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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Há espaço para uma nova releitura de “Nosferatu”?

Hugo Gomes, 02.01.25

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A primeira questão que se impõe é: por que reavivar “Nosferatu”, o intemporal filme de 1922 de F.W. Murnau, que no fundo não era mais do que uma variação não autorizada do romance de Bram Stoker [“Drácula”] que, por mera sorte (e a nossa, diga-se), sobreviveu à fúria judicial de Florence Stoker? A viúva do escritor processou o produtor Albin Grau (figura do ocultismo digna de uma narrativa própria) e a equipa de produção por plágio, levando à falência a produtora Prana Film e ordenando a destruição de todas as cópias do filme. Felizmente, algumas escaparam, permitindo que este clássico não só sobrevivesse, como se tornasse uma peça central do expressionismo alemão e da História do Cinema, para além da do enigmático Max Schreck como Conde Orlok a marcar profundamente o imaginário do género.

A decisão de revisitar algo aparentemente intocável, como fez Werner Herzog em 1979, poderia parecer uma dúvida corrosiva. No entanto, o gesto o alemão transcendeu a simples recriação: foi um ato de justiça poética, devolvendo “Nosferatu” ao seu campo original, ao universo assinado por Bram Stoker. Na sua visão, Orlok (aí encarnado por um mártir de corpo inteiro denominado por Klaus Kinski ... pois claro!)  assumia-se sem embaraços nem inquietações como Conde Drácula, e o seu interesse mortalmente amoroso (das mais estagnadamente belas Isabelle Adjani de sempre) Mina Harker. Herzog ofereceu uma filosófica reinterpretação que se libertava da mera homenagem, criando algo que, por si só, poderia encerrar o ciclo das revisões do clássico de Murnau. Escusado será dizer que o vampiro pálido virou “figurinhas” de cultura pop e de algum fascínio paralelo que motivou obras como “Shadow of a Vampire” (2000), oriundo de um realizador também ele objecto a merecer estudo - E. Elias Merhige (“Begotten“, 1989) - , um relato alternativo à rodagem do filme de 1927, com Willem Dafoe enquanto Max Schreck, ficcionalmente um ator que não é um ator e sim um vampiro pronto ao sacrifício em nome do Cinema.

Assim, a pergunta persiste: há espaço para uma nova releitura de “Nosferatu”? Talvez. Mas, após Herzog, como reinventar este material sem cair em redundâncias ou artifícios? Claramente - a luz que estilhaça vampiradas - não pertence a Robert Eggers, aqui assumindo um remake pouco despreocupado com o percurso histórico da obra de Murnau, até pelo simples facto de retroceder o cometido ato de Herzog, que fora o de devolver “Nosferatu” ao seu espaço originalmente concebido. O realizador-revelação de “The Witch” parece mais interessado em reativar a memória do que em repensá-la. Nesse sentido a existência de um novo “Nosferatu” é supérfluo, e o tratamento dado por Eggers é apenas fogo-de-artifício, ou como ultimamente tem demonstrado, umas quantas massagens eróticas para com o seu ego.

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Contudo, não se trata de um novo suspiro sob as vestes clássicas, ou como deslumbramos no descortinar do filme, a performance sexualizada, os gemidos igualmente magoados e repletos de um desejo entristecido por Lily-Rose Depp (possivelmente o melhor que o filme tem para nos oferecer como devidamente ‘fresco’), é terminada com um jumpscare. Sim, leram bem! Um jumpscare?! Essa praga do “terror de estúdio”, que se encontra muito bem presente em todo este ser. A recontagem faz-se na modernização de um passo pesado e ostensivamente virtuoso, uma estética de ódio plastificada, mas lá estão os tais ‘jumpscares’ em conjunto com as manhas e manientas do terror comercialoíde, a envergonhar, isso sim, a memória das versões anteriores, esses filmes alicerçados ao semiótico do verdadeiro medo e atmosfera. “Nosferatu” é, afinal, uma treva viscosa que se espalha e infesta como a Peste que o vampiro originário usa como arma de arremesso; é um terror engarrafado e consumido como tónico industrializado.

Não duvidemos que exista ocasionais vislumbres de luz, mas rasteiro na obscuridade da sua delirante objetificação. Há, no seu podre coração, um conflito interno e devastador entre a “visão de autor” e a “obra de estúdio”, mas ambos os lados são sequazes às manobras obedientes aos códigos do mainstream global.

