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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Contenho Multidões ...

Hugo Gomes, 19.06.25

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Do I contradict myself?

Very well then I contradict myself,

(I am large, I contain multitudes.)

Walt Whitman

 

Através das estrofes de “Song of Myself, 51”, de Walt Whitman, Stephen King concebeu “The Life of Chuck” como uma redação em língua inglesa, interpretando criativamente esse texto, recorrendo à literalidade, e sobretudo, à espiritualidade subjacente. O “short story” [publicado em 2020] caiu, como tantos outros materiais de King, na fome de adaptação da indústria. Mas, como bem sabemos, o escritor é uma figura peculiar quanto aos seus gostos cinematográficos, e, mais ainda, em quem escolhe para se relacionar com o seu trabalho na transcrição para o grande ecrã. 

E é aí que entra Mike Flanagan: realizador saído do terror e cada vez mais ‘mainstream’ graças à dominância do streaming que caiu no goto de King quando consolidou o seu universo (sem fazer mossa na de Kubrick) com Doctor Sleep” (a sequela de “The Shining”), além de ter assinado uma outra adaptação altamente elogiada pelo próprio autor: “Gerald’s Game”. Portanto, dentro desse prisma, Flanagan é o homem perfeito para insuflar vida em Chuck — indivíduo ‘extraordinário’, pinta-se, dançarino efémero com um punhado de sonhos e uma gratidão pela vida. O filme constrói-se na correria da sua revelação, saltando entre géneros mistos: do apocalíptico (um tanto verborreico, mas longe de ser vazio de ideias — o desespero após o desaparecimento do Pornhub, encarnado pelo personagem passageiro de David Dastmalchian, tem tanto de paródico quanto de incisiva reflexão sobre a natureza desta sociedade consumista e imediatista, que se refugia em perversidades e na pornografia escapista), até à história de fantasmas, dramas pessoais e liceais, com uma piscadela de olho ao subgénero musical. 

Tudo parece encaixar-se num puzzle bem organizado e assumidamente encantatório, na ordem de um Spielberg menos inspirado, e é aí que reside o problema. Quer dizer, para o espectador casual, não será: os requisitos da sua vida serão plenamente correspondidos por um exercício ficcional de existencialismo de fácil entendimento, mas para quem procura a novidade, onde quer que ela esteja, Flanagan é aquilo que, nos termos anglo-saxónicos, se chamaria de “flat”: realizador plano, competente, sem uma marca distinta ne  transgressiva no contacto ao próprio material de King. Um tarefeiro, digamos. Daí a permanente sensação de estarmos perante uma obra inserida no universo do autor-escritor, e não uma peça de cinema autónoma. O aroma trazido por essa conjugação de elementos comuns nos revela cognitivamente um filme “stephenkingueano”. Podemos cunhar o termo? “The Life of Chuck” é esse engenho: oleado, movimentado, mas despersonalizado. Nem mesmo frente aos retratos de Frank Darabont (o mais cotado entre os adaptadores de Stephen King, dentro e fora da aura fantástica) se faz posse. 

É um rebuçado com algumas pistas de elenco quase proustiano, a salivar os anos 80 por onde quer que vá, digo, obviamente, Mark Hamill como um Nick Nolte de época, ou Mia Sara como a avó ritmada e maternal, passando pela breve aparição de Heather Langenkamp, que recordo que fora a scream queen de “A Nightmare on Elm Street”. Até nesses reencontros o filme requisita a nossa memória e afeição. Porque, dentro dele, deseja conter “multidões” … como Whitman.