and Father Amorth". Contudo, ele é principalmente um mestre do medo por excelência, sendo que é dentro desse tema que nascem os seus melhores trabalhos, bem como os mais incompreendidos.

Para Friedkin é viver e morrer, o medo é só um sintoma dessa passagem, uma patologia que vem dos corpos [“Cruising”] e regressa a eles [“Bug”], devorando-os constantemente em uma tortura delirante É esse medo que transforma as suas obras em um turbilhão de loucura. Com isto, regresso mais uma vez ao "The Exorcist", àquela luz demoníaca que ilumina a silhueta de Max Von Sydow ao som de "Tubular Bells" de Mike Oldfield, oriundo do campo de batalha que o aguarda. É a mais espectacular receção ao que mais nos amedronta. Um temor localizado num quarto remoto na parte mais sombria da casa, a porta é apenas um aviso que nada impede, porque, tal como no cinema de Friedkin, é o medo que nos conduz.

William Friedkin (1935 - 2023)

A Caixa de Pandora: Entre os mortais e os desvanecidos

Hugo Gomes, 15.05.21

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O ascendente espaço de comunhão

A experiência é conhecida e mais que sabida: o físico austríaco Erwin Schrödinger, hipoteticamente, fechou um gato com um frasco de veneno ao seu dispor no interior de uma caixa. Até à abertura da mesma, lançou-se a hipótese do gato estar vivo como estar morto, sendo que ambas realidades coabitam, naquele preciso momento, no mesmo espaço. Este conjunto de possibilidades tornou-se a base de muita tese quântica ou até extradimensional, aqui encaremos o experimento como um paradoxo, mas fora isso, assumimos nele os contornos da espiritualidade. Imaginemos então o gato enclausurado no interior daquela caixa, atribuímos a este animal a consciência da sua prisão e mais ainda, da sua iminente morte, o veneno engarrafado prestes a ser partido. No sentido poético, há aqui uma resistência ou uma cedência da sua vida, mas uma ‘coisa’ é certa, aquele espaço, cúbico, torna-se no seu tormento.

Saímos então do Gato de Schrödinger, e passamos para outro caso, Elisa Lam, estudante canadiana, cujo corpo foi encontrado no reservatório de água de um hotel dos EUA, em 2013, após as queixas de um cliente com o “sabor estranho” da água canalizada. O caso ganhou mediatismo após a polícia ter divulgado as últimas imagens de Lam viva, a de uma câmara de vigilância no interior de um elevador. Nesta mesma, a jovem demonstrou um comportamento bizarro, amedrontado e gesticulando uma conversa com, o que aparenta ser, ninguém. O vídeo alcançou popularidade após ter disseminado nas redes levando às mais variadas teorias, desde transtornos psíquicos em Lam, até a manipulação digital do mesmo, e como não deveria deixar de ser, a presenças sobrenaturais.

Tão “normalizados” na nossa sociedade, é bem verdade que os elevadores são hoje uma fobia comum, diversas vezes alicerçados à claustrofobia. Um cerco espelhado, onde as inúmeras possibilidades são ali refletidas. Como o gato de Schrödinger, convivemos com os nossos medos, frustrações, a nossa existência em geral, até este turbilhão ser interrompido pelo alívio da abertura de portas. O nosso piso, a nossa satisfação por termos sobrevivido. E os elevadores preenchem esse imaginário de terror, desde whodunits sobrenaturais com a marca de M. Night Shyamalan (“Devil” de John Erick Dowdle, 2010) até a defeitos tecnológicos que atribuem uma vida assassinada a estes mecanismos (“De Lift” de Dick Maas, 1983), um ambiente perfeito para temores.