Ainda há Bill Skarsgård — a assumir o lugar multifacetado que Johnny Depp ocupava no colo de Tim Burton, sucessor de Tim Curry e mais distante de Lon Chaney, intérpretes que captaram com vigor a essência carnavalesca no seu modus operandi —, a encarnar este Conde Orlok regressado da ilegalidade de Murnau. E aqui se percebe por que motivo Eggers faz um filme certinho, moldado ao gosto do grande público: porque esconde a besta demoníaca até à última consequência, incapaz de acreditar na sua presença corpórea, algo que os anteriores exploraram tão bem e vilmente. O vampiro é barulhento, animalesco e hiperbólico, exatamente como o cinema de Eggers se converteu… e mal.

Os fantasmas não só se divertem ... como também se vingam!

Hugo Gomes, 04.09.24

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Beetlejuice … Beetlejuice … Beetlejuice … nome proferido três vezes como uma maldição à lá “Bloody Mary” se tratasse, contudo, é por via dessa invocação que Tim Burton - restringido aquilo que a indústria havia se tornado, e consequentemente o encarou como um prisioneiro criativo - parece renascer, escapar das amarras e, ironicamente, deleitando a “carta branca” de uma major studios

A esperada sequela de um dos seus, e improváveis, sucessos (nem o realizador percebe de onde vem o êxito dessa obra de 1988), serviu como escape, a porta de saída de uma profunda desilusão para com a arte que prosseguiu por mais de 36 anos. Da nossa parte apontamos, não a um estilo cansado, mas à sua domesticação, principalmente sob o selo Disney, estúdio que desde o seu “Frankenweenie” (1984)  jurou não mais trabalhar, promessa rompida 26 anos depois com Lewis Carroll no coração, mas nunca na prática. 

Deixou-se amestrar até se tornar insustentável, resultado esse na forma de um elefante alado - “Dumbo” - daquelas live actions sem sal que empanturramos sem consciência. Não fora das versões mais bem acarinhadas dessa linha de montagem disnesca do fácil e do indolor, mas o Rato Mickey foi astuto em orquestrar um certo ódio insuflado a Burton, o culpado, apontaram eles na maior das malícias. O realizador frustrou-se com a experiência, quis desistir, mas antes de assumir-se na mera “tarefa” de um spin-off / série envolto de “The Family Addams” - “Wednesday” - fenómeno viral no comando da Netflix que como tudo o que é acessível nas estratégias de streaming, inconsequentemente o salvou do esquecimento. 

Beetlejuice Beetlejuice” é de matéria diferente, é um filme para estúdio, não há que negar, mas ostentando uma liberdade que quem, como Burton, ofereceu estilismos, maneirismos e estéticas adaptáveis aos mercados. Aí, a Warner prometeu fundos e mundos; da Netflix traz Jenna Ortega, a adição umbilical ao anterior papel de Winona Ryder, regressada, e com Michael Keaton como reprovado dessa fantasmagoria. O ator-”parceiro do crime” é novamente o demónio “bio-exorcista” que quebra a quarta parede com maior exatidão e liberdade que Deadpool (o facto daquele filme quebrar recordes em 2024 é de também quebrar o coração cinéfilo), porque não se resume a um alter-ego com mordaça corporacional e "cultura-pop atirada aos cacos," mas sim numa possessão burtonesca. Aliás Burton fala através desse Beetlejuice, como também o filme é todo ele pontuado por uma certa raiva enfeitada num humor ácido. 

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Tim Burton e Michael Keaton na rodagem de "Beetlejuice Beetlejuice"

No fundo é isso, sem nunca ceder ao mofo, Tim Burton faz de “Beetlejuice Beetlejuice” um filme sobre o seu tempo, não a do filme / contexto em si, mas de Burton, e como ele se vê na nova realidade, há tabefes dadas a ativismos de moda como também às corporações que o tentaram amordaçar (a piada da Disney é impagável), assim incutindo um rol de preciosidades cinéfilas em paisagens-mercantis órfãs dele. Portanto, não é somente um efeito fénix, é o inteirar-se, não de um homem novo, mas de um "sujeito" determinado em conduzir o seu cinema para épocas fora da sua. 

