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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O meu medo preferido

Hugo Gomes, 23.10.23

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Outubro genérico, galdéria do seguidismo que sou, aproveito para ver o que os meus compinchas vão vendo nesta época tão tipicamente lusitana que é o Halloween. Filme após filme, sem sucesso, tento procurar a chama do medo que me obrigava na juventude a acender todas as luzes a caminho do quarto, a temer o ranger de um barulho parasita que o empreiteiro prometeu resolver há duas décadas, de sentir o agigantar do silêncio que parecia querer saltar sobre mim na forma de uma entidade maléfica fugida do sétimo círculo do inferno. Que bom este medo irrealista que entretanto foi substituído pelo terror existencial de perder a capacidade de alimentar os filhos, manter uma vida digna ou um caroço num testículo que anuncie o princípio do fim. Como um junkie à procura da sensação daquela primeira dose, também eu percorro as internets de cabo a rabo à procura do filme que me ressuscite o medo de que esteja um demónio escondido na banheira com a cabeça ensanguentada do vizinho de baixo numa mão, gritando lamentos demoníacos ensurdecedores em várias línguas extintas em simultâneo. 

*harpa do flashback*

Corria o ano de 1987. Meados de Julho. Já havia passado mais de um mês de férias grandes e a euforia ia-se transformando num emergente imperceptível tédio. 4 da manhã. Eu, o meu amigo Zé  e o meu primo João regressávamos de um baile de uma aldeia vizinha, onde fomos na esperança de ver pelo menos uma cover de Judas Priest ou Ramones. Recusamos várias danças e o balanço da noite resumiu-se a dois apalpões e a promessa de linguados atrás dos arbustos da igreja. Diante da carência do deboche que tanto se aguardava e nunca se manifestou, fomos para casa decidimos meter um VHS alugado no dia anterior. “O Exorcista”, um filme alugado pelo meu pai porque o senhor do clube de vídeo não me deixou trazer sozinho. 

Duas horas depois, três teenagers apavorados jaziam imóveis num sofá, sem pestanejar, quase sem respirar, a esperar pela luz do dia. Só com os primeiros raios de sol ganhamos força nas pernas e o sangue voltou a fluir com naturalidade. Até hoje continua a ser a  experiência de cinema mais aterrorizante da minha vida. Seguida de perto pelo momento em que a Marta, no nono ano, me levantou a saia para me mostrar as cuecas mas infelizmente ninguém lhe havia falado da prática do aparamento púbico.

*harpa do flashback invertida*

Apesar de ter atribuído a experiência “borra-cueca” do Exorcista à idade e à falta de contactos com conteúdos assustadores, o certo é que vi várias vezes desde então o Exorcista e o resultado mantém-se bem aterrorizante e fiel ao dia em que o vi pela primeira vez. Eu mudei, é certo, o filme mantém-se rei indestronável do terror. Centenas de filmes que lidam com exorcismos ou possessões demoníacas seguem linearmente a sua fórmula, esta cadência rítmica ao estilo Friedkin que se tornou norma. 

Uma família normal, sem raízes religiosas, ausente do circuito das maldições e profecias, uma aproximação científica e clínica aos problemas, a esperança que desaparece de modo lento e descontrolado, a inevitabilidade do mal, a impotência do homem perante forças que cuja sua compreensão mal arranha, uma criança lidada como um trapilho descartável, a aproximação clara e objetiva de Friedkin e os dotes vocais Mercedes McCambridge. Apesar desta tour de force de McCambridge, eu diria que em Johnny Guitar ou na sua fugaz passagem por Touch of Evil, ela não é menos aterrorizante.

Friedkin revela aqui o segredo do medo, de assustar o cinéfilo, que sentado incrédulo com a sua coca-cola e as suas pipocas caríssimas, consegue sentir aquelas dores como suas. A identificação, aparente normalidade, como a de nossa casa. Como Kubrick fez em Shining, ao nos mostrar a facilidade como o mal se manifesta pelas razões mais inesperadas, aqui Friedkin explica que qualquer um pode ser escolhido porque o mal quer apenas mostrar o seu poder. De notar que existe uma cena colocada na versão de 2001, a explicar exatamente isto para quem não percebe pelo tom geral do filme.

Desde então vi e revi milhares de filmes, sempre em busca dessa sensação primordial. Não há mês em que não apareça “o filme mais assustador de sempre”, embocando sempre na frouxidão do costume, nos trejeitos e costumeiras regras que os denunciam logo no primeiro ato. Elevou-se o terror, com a tendência intelectual de materializar em monstros e entidades os traumas, fobias, fantasias ou culpas, como se isso já não existisse desde o início dos tempos sem a necessidade de o anunciar a megafone Depois os filmes meta para quem já viu tudo, enfim, uma panóplia infindável de cinema que consumo sem restrições por ser a minha principal fonte de dieta cinematográfica. Mas o exorcista, meus amigos, o exorcista e eu dançamos abraçados ao luar há quase 40 anos e somos felizes assim. 

Tirando isto, só aquele email do IMI me fazem tremer angústia e suores frios. 



*Texto da autoria de Pedro de Alarcão Lombarda. Reconhecido internacionalmente como “aquele blogger que foi perseguido durante uma noite inteira por um grupo de donas de casa enraivecidas à conta de uns reparos à virilidade do Leonardo DiCaprio em Titanic”, Pedro acumula o maior número de cargos inúteis de todo o ecossistema cinematográfico nacional. Engenheiro de profissão, sonhador por vocação, pode ser frequentemente encontrado a olhar pela janela a ponderar narrativas alternativas para o quarto Indiana Jones ou a ignorar chamadas dos seus compinchas das Nalgas do Mandarim quando lhe querem vender suplemento de Herbalife. Utilizador ativo de três leitores de VHS e recordista nacional de Pang e OutZone tem também a única cópia restante em VHS de “She, A Raínha da Guerra e do Amor”.

O homem que colecionava medos

Hugo Gomes, 07.08.23

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"The Exorcist" é um daqueles filmes que sempre me desafia a (re)entrar no seu domínio proibido e herético. Há poucos dias, confessava a alguém a minha atração quase mórbida por esta obra e como a sua passagem (seja onde for) é sempre uma oportunidade para a reavivar. No entanto, não é de exorcismos nem de pazuzus que viveu William Friedkin, o mesmo tem expressado arrependimento em relação à sua abordagem nos recentes anos, o qual culminou no documentário "The Devil and Father Amorth". Contudo, ele é principalmente um mestre do medo por excelência, sendo que é dentro desse tema que nascem os seus melhores trabalhos, bem como os mais incompreendidos.

Para Friedkin é viver e morrer, o medo é só um sintoma dessa passagem, uma patologia que vem dos corpos [“Cruising”] e regressa a eles [“Bug”], devorando-os constantemente em uma tortura delirante É esse medo que transforma as suas obras em um turbilhão de loucura. Com isto, regresso mais uma vez ao "The Exorcist", àquela luz demoníaca que ilumina a silhueta de Max Von Sydow ao som de "Tubular Bells" de Mike Oldfield, oriundo do campo de batalha que o aguarda. É a mais espectacular receção ao que mais nos amedronta. Um temor localizado num quarto remoto na parte mais sombria da casa, a porta é apenas um aviso que nada impede, porque, tal como no cinema de Friedkin, é o medo que nos conduz.

William Friedkin (1935 - 2023)