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Elisa Lam

 

Pedro Costa e o terror

Por um lado, colocamos de parte toda a temática de elevação ao terror (não confundir com o termo agora bastante em voga, “elevated terror”), e seguimos para a edição de 2020 do MotelX: Festival Internacional de Cinema de Terror em Lisboa. No seio da pandemia, o evento cultural e terrorífico que atingiu o 14º ano, apresentou Pedro Costa como homenageado na sua rubrica de cinema português de género, o Quarto Perdido. Escolha improvável para um festival que recebeu no passado nomes como George A. Romero, John Landis, Ruggero Deodato, Dario Argento e Tobe Hooper, que como se pode confirmar, realizadores inteiramente focados no consolidado género do terror. Pedro Costa soava como um “objeto estranho” nesta seleção, porém, defendido com garra por um dos integrantes da direção do festival, João Monteiro, relembrando os tempos da CTLX: Cineclube de Terror de Lisboa, em 2005, quando foi programado “Ossos” (1997).

“Na altura recebemos emails e as pessoas achavam que éramos atrasados mentais. Agora que Pedro Costa venceu o Festival de Locarno [“Vitalina Varela”], as marcas do cinema zombie – não o de Romero mas sim de Tourneur – continuam a prevalecer e a marcar a estética da obra daquele que é, provavelmente, o cineasta português mais importante no mundo“.

Todavia, mesmo confessando as influências do cinema de Jacques Tourneur na sua carreira, Costa despreza o termo ”zombie” para caracterização das personagens que partilham o seu universo cinematográfico, mesmo que, em tempos, sob a chancela de Paulo Branco, tentou filmar uma reinvenção de “I Walked with a Zombie” (Tourneur, 1943) em Cabo Verde, um feliz fracasso que originou “A Casa da Lava” (1994).

É uma conversa sem pés nem cabeça, uma conversa estúpida que a maior parte das vezes vem dos críticos eruditos (…) Dizer que qualquer pessoa que adormece ou acorda, está transtornada ou deprimida, é um zombie… Não é! Esta conversa agora ofende-me mais porque toda a gente que vive para além de Benfica é zombie. (…) Posso imediatamente contrapor a palavra condenada. Parece-me mais justo, mais certo. A Vitalina e o Ventura são pessoas condenadas desde o princípio como os outros que vêm nos barcos. Assim que a Vitalina entra num avião da TAP para vir para cá, seja porque razão for, está condenada. Está amaldiçoada por todos. Passar disso para um zombie, um fantasma… Ela não é um fantasma. Ela tem 58 anos, não tinha papeis há um ano. Foi dificílimo chegar aos papeis da Vitalina. Foi um ano inteiro durante as filmagens para o Marquês de Pombal. (…) Sei por experiência, na Cova da Moura, na Damaia, nas Fontainhas, na periferia eles sabem que são capazes de fazer as coisas e até de concorrer com o Brad Pitt. Não são zombies nenhuns, são grandes trabalhadores. Pessoas muito vivas."

O paradoxo aqui, talvez o Gato de Schrödinger nesta situação, é um autor influenciado por um cinema género e que por sua vez não assume como tal, e um ambiente exterior que encontra na sua cerne a ambiência e as propriedades prototípicas de um filme de terror. Para tal, devemos embarcar na lógica do que é, e o que torna, realmente um filme de terror num filme de terror?

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A Casa de Lava (1994)

 

Cinema de terror? Não pode!

No livro “Horror”, de Brigid Cherry, na tentativa de definir o cinema desse género, reconheceu que dentro de variedades temáticas, estéticas, formais e mesmo afetivas, o terror levita e evolui de geração para geração encontrando os seus ciclos, estilos e movimentos. Nesse efeito, a aproximação da definição é que este cinema usufrui da sua atmosfera para transpirar emoções, que vão desde os sustos, à inquietude e ao medo. É o detalhe que poderá extrair “Sweet Exorcist” (2012), a curta de Costa para o projeto “Centro Histórico” (que para além do cineasta reuniu outros nomes formidáveis como Aki Kaurismaki, Victor Erice e Manoel De Oliveira) e que mais tarde integrou a longa “Cavalo Dinheiro” (2014), como um objeto respeitante às convenções do terror enquanto género.