Vista as coisas, é mais que sequela, é mais que entretenimento desfasado para a rentrée, é um exorcismo burtonesco, delirante, descosido e sem papas na língua sem com isto envolvendo em chico-espertices ou no arrojo vanguardista. É Burton sendo Burton a prevalecer como Burton mesmo que as forças que o rodeiam sejam tão anti-burtonescas. E o expressionista "afterlife", o além-vida, traduzidamente para um inferno que nos reserva  burocracia e a extensão do modelo capitalista ... delicioso!

Receita de iscas sem nenhum amor para dar

Hugo Gomes, 03.07.24

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Por entre distopias desenfreadas e pratos esquisitos, Yorgos Lanthimos rumou para os EUA com o propósito de conquistar, não o agrado consensual, e sim, a repugnância enquanto espectáculo, garantindo essa formulação nos mais diferentes quadros, seja performativo, temático, visual ou até moralmente.

Entre ganhos e perdas, o ódio ao realizador grego tem sido a sua combustão, o seu presente envenenado ao espectador, que hoje lida com o desastre e mesmo assim recusa desviar o olhar. Nesse sentido, Lanthimos fala para nós, para a nossa sociedade, e dentro desse ramo dos assumidos provocateurs, sempre pontuado por produções excêntricas, conjuga um trabalho eficaz em captar audiências largas com um elenco estrelado (o isco à sua bizarria), muitos deles atores movidos pela atração de transfigurar os seus papeis-tipo, daí Emma Stone ser a sua “musa” nos últimos filmes (como também a estranha 'dançante' a todo o serviço).

Depois de algumas coroas de flores atiradas ao palco com “Poor Things”, adaptação de um livro de Alasdair Gray, Lanthimos prossegue em sociedades vis e disformes, conjuradas da sua realidade neste encontro antológico de três “contos” que tão bem transluzem os limites da devoção (regresso à colaboração com o argumentista conterrâneo Efthimis Filippou). Para isso, recorre a um elenco parcialmente fixo: Emma Stone, novamente, emborcada e de olhos vítreos, embriagados, a servir das três a raiz dos problemas, e no outro canto Jesse Plemons (tão sósia de Matt Damon) a concentrar-se em protagonistas de difícil empatia.

São “histórias de bondade”, como assinala o título em português com muito sarcasmo embrulhado; a história de um homem sem autonomia na sua vida, a de um marido que não reconhece a sua mulher retornada após dias desaparecida e de devotos de um culto qualquer que procuram uma espécie de messias. Três narrativas que exploram os devaneios de Lanthimos, no encontro indigesto das suas primeiras narrações - pontuados na sua frieza e, sobretudo, estranheza - são igualmente retalhos aparentemente sofisticados no sentido formal. A primeira, intitulada “The Death of R.M.F.”, é um abraço apertado às estéticas kubrickianas, essa demanda que Lanthimos inveja, aqui, olhando de soslaio às margens de “Eyes Wide Shut”, com o seu protagonista a pavonear por territórios estranhos que não lhe competem, um conto de devoção ao Poder, desse encarregado 1%, a “minoria” dominante segundo a lógica das hierarquização social.

Contrastado com a imperatividade da Família (a próxima devoção) no segundo trecho - “R.M.F. is Flying” - de contornos shyamalanianos e cuspidelas a sentimentos pasolinianos. Já no terceiro - “R.M.F. Eats a Sandwich”, é a Religião devota que comanda, sendo do tríptico o mais desengonçado esteticamente, onde se nota a clara ambição de Lanthimos em regressar ao seu estilo desconcertante dos trabalhos gregos. Os três, sempre embebidos num humor ácido de negritudes plenas, não escondem esse sorriso trocista do realizador em desafiar o espectador do seu conforto (rimos, muitas vezes embaraçosamente, do próprio embaraço ou da tragédia destas personagens sem um pingo de compaixão).

Não é "cinema confortável", está evidente, mas tem iscas a acompanhar um prato longe da iguaria, longe da calorosa refeição doméstica, uma mixórdia fria, descontente, disfuncional, concretizada através das sobras encontradas no frigorífico, algumas das quais expiradas, apenas 'disfarçadas' com temperos ativos. Existe, e daí ele não conseguir desenvelhiçar, um sentimento de “projetos na gaveta”, atados e vendidos como antológicos. A experiência dá-nos pouco, para além da provocação sobre a provocação.

Filme das Feias-Artes

Hugo Gomes, 25.01.24

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Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção. 

A adaptação do  bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgos Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto? 

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Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica. 

Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …

Anderson City

Hugo Gomes, 23.06.23

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Por que é que a personagem dentro da personagem de Jason Schwartzman queima a própria mão no grelhador? Questionando o imaginário autor, porta-voz do narrador, aqui interpretado por Edward Norton, que responde, sem grande alarido, com a procissão da sua criada narrativa. O “não entender”, não pode, nem deve, ser visto como uma desculpa, seguimos então em frente com o relato. “Asteroid City” cai entre nós como uma “bomba”, um tiro às tendências que resguardam estes tempos em que o streaming e a falsa-sensação televisiva (séries que já não são televisão, nem nunca serão) estabeleceram uma relação tóxica com o espectador, forçá-lo à reger pela continuidade, tudo para este factor e nada contra esse factor. 

No cinema, tal feito acarreta nas audiências - fasquias, realismo e o senso do mesmo, prevalecem - deixando a estética, essa, desvanecida, vilipendiada como uma distração, uma maquilhagem ao vazio, ao oco e fútil. Ora bem, vazio não é o que deparamos no cenário desértico desta fictícia Asteroid City, antes disso, uma farsa, um filme a compor-se frente aos nossos olhos, ou diríamos mesmo (utilizando a velha glória teatral “O Mundo é um Palco”, neste caso, aperfeiçoando à sua realidade cinematográfica, “O Mundo é um Cenário”), a ser encenado no nosso horizonte. Tudo está aparentemente “organizadinho”: a mise-en-scène nos trincos (que saudades deste aprumo, que parece não ter lugar no dito “cinema moderno”), os planos conjunto a brindar os olhares, os gestos meticulosamente planeados em cadência dos movimentos de câmara, subtis e sintéticos, os atores reduzidos a bonecos em prol de inventário debitado e materializado. 

Contudo, os andaimes estão expostos, entendendo à sua funcionalidade de apoio para a eventual construção, o narrador surge-nos no lugar errado e à hora errada, a desconstrução que dá lugar a um pseudo-making off, um formato de tela que nunca se decide e igualmente estabelece regras nas suas dimensionalidades, tudo na literalidade, há que entreter a audiência sem que esta acredite no que vê. De alicerces revelados, Wes Anderson prova que na fantasia das suas fantasias, criar nunca se resume a “storytelling”, criar, artisticamente falando, é igualmente compor, rebuscar, decifrar, esconder, revelar ou até “pintar”, quadros elaborados para deleite, seja do autor, seja do espectador. Um show de mecanismo e virtuosismo, perfeccionismo e calculismo, a essência do cinema andersoniano. Porém, como o próprio expressou, contra “copycats” e mimetização AI; não é da estética, visualmente desferida, o qual resume o seu cinema, o vazio à pouco invocado como centro formal, é um atalho para a plagiaria, o cinema de Anderson fala com ele próprio e dialoga entre si, aliás, é disso que são feito os autores de cinema, e nós, perante um deserto, precisamos mais de autores. 

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Isto para insinuar que me perdi em Asteroid City (no bom sentido, é óbvio), e igualmente senti-me enganado após deparar com o embuste que a cidade é, uma criação dentro da criação, um matrioska que Anderson desculpa o seu cinema. É uma peça a fazer-se de peça, a alavanca narrativa para entrarmos em alter-egos e cunhas. Essa, Asteroid City, é um sonho vindo dos que não conseguem dormir, uma alternativa, realidade talvez ou sintética provavelmente, onde estas historietas à sombra dos testes nucleares são relatos de avatares jubilantes, o “body double” referido pela diva caída Scarlett Johansson após o relance de um corpo desnudado (o de não saber se é o dela ou de uma dupla leva-nos à natureza do filme, onde o que se parece não é, e o que é não é o que se parece).

Portanto, podemos dizer que tudo não passa de uma brincadeira, um hobby concretizado, decorativismo gritarão muitos, saindo desfraldados da sala, acompanhadas por acusações de “repetição” estilística, sedentos pelas narrativas A a B, ou da realidade que nos abraça, desejando vê-las representadas nos nossos medias. Sim, “Asteroid City” é um cinema-romântico, o romantismo de que a tela é uma porta para lá das leis físicas do nosso dia-a-dia, de novos olhares e novas fragrâncias. Wes Anderson apresentou-nos desde sempre uma espécie de “casinha das bonecas”, um cinema farsolas, trocista, ingenuamente cruel e com, acima de tudo e acima do resto, familiar. Sim, há um conforto familiar nesta sua estranheza e “Asteroid City” possui pé firme nesse mesmo “vale”. 

