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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Como não deixei de ter medo mas passei a gostar de me assustar no cinema

Hugo Gomes, 24.10.23

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The Mask (Chuck Russell, 1994)

The Mask

O ano é 1995 e vou ao cinema com o meu pai e amigos meus ao cinema. É a primeira vez que vejo Jim Carrey no cinema, um ator cuja filmografia seguiria com intensa atenção durante vários anos. Tenho a certeza que nunca o vi antes — embora o Pet Detective (1994) se torne, assim que o vejo, um filme que revejo constantemente — porque não sei que o que me espera é uma comédia. Tenho 9 anos, um casaco tipo canadiana azul clarinho com debruados brancos e vou ao cinema com o meu pais e amigos um pouco sem saber o que me espera porque era isso que fazíamos na altura. Não percebo que é uma comédia inicialmente. Não percebo que é uma comédia até porque quando Stanley Ipkiss coloca pela primeira vez a epónima máscara na cara, eu coloco o capuz da minha canadiana a tapar-me a cara. Imagino que o mais terrível body horror esteja a acontecer perante os meus olhos e resolvo tapá-los (percebi, imediatamente a seguir, que era uma comédia). É uma reacção visceral que me acompanha sempre e é a primeira vez que penso conscientemente que não gosto de me sentir assustada.

 

Scream

O ano é 2001 e vejo o Scream (1996) com o meu pai. Vimos o primeiro mas também os filmes seguintes, completando o que era, na altura, apenas uma trilogia. O meu pai assegura-me que não são assustadores e têm mais de comédia do que de terror. Como já não tenho 9 anos, nem a minha canadiana azul, decido que tenho de ver mais coisas com ar assustador. O facto de Scary Movie (2000) ter estreado no cinema também faz com que comece a perceber o conceito não sei se spoof (Scary Movie), como o conceito mais sofisticado de objecto metatextual. Penso que um filme que junta a comédia ao horror e pisca o olho ao espectador é algo que consigo tolerar muito melhor do que filmes abertamente aterrorizantes. Continuo a não gostar de me assustar no cinema, mas rir-me a seguir a assustar-me é uma mistura potente.

 

The Others

O ano é 2001 e fui ao cinema ver o The Others apenas por um motivo: Nicole Kidman. Estou numa fase em que gosto de tudo o que ela faz. O filme estreia-se no mesmo ano de Moulin Rouge! e nem acredito na sorte que tenho. A meus olhos, tudo o que faz é ouro. Mas The Others é um filme de fantasmas e um filme de terror. De terror psicológico, sem sangue e sem vísceras. Digo a mim própria que esse é o pior tipo de filmes de terror e que não consigo aguentar o suspense e a ansiedade. Começo a evitar filmes de terror menos viscerais e mais conceptuais. Ou de um terror mais implícito.

 

Hostel

O ano é 2005 e fui ver o Hostel ao cinema porque vários amigos queriam ver também. Asseguro toda a gente com quem vou ver que não gosto de filmes de terror e certamente não verei quase nada do filme. Acabo por passar grande parte do filme a vê-lo entre dos dedos (ou a não olhando de todo, empregando a técnica da canadiana já sem a ter). Acabo, contudo, por ser apanhada pela trama do filme, mas sobretudo pela sua extravagância. Hostel é extremamente gory e completamente barroco na sua exuberância de crueldade e vísceras. Isso distancia-me, de certa forma, das coisas que poderiam ser mais assustadoras e a violência torna-se mais cartoons e suportável. Penso que filmes gory e barrocos são mais apelativos por isso mesmo e que, dentro do leque do horror, poderia ser pior.

 

It Follows

O ano é… depois de 2015. Um grupo de amigos tem uma tradição mais ou menos anual de ver um filme assustador no Halloween. Todos os anos tento sugerir, ou que seja aceita a sugestão, de algo mais campy e/ou temático como Hocus Pocus (1993) ou Rocky Horror Picture Show (1975). Neste, como em todos os anos, falho nesta tentativa. It Follows é o feliz contemplado. É visto num torpor de gomas e sono, já bem avançada vai a noite. É assim que começo a ver o filme, que me conquista na sua ideia de filme-de-terror-mas-non-troppo, encantada pelas suas imagens inquietantes, mas sobretudo pela atmosfera paranóica e pela direcção de fotografia onírica. Penso que aguentei o filme melhor que em muitos anos. Talvez já esteja crescida o suficiente para ver filmes de terror.