Sweet Exorcist", ou “Lamento da Vida Jovem”, remete-nos a Ventura (personagem / personalidade recorrente no cinema de Costa) “perdido” num ascensor para “nenhures”. No seu interior encontra uma figura bélica e colonialista, e acima de tudo espectral, um fantasma de um passado que o nosso protagonista conhece muito bem. “Viveste muitas mortes Ventura”, uma das frases impactantes ouvidas dos lábios emudecidos e imóveis deste espírito atormentado. Ventura é também ele vítima deste embate entre diferentes mundos, perdendo na realidade por vezes imposta pelo ser. Dito desta maneira e jogando nos contornos sobrenaturais, “Sweet Exorcist” soa-nos como um exercício de terror, não necessariamente correspondendo à sede gore e sanguinária que o senso comum guia eventualmente, mas do confronto entre reinos opostos, mas interagidos com diferentes noções de realidade. O elevador torna-se no vínculo para essa coexistência, assim como o Gato de Schrödinger que se deparou numa hipotética caixa a questionada dualidade.

Há que fazer o parêntesis que nem sempre o terror respondeu às necessidades mercantis dos sustos fáceis [“jumpscares”], vísceras e lâminas, o diálogo entre sombras (menção aqui não foi ao acaso) afirmou-se, em tempos, num dos ingredientes fulcrais para o êxito de “The Exorcist” (1973), o badalado filme de William Friedkin com inspiração no best-seller da autoria de William Peter Blatty. Nessa obra o grande climax é, nada mais, nada menos, que a conversação entre dois seres de terrenos antípodas, Padre Merrin (Max Von Sydow) e o demónio autoproclamado de Pazuzu que tinha como canal de transmissão a pequena Regan (Linda Blair), o quarto onde decorre o dito exorcismo transforma-se espectralmente em algo mais que uma mera assoalhada, um espaço de reunião entre as duas realidades. Aquele lugar não é mais um lugar, converteu-se numa incerteza espacial.

Costa, por sua vez, transfere essa interdimensionalidade para a sequência do elevador, Ventura [vivo] debate-se com a morte, enquanto que o Morto ostenta a sua vivacidade. As duas entidades são transferidas para um limbo, um lounge neutro para com as suas existências (ou falta delas). Anos mais tarde, no seu “Vitalina Varela”, a personagem-título, uma viúva cinquentona que regressa a Lisboa para se reencontrar com o seu falecido marido, tenta contactar o espírito do seu sucumbido homem através de uma língua colonialista (o “português”). O espectador não vê, mas adquire a noção automática de que quando Vitalina utiliza o português na sua (suposta) solidão, o fantasma do seu ente marca presença no mesmo espaço. Ela não está sozinha e a constante invocação remete a área, tal e qual o elevador de “Sweet Exorcist”, numa conferência comum entre mundos.

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The Exorcist (1973)

Podemos com isto crer que existe em Pedro Costa a subtileza e a sugestibilidade que fizeram Tourneur, o seu padroeiro, num dos exímios operacionais do cinema de género, apesar de orientar num cinema plural e de conotações várias. De igual maneira que “Stars in my Crown” (1950) o é para Costa.

“Não é um filme de terror, também não é um western. É um semi-western sobre um pastor no oeste numa pequena aldeia. Há duas coisas que acontecem: há uma peste, um miúdo que bebe água e aquilo propaga-se. E há um milagre – uma pessoa que está muito mal com essa maleita e ressuscita. (…) Tourneur soube trabalhar os géneros, porque é um filme sobre uma peste, como é que a coisa se infecta, mas não só a peste, também o racismo.”