Terminou! A música anuncia o final, de costas voltadas para o proto-vilarejo que empresta o nome à película, os créditos finais começam a rolar, um papa-léguas, curioso pássaro testemunhante das peripécias ali fabricadas, balança no ecrã, fazendo ”pirraças” a quem vai gradualmente saindo da sala. Aos que ficam, a sua dança vitoriosa vira recompensa. Não quero abandonar este filme, não consigo de todo abandoná-lo. Rastaparta ao realismo!

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A nova atração de Guillermo Del Toro é um embuste

Hugo Gomes, 26.01.22

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O homónimo livro de William Lindsay Gresham já havia gerado uma versão cinematográfica em 1947, sob a mão de Edmund Goulding (“Dark Victory”) e com Tyrone Powell como cabeça de cartaz, um clássico encantado com a própria charlatanice que a narrativa pontua. Porém, o embelezamento da mesma atinge picos de elevação e vaidade com Guillermo Del Toro, que com um Óscar “nas unhas”, indicia aquele que é o seu filme mais “oscar bait”.

Alguém devia ter-lhe dado o recado de que até mesmo a seleção aos mediáticos prémios de cinema tem vindo a mudar nestes últimos anos, e o formalismo academicamente aceite encontra-se constantemente abandonado pelos novos paladares residentes no comité de votação. O problema de “Nightmare Alley” não é a sua ambição de ser um produto de prestígio (hoje soa-nos datado), mas antes a sua falta de ambição para conservar uma identidade e não pintá-la com um artificialismo brilharete e verborreico. Se a versão de Goulding disfarçava os seus alicerces pouco aprumados com sugestão, já Del Toro é demasiado visual para o seu bem, nunca deixa o espectador sentir a mística, a atmosfera (não confundir com cenários pomposos e excêntricos que a certo momento ostenta como aceno), nem a gradual tragédia. Arrasta-se, quase cadavericamente ao longo de duas horas e meia, e mesmo com essa duração nunca chegamos a sentir apreço pelas personagens, automatizadas e condenadas a serem somente peões para o golpe. 

Digamos que Guillermo De Toro falha em fazer cinema modelarmente nostálgico, circense e recorrido a grandes nomes como “atrações de feira”, um embrulho tão certinho que o gore que surge-nos inexplicavelmente (e desnecessariamente) soa-nos uma anomalia.

Finalmente temos Aranha!

Hugo Gomes, 20.12.21

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Pegando na tocha acendida por Bryan Singer e a sua trupe de mutantes (“X-Men”, 2000), Sam Raimi conseguiu em dois filmes aquilo que se tornaram nos alicerces de muito do chamado cinema de super-heróis que viria a desaguar este Universo Cinematográfico da Marvel. Começou com a prova dos nove quanto ao êxito de Spider-Man (2002) e sequencialmente, dois anos depois, a bases existencialistas e dramáticas de uma musculada e convicta sequela. Por outras palavras, a duologia de Raimi sobre o aranhiço (encenado por Tobey Maguire) constituiu numa radical mudança quanto à nossa visão dos super-heróis em grande tela (colocando-os nas possibilidades dramaturgias e evidentemente de costura com outros géneros inteiramente cinematográficos). 

Renegar atualmente o cinema dominante dos heróis é renegar uma parte da contemporaneidade quer industrial, quer formal, de um tipo de produção norte-americana ou de importação cultural expandida pelo resto do globo. E tal sucedeu com esta famosa criação de Stan Lee, e apoiada por um realizador anteriormente arriscado nesse tal género embrião com isolados casos de êxito (falo de “Darkman”, a sua criação, em oposição dos felizes exercícios de Batman de Tim Burton e Superman de Richard Donner, duas figuras que transcendem a mera intenção de comics, prestando-se como parte cultural de uma América do século XX), o restante surgiu como apreço à temática do “render do peixe”. O terceiro tomo (em 2007) foi sabotado por um estúdio em consolidação com as “wishlists” dos fãs, debilitando todo um arco de vingança e redenção que Raimi havia estruturado neste fim de trilogia, deitando por terra qualquer descendência. 