 

Hereditary

O ano é 2018. Três amigos estão a viver numa única casa com uma sala gigante e a tradição anual de Halloween mantém-se. Desenvolvi uma técnica para ver filmes que já sei que vão ser assustadores de uma maneira visceral ou psicológica que é: ler tudo sobre eles. Leio toda a entrada da Wikipédia sobre Hereditary, para saber os momentos em que devo afastar os olhos do ecrã ou para aguentar os olhos no ecrã já sabendo o que me espera, tentando eliminar o aspecto do suspense ou da surpresa, algo que tende a não me fazer gostar destas experiências cinematográficas. Apesar da minha estratégia, passo metade do filme a utilizar o método-da-canadiana, mas agora a canadiana são os meus dedos. Consigo evitar ver alguns momentos, outros apanham-me totalmente desprevenida e solto um grito de genuíno terror que faz os meus amigos rir. Penso, contudo, que o filme está tão bem feito que as sensações de terror já funcionam de uma maneira se não catártica, pelo menos mais apelativa. Talvez ajude a pensar e analisar filmes e cinema em geral de uma forma mais intelectual — ou não só empírica — e isso faz-me pensar que tenho de abrir ainda mais o meu leque de consumo.

 

Curtas da Boca do Inferno

O ano é 2020. Mais concretamente, estamos em março de 2020. É o primeiro ano em que faço programação de curtas-metragens no IndieLisboa. A última reunião implica o visionamento de uma data de filmes de terror, ou terror-adjacent, para a secção da Boca do Inferno. O convite para integrar esse comité é feito e estou a gostar tanto da experiência que ignoro o meu histórico medo de filmes de terror. Vejo várias curtas, de vários “sabores” diferentes dentro deste género. Do mais cómico ou meta, ao terror mais puro. A lente da programação faz-me analisar estes filmes de maneira mais pensada e faz-me gostar sinceramente de os ver. Foi-se o medo apreensivo, a sensação de ansiedade aterrorizante. Ainda há medo, vontade de afastar os olhos, genuíno afastar de olhos, todas essas reações. Mas já não as vejo como reações más a ter, ou que vão contra o que um aficionado deve experienciar. Agora fazem parte da experiência e a experiência é boa.

 

Pearl  

O ano é 2023 e reparo que o Pearl ainda não estreou em salas portuguesas. Tenho continuado a fazer programação das curtas da Boca do Inferno desde 2020 e este é o primeiro ano em que faço a secção na sua íntegra, ou seja, tanto curtas como longas metragens. Agora, o gosto por estes filmes e por esta secção é enfaticamente positivo. Num ano em que vejo muitos filmes em geral, mas também muitos de terror mais clássico a outras facetas mais genre-bending, o Pearl (2022) e o seu par X (2022) são filmes que procuro pelo buzz que criaram e que vejo totalmente fora do âmbito da programação do festival. Mas depois de os ver penso no âmbito da programação do festival. Reparo que o Pearl ainda não estreou em salas portuguesas. O festival acaba por conseguir passar o Pearl no dia de abertura, e, apesar de ter passado algum tempo depois da sua estreia americana e de ter rebentado pelos recantos mais litigiosos da internet, sinto a sua inclusão na secção como reflexo de um trabalho bem feito. Todos os filmes são filmes que veria por mim própria. Todas orgulhosas escolhas para uma secção querida. Considero-me convertida.

 

*Texto da autoria de Ana Cabral Martins, que acha que o filme Phantom Thread (2017, Paul Thomas Anderson) também é uma comédia. Tem um doutoramento em Media Digitais e já trabalhou no mundo académico estudando a indústria de Hollywood e o cinema no feminino. Fora do mundo académico, já escreveu para publicações nacionais, como o Público ou a Electra, e internacionais, como a Beneficial Shock e Shelf Heroes. Atualmente é programadora no festival internacional IndieLisboa e é crítica de cinema no website À Pala de Walsh. Sigam-na no Twitter.

Dossiê: «O Cinema e o Medo»

Hugo Gomes, 21.10.23

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"A Nightmare on Elm Street" (Wes Craven, 1984)

Vamos falar de Medo, e do Cinema é claro! Aproveitando essa contagem decrescente para o Halloween, o tão badalado Dia das Bruxas, lancei o convite a nove personalidades para colaborar neste novo dossiê temático - “O Cinema e o Medo” -, tratando-se de uma colectânea de textos que seguem um simples propositivo: expressar o medo no cinema e vice-versa. O que poderemos aqui, são experiências, filmes, pensamentos e até dissertações sobre este “casamento”.

Portanto, a partir de amanhã (22/10) vamos contar com um texto de um especial convidado neste estaminé, para todos juntos celebrar a festiva data e afins, mas sobretudo, fazer do Medo a nossa casa.

"What's your favorite [elevated] scary movie?"