O nosso amor vem do Mundo que nascemos e daquele que integramos ao crescer”, e é com esta citação do filme, aliás, o derradeiro filme, do realizador “maldito” Jean-Claude Brisseau - “Que le diable nous emporte” (2018) – que me concentro na essência de Costa enquanto cineasta. “Aprendendo” com os mestres da sua cinefilia, é certo que manejar os diferentes géneros numa só pasta embutida, na ideia de fazer um filme, que não o filme imaginado, mas que se assume como um outro filme. É certo que Pedro Costa emana o cinema de terror apropriando-se dos seus códigos comuns, mas contrariamente implementando em telas divergentes. O terror deixa de ser terror e simultaneamente o é, enquanto isolado e interpretando à luz desses mesmos códigos. Com isto prova-se que a questão de géneros só tem utilidade quando expostos num panorama mercantil, um chamativo pavloviano de apelo de conformidades algorítmicas.

 

Elevadores uma ala para outro mundo (e entre mundos)

Desta maneira tentamos o seguinte exercício, pegar num outro exemplo em que o elevador torna-se essa passagem partilhável entre viventes e mortos, e esclarecer os códigos que encostam “Sweet Exorcist” ao terror convencional. O filme em contraposição é “The Eye” (2002), horror à moda de Hong Kong dos irmãos Pang, a história de uma mulher cega que recebe um transplante córneo e após essa cirurgia começa a testemunhar entidades não pertencentes ao seu próprio mundo. Em uma determinada cena, já consciente da anomalia que a sua visão apresenta, a protagonista depara-se com um “fantasma” (chamaremos assim) dentro do recinto do elevador do qual tem que aceder.

O confronto entre vivo e morto neste caso apresenta-se na mesma plenitude de “Sweet Exorcist”, a dominância do espírito perante a mortalidade de Ventura, recolhido ao seu medo e dúvidas. Por sua vez, o temor desta jovem, de costas voltadas para o seu fantasma, uma sequência de tensão sob os ensinamentos hitchcockianos (aqui vemos o espírito malicioso a aproximar lentamente da "vítima", o espectador tem todo o conhecimento dos elementos), torna a viagem lenta e angustiante, mesmo que este anti-”jumpscare” desenrola em apenas 4 minutos, enquanto que Ventura lida com a sua assombração em pouco mais de 20 minutos.

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The Eye (Danny Pang & Oxide Chun Pang, 2002)

As viagens ascendentes fazem seguir por aí, Ventura e o seu soldado tornam-se líderes daquele espaço, “esmagados” pelo som do ligamento de aço que os ascendem e do vazio impactado no cubo metálico, e por sua vez, interagem com o tempo de maneira oposta com a de “The Eye” (cujo tempo é medido pela localização dos andares), possivelmente exaltando ainda mais o cenário como cápsula de um outro registo temporal, quântico e sucessivamente espiritual.

“O Tempo governa o reino da interioridade, no qual tanto a subjetividade quanto a lógica, o privado e o epistemológico, a autoconsciência e o desejo, devem ser assumidos.” Friedric Jameson

O Gato de Schrödinger mais uma vez! Ventura vive entre os mortos ou Ventura morre entre os vivos. Conforme seja o estado, se é que iremos saber o seu (real) estado, “Sweet Exorcist” é terror para alma, nele sentimos as mesmas piscadelas que um exemplo assumido como “The Eye” evidencia, tememos por Ventura, pela sua integridade, psicologia e até mesmo vida. Em termos semióticos, o quadro respeita as linhas, as pinceladas, por outro lado, encaminharam o ensaio para uma outra direção. Contudo, ambos se complementam com um medo comum, supersticioso e expressivamente idealizado. Após o fecho de portas, o espaço limitado do elevador recebe passageiros vindos de todo o lado (e não somente da fisicalidade), uma redoma quadrada onde duas faculdades se tornam possíveis.

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Sweet Exorcist (Pedro Costa, 2012) / The Eye (Danny Pang & Oxide Chun Pang, 2002)