A Sony Pictures como resposta elaborou um novo “homem-aranha”, desta vez com Andrew Garfield e com inspiração no tal universo cinematográfico de Kevin Feige a ser elaborado “ali ao lado”. O dito reboot só viveu duas vezes, fãs e crítica viraram “costas”, deixando o estúdio e os direitos do tão valioso personagem na ameaça da Disney / Marvel Studios, cuja solução é encontrada num acordo entre cavalheiros, e assim, como bem sabemos, Tom Holland veste o fato e balança de forma vigorante na teia do aracnídeo humano. Quer dizer, vigorante ao serviço de um dialeto imperativo de uma forçada continuidade, desprezando as anteriores encarnações de Maguire e Garfield (unidos pela tragédia e pelo dilema entre o seu alter-ego e a vida pessoal que desmoronava), numa figura acriançada, colorida bem ao jeito do toque de Midas da Disney. A este foi-lhe entregue uma panóplia de gadgets, um subenredo de legado para com um outro herói estabelecido, e tramas sob tramas colegiais. É o homem-aranha na ótica do seu público-alvo, ou diria antes, do público atual. 

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Havia nele uma ausência de nuances trágicas, humanas aliás, que pudessem resgatar a personagem de Tom Holland da mera caricatura de “rookie”. A consolidação chega-nos na forma de um evento multiversal e à sua maneira, uma vénia ao legado do heroísmo moderno que o cinema abraçou como seu predileto “cinema-pipoca”. A tragédia adquire forma, conduzindo a este homem-aranha no endereço do coming-of-age, do crescimento necessário, contrariando fórmulas disnescas onde a morte e a perda (pode não soar, mas são elementos, ou ausências, bem diferentes) tem finalmente lugar e o luto converte-se em matéria de existencial emancipação. 

O que se pode verificar por detrás da pirotecnia previsível deste “No Way Home” é a ruptura da Sony para com as matrizes do seu estúdio “irmão-inimigo”, Holland é por fim uma personagem à medida desse estúdio, crescida, despida do militarismo anteriormente associado, uma figura propícia às suas próprias aventuras, como vemos no último e esmorecido ato, e o ator dotado em seguir a tal requisitada espessura nessa subjacente carreira. 

Agora, se “No Way Home” é a tremenda obra-prima do subgénero ou a melhor encarnação da homónima personagem no cinema? Obviamente que não. Todavia é a peça que precisávamos para que o Homem-Aranha de Holland encontrasse finalmente o seu humanizado lado.

Nas tristezas e alegrias do homem mais solitário do Mundo

Hugo Gomes, 30.12.20

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“É impossível viver sem razão”

A razão, essa fonte irredutível de vida, é matéria maleável para Abel Ferrara, cada vez mais distantes dos padrões que havia regido décadas antes, assombrar e distorcer tendo como fruto colhido mais um ensaio esotérico sobre o solipsismo. Relatos e tormentos de solidão são plâncton no vasto oceano que é o Cinema, abundante, próspero e incansável no seu ressurgimento.

Nada contra esse tipo de introspecção, em grande tela o reflexo do Homem só continua a ser uma das suas melhores historietas, porém, chegamos a esta nova utilização do ator Willem Dafoe numa enésima experiência pedante de Ferrara, o de colocar o ator na representação óbvia do eremita global. Sibéria, a taiga gelada onde parece não albergar vida alguma é palco para o nosso protagonista, um estrangeiro em terra de ninguém, que gere um ainda mais remoto bar. Dafoe, sob o corpo e a alma fragmentada de Clint, lamenta-se e augura da sua própria sorte, ansiando por confessar os pecados ocultos que o forçaram a refugiar-se de todo, quer dizer, restante mundo.

Por entre a vodca servida como conforto em manhãs e noites gélidas, o nosso alienado procura paz e regalo no corpo feminino, acariciando e degustando os cantos e recantos desse prazer lascivo. Mas é quando uma grávida mal amparada entra no seu decadente estabelecimento, que Clint revive a luz que lhe havia faltado, a da vida, clarificada nesse “fenómeno” chamado maternidade (“Je vous salue, Marie”?). O encontro com este “milagre da natureza” o leva a refletir sobre a sua própria vivência, legado e através disso o destino da Humanidade, hipérboles geradas pelos seus “problemas de primeiro mundo”.