Hugo Gomes, 13.01.22

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Não há nada melhor que uma boa facada! Pelo menos é isso que nos querem tentar vender.  

Em cada prelúdio, a saga “Scream” nos brinda com um aperitivo daquilo que veremos posteriormente (um “teaser”, em recorrente linguagem mercantil), seja o engodo do filme inaugural de 1996 (com Drew Barrymore a ser esquartejada pelo misterioso assassino), seja na última sequela – “Scream 4” (a derradeira estância dirigida por Wes Craven e escrita por Kevin Williamson) – a protagonizar e a ironizar o teor meta com “reboot” como palavra em voga.  

Neste quinto “Scream”, integrado na irritante tendência da chamada “requel” (a tal sequela / reboot que traz de volta antigos protagonistas em favor à nostalgia), a entrada nos serve como uma contradição do popularizado termo de “elevated horror” (terror em vestes sociais e psicológicos, vulgo “terror de prestígio"), o qual a vítima (Jenna Ortega), perante o quiz mortal e habitual do assassino, revela predileção por “Babadook” de Jennifer Kent (uma obra australiana que foge dos eixos industriais do género que a saga usa como referência). Este tal “elevated horror” levanta questões quanto à sua própria definição, dando a entender que um cinema articulado por novos nomes do género como Jordan Peele, Robert Eggers ou Ari Aster (mencionando alguns dos mais mediáticos), desagua das convenções do estabelecido cânone por se apresentar uma proposta apelativamente mais complexa que o habitual.  

É presunçosa e redutora essa observação, visto que o horror ostentou, à sua maneira, com astúcia e por vezes em conotações políticas (“o único cinema político é o cinema de terror”, confessou-me o cineasta colombiano Camilo Restrepo na edição de 2021 do Indielisboa), tudo embrulhado em subcontextos disfarçados com o lado escapista de algumas destas obras. Colocar um acento no “elevated horror” é esquecer que um dia existiu “The Exorcist”, “Rosemary 's Baby” ou mesmo um “A Nightmare on Elm Street” como “antecessores” deste herdado “Scream”. 

A menção do último filme não foi em vão, Wes Craven prestou-se a ensaios sociopolíticos vincados no seu artesanato de sustos, e para tal basta repescar o crescendo “The People Under Stairs” (1991), filme que consolida um passado racial tenebroso dos EUA e o exorciza com um presente reprimido que apenas atenua temporariamente os seus antagonistas. Esse mesmo filme tem conseguido nos últimos tempos “abocanhado” lentes atuais para se assumir como um cenário de uma América oculta e, secretamente, perversa. Ou até a saga “Scream” tem servido como um exercício de auto-reflexão e meta-referencial aos elementos que se vulgarizaram no subgénero slasher (tendo conhecimento que o realizador havia tentado tal abordagem, dois anos antes, com “New Nightmare”, que ao contrário de “Scream” resultou num fracasso de bilheteira), sendo que essa mesma introspecção ressuscitou o estilo para as novas gerações e auxiliando uma nova vida ao terror geral. Possivelmente, e reforço no “possivelmente”, não existiria “Get Out”, nem “Hereditary” ou “The Witch”, se o “Scream” não tivesse revitalizado a força do terror na indústria (é tudo uma questão de mercado), o que torna disparatado a utilização de um novo filme como antídoto da sublinhada "intelectualização" do terror (uma terminologia elitista e quase higienizada ao universo em si)

A dupla Matt Bettinelli-Olpin e Tyler Gillett (“Ready or Not”) mimetizaram uma tese de igual forma que replicaram uma fórmula anteriormente conduzida a quatro mãos (Craven e Williamson) e presunçosamente caíram num registo em contraditório para com os seus originais criadores. Wes Craven não foi um mero estafeta do slasher para “inglês ver”, assumiu-se mais que isso. Já “Scream” … peço desculpa “Scream 5” … apropria-se de um universo para reproduzir a velha sinfonia, só que a reflexão meta já havia sido citada e recitada nos últimos tempos, o que restou foi seguir o modelo que tanto satirizaram – a reciclagem da sequela-legado, ou simplesmente, neste caso bem “inserido”, “fan fiction”.

A cortina desce e a homenagem declarada ao velho mestre do terror é feita. Desconfio que este filme seja associado a um possível projetado por Craven, o uso das suas velhas personagens como alavanca para “novas frentes para as audiências futuras”. Contudo, o mais condizente tributo exposto aqui, sorrateiramente estabelecido na narrativa, é a devolução da “casa” enquanto símbolo de invoque ou impulsor de um clímax (“Last House on the Left”, “A Nightmare on Elm Street” e “The People Under Stairs”). Esgalhado, mas será que foi um gesto consciente?