Sonhos correntes, esoterismo variados por entre febris e ocasionalmente molhados fantasias, memórias ripadas e replicadas, entidades que o visitam e os quais são visitados, elementos que trazem à jornada de Clint uma certa interiorização, mas sem razão de existência. A este protagonista o espectador é levado a seu egoísmo, narcisismo e egocentrismo de forma martirológica. Abel Ferrara já havia comprometido tais laivos na incorporação do seu parceiro (já vão na sexta longa-metragem juntos) desde que Asia Argento o assombrou em “New Rose Hotel” (1998).

O corpo de Dafoe é o mais próximo que se tem do divino e nas mulheres do Santuário, é tudo uma questão de representação e a sua atribuição em calores xamânicos, mais do que propriamente poéticos ou centrados em doutrinas do foro psicanalista. E esta viagem pelo entender de Clint e, em contrapartida, o reflexo de um realizador torturado plenamente ciente da sua insaciável insatisfação para com o Mundo ao redor e aquele o qual cria. Infelizmente, as promessas de Ferrara são em vão, ele não constrói nem re-imagina nova linguagem, tal já havia sido apropriada por Andrei Tarkovsky que sob as suas metas temporais induzia na sua história hereditária um fundido e ambíguo caudal entre realidade / surrealidades, sonho / fantasia, ficção / poesia. Todas as servidas dicotomias entrelaçavam e geravam a sua utopia (neste caso, nota-se uma gesto inspirado nesta viagem de Ferrara com a autognose em “Mirror” de Tarkovsky).

Em “Sibéria” presume-se a densidade, mas não sai do faz-de-conta. É umbiguismo revelador que parte de lado nenhum para chegar a “nenhures”, e nem a viagem compensa a trajetória. No fundo, Clint … aliás Dafoe, como ninguém, sendo Dafoe, resulta no espetáculo já confirmado de um ator de corpo e alma. Se é através dele que o filme se apoia incondicionalmente, então há capacidade, porque fora da sua órbita é somente fogo-de-vistas.

A luz que reacende o cinema “morto” e perdido no tempo

Hugo Gomes, 15.02.20

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Havíamos encontrado vitalidade em Robert Eggers, não somente “sangue novo” num género cada vez mais dependente das “majors”, da auto-referência e sucessivamente dos seus viciosos lugares-comuns, mas visualizamos em “The VVitch: A New-England Folktale” (“A Bruxa”, 2015), sobretudo, uma maturidade imagética. Essa, é propícia na criação de uma densa atmosfera que constantemente nos guia para o desconhecido e ergue a sua cabeça por um certo fascínio daquilo que não compreende.

Passados 4 anos, chega-nos “The Lighthouse” (“O Farol”) e voltamos a deparar-nos com essa maturação e encanto pelo críptico e disperso. Mas é aqui que o jogo se desenvolve, e refiro “jogo” porque Eggers brinca com referências com a pretensão de demonstrar toda uma bagagem cinéfila. É de um jeito vampírico que vai beber das imagens, das construções estéticas e dos distúrbios que assentam nas suas personagens (Robert Pattinson e Willem Dafoe, como pupilo e mentor), tão crípticas como o ambiente envolto, como a deambulante atmosfera onde o denso nevoeiro se descortina perante um punhado de referências cinéfilas.

É apenas óleo que aprimora a narrativa, que o torna uma tentativa de engate ao mais acérrimo cinéfilo. Convém afirmar que este trabalho de Eggers não está longe da carreira que James Gray apresenta; dos anónimos truques de citação, a fim de se sentar nas tão cobiçadas mesas dos “anciões”.

Em “The Lighthouse”, é toda uma mistela de restos deixados por Jean Grémillon (“The Lighthouse Keeper”, de 1929, é a sua grande referência), pelas atitudes expressionistas e os contornos lovecraftianos deitados ao mar para todo um vasto leque de criaturas marinhas alimentarem-se. No fundo, é isto: uma ‘masturbação’ como aquela que Pattinson urge para afastar o seu tormento, isolamento e pensamentos nefastos. Um filme teoricamente sujo emoldurado pela fotografia “vintage” de Jarin Blaschke, que já havia trabalhado com Eggers nessa sua grande obra “The Witch”. 

Por isso, tal como Willem Dafoe, que perante a sua condição de farrapo humano desenrasca qualquer motivo para brindar, nós – meros mortais – brindemos à vaidade e à ambição do reconhecimento:

Should pale death, with treble dread, make the ocean caves our bed, God who hears the surges roll deign to save our suppliant soul.“

Eis "Aquaman", para voltar a acreditar no lado “camp” do super-herói

Hugo Gomes, 12.12.18

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"Permission to come aboard."

Longe dos fundamentalismos (ou “fanatismos”) por trás dos universos partilhados MCU (Marvel/Disney) e DCEU (DC Extended Universe), venho defender uma “impopular” perspetiva. A nível formal as apostas da Warner Bros. ostentam uma certa personalidade individual que entram em conformidade com o respetivo “maestro” do projeto, enquanto a Marvel / Disney (com exceção das incursões de James Gunn e Taika Waititi), preservam uma coerência visual e narrativa em nome do seu franchise, quase requisitando uma linguagem no contexto do seriado. A junção DC / Warner opera através de filmes desengonçados na sua natureza de partilha de um ecossistema, respeitando sobretudo o estilo ou os elementos característicos do seu realizador.

Evidentemente, e usando como exemplo os tiques estéticos que traçavam uma narrativa sobretudo visual de Zack Snyder em Batman V Superman: Dawn of Justice”, as tentativas de um neo-noir pós-Training Day de David Ayer em “Suicide Squad” e a sensibilidade da construção de personagens femininas em “Wonder Woman” (é importante sublinhar o “tenta-se”), nenhum destes capítulos se interligam da maneira mais orgânica. Portanto, não cedendo em miopias de quem faz melhor ou pior, é certo que neste “Aquaman” assistimos novamente a essa corrente da “tentativa” autoral, desta feita com James Wan a ganhar o gosto pela grande produção, a trabalhar sobretudo os espaços como tem feito com algum sucesso em recentes e inauguradas sagas como “The Conjuring” e “Insidious”. Essa relação é sobretudo adaptada para com a natureza deste filme que segue o ressurgimento de Arthur Curry como Aquaman, herói da DC que tem sido anos a fio envolvido num certo tom anedótico.

James Wan não tem a visão milimétrica com que engenha os jumpscares dos seus habituais “palcos dos horrores”. Pegando como exemplo a primeira sequência de ação, onde Nicole Kidman luta contra um punhado de guardas atlantes dentro de um farol (importante referir o reduzido espaço cénico), a câmara em ponto semi-zenit mapeia todo o campo, medindo a sua dimensão ao mesmo tempo que incide como um olhar atento à decorrente ação. A partir daqui, surge, ponto a ponto, esse cuidado cénico e a cumplicidade desta para com o movimento das suas personagens (a destacar uma materialização CGI do tão mítico poster de “Jaws / Tubarão”, auferindo ao espectador uma visão unidimensional da própria ação). Em palavras mais precisas, "Aquaman" joga com pequenas pitadas de dinamismo técnico-narrativo, as imagens-ação em voga com as imagens-tempo (citando Deleuze), tudo em função de uma invisível arquitetura de arcos narrativos.

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Por outro lado, esta nova aventura da DC experimenta, a nível tecnológico, novas realidades e possibilidades na criação de mundos artificiais. Em jeito de “Avatar” de Cameron (para referir essa perfeição nos mandamentos de George Lucas – as mil e uma possibilidades graças à “autenticidade” do CGI), o filme de James Wan ousa em corporalizar uma Atlântica submersa, como toda uma ação / conflito decorrido debaixo de água (ou até os diálogos envolvidos num certo eco adquirem essa (in)coerência possível).

É verdade que depois desta proposta seguimos um brindar da tecnologia e do visual colorido em modo de um espetáculo circense, mas convém referir que para o bem ou para o mal, “Aquaman” é um filme antiquado (e não menciono das pequenas essências shakespearianas), exibindo virilidade (o facto de termos Dolph Lundgren por estas águas, aprofunda ainda mais essa sensação) e um espírito aventuroso que o afasta das demais incursões do subgénero. Esta sua atitude leva-o a uma tendência auto-jocosa e é possível imaginar que se este mesmo filme fosse reproduzido na década de 80 ou 90, seria protagonizado por um Arnold Schwarzenegger ou Sylvester Stallone.

Contudo, sem fazer muito pelo cinema de super-heróis ou ser uma ode do blockbuster americano, Aquaman apura-se como um entretenimento de certo aprumo, aptidão e de constante busca por uma identidade (sabendo nós, que tenta prevalecer e definir o franchise construído por pesados, mas poucos passos). Pelo menos existe um espírito mais “Star Wars” que as últimas variações da saga.