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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Bruno Gagliasso, o surpreendente vilão de "Marighella": "Fiz a escória da História"

Hugo Gomes, 22.05.21

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Apresentado no Festival de Berlim de 2019, o filme “Marighella” revela como realizador o popular ator Wagner Moura, que aborda o ativismo e a morte de Carlos Marighella (vivido por Seu Jorge), um ex-deputado que se virou para a luta armada para libertar o Brasil de uma ditadura militar. Este período da história do país continua rodeado de grande controvérsia, não faltando quem defenda que não se tratou de uma ditadura e Marighella não foi um patriota.

Surpreendentemente, Bruno Gagliasso, mais conhecido como galã das telenovelas, surge como o inspetor Lúcio e o vilão desta história do passado que dialoga com o presente, particularmente o do Brasil presidido por Jair Bolsonaro.

Conversei com o ator sobre a personagem, a ambição de Wagner Moura e o Brasil que tanto ama mas o entristece. Um encontro onde que se falou principalmente sobre política, tal como apela o próprio filme.

Gostaria de começar pela sua inspiração. Mencionou no Festival de Berlim que o seu Lúcio baseou-se em Sérgio Paranhos Fleury, um infame agente da DOPs [Departamento de Ordem Política e Social].

Respondendo bem direto, não é uma referência a uma personagem e sim a um conjunto de personagens daquela época. Basta só ver quem Bolsonaro elogia para entendermos quais são as inspirações para esta personagem numa época tão difícil. É muito difícil que uma personagem tão odiosa, tão má e desumana, esteja tanto em destaque, basta apenas "espreitar" [a capital] Brasília e verificar tantos políticos em cargos públicos que soam como esta personagem. O filme em que participei é atual e não de época. Esta temática continua atual e é algo que ainda poderá voltar a acontecer.

Sim, um filme sobre uma personalidade passada, mas que dialoga com o nosso presente, isto é, com o Brasil atual.

Sem dúvida, é um filme de uma força muito grande, quase uma necessidade. Precisamos mais do que nunca que este filme seja visto e que bom que vai ser visto em Portugal, assim como nos EUA, Berlim, Cuba e, claro, também no Brasil.

Mas o que se passa com a estreia no seu país? O que está a impedi-la?

A pandemia. Aliás, a pandemia não está sequer a ser organizada de forma correta no Brasil. Isto é, quando não se tem um bom "administrador" [Jair Bolsonaro]…

Mas não havia um imbróglio qualquer com a distribuição?

Hoje não. "Marighella" não estreia por causa da pandemia. Era para ser lançado antes, mas houve essas tais questões burocráticas que o impediram de chegar aos cinemas... que sabemos bem quais são. Mas atualmente, é por conta da pandemia. [em setembro de 2019, a estreia em novembro foi cancelada pela produtora alegadamente por não ter conseguido cumprir "todos os trâmites" exigidos pela Agência Nacional de Cinema (Ancine); em janeiro, foi anunciada a nova data, 14 de maio, que também não se concretizou].

Reparei que o filme arranca com quase minuto e meio de produtoras, empresas e outros apoios. Sabendo que o cinema brasileiro está hoje não em modo resistência, mas de sobrevivência perante constantes cortes, boicotes e outros obstáculos, será esta reunião de forças capaz de contrariar... não sei se será a melhor palavra, mas este tipo de censura?

Acho que há várias formas de fazer censura hoje em dia, sem dúvida que essa é uma delas. Mas acredito que o cinema brasileiro é muito forte, bem unido, e este filme mostra isso. Essas forças não ganham [risos] e o tempo e a História são implacáveis. As posições políticas são muito fortes hoje no Brasil e têm consequências, mas somos atores, fazemos Arte e a Arte é fazer política. Quer posição maior do que essa? Tenho amigos que tiveram que sair do país. Logicamente que é muito difícil acontecer o que aconteceu naquele período, mas tudo está posicionado para voltarmos a isso.

Mas não existe um medo por parte dos atores em se posicionarem politicamente?

A minha posição é muito clara e ando com pessoas que têm posições muito claras. Talvez não sinta isso, porque acredito que todos nós devemos tomar uma posição, visto estarmos em cima de um muro, é o que nos resta. Você pode tomar essa posição e ficar em silêncio, mas o silêncio é ficar em cima do muro, o que automaticamente nos posiciona politicamente. Para qualquer que seja o lado. Mas nós somos atores e os atores servem para levantar questões, nem que seja fazer rir. Porque quando fazemos rir, também estamos a fazer política. Como dizia o meu grande amigo [Paulo Gustavo], "Rir é um ato de resistência".

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Wagner Moura dirigindo Bruno Gagliasso em "Marighella" (2020)

Como foi trabalhar com Wagner Moura enquanto realizador?

Virei-me para ele uma vez numa conferência de imprensa e disse-lhe "conseguiu ser melhor realizador do que ator” [risos]. E é verdade, a prova está aqui. Você viu o filme. Ele é um realizador sensível, que apesar de ser forte exibe uma grande delicadeza. Ele escuta-nos [aos atores] e nós escutamo-lo porque percebemos o que ele está a dizer. Tenho a certeza que quem vir o filme vai encontrar um grande realizador. Wagner Moura não é só um grande ator.

E na preparação, deu espaço para improvisações?

Antes da rodagem, tivemos uma preparação de dois meses e vivi em São Paulo por uns três meses e meio. Foi um processo bem intenso e profundo, muito por conta destas personagens, todos eles fortes e a minha não fugiu à regra. Fiz a escória da História. Acho que a minha personagem tem tudo o que é de mais odioso. E foi com a chegada da minha filha.. tenho uma frase no filme, “se eu mato preto, mato vermelho”, que teve muito impacto em mim. De certa forma, orientou-me para a sua construção. Tinha de procurar em mim, emprestamos nem que seja à personagem mais distante possível. Os atores precisam de emprestar algo. E, para mim, tirar isso foi muito difícil.

Apesar de também ser político, outro tema que o filme nos traz é o racismo, que ainda hoje persiste.

Por isso é que este filme é bem atual. E quando digo que é atual, não é só por causa deste momento político em que vivemos. É por conta de tudo, historicamente falando. E tem muita ação, ficamos agarrados. E ainda por cima é um filme longo [risos].

Mas uma das controvérsias do filme no Brasil foi a escolha de Seu Jorge como Marighella.

Sim. Por causa do tom da sua pele. Isso é uma ficção, não é uma realidade e o próprio Marighella declarava-se negro. Essa discussão é tão mesquinha em comparação à grandiosidade do filme.

A certa altura, Marighella quebra a quarta parede e vira-se para nós [espectadores], salientado que vai recorrer ao “terrorismo”. Ou seja, temos um homem com causas dignas a entrar por vias de causas indignas.

O Wagner retratou muito bem isso. Querem o Marighella? Ei-lo, se pediram vão ter. Não há endeusamentos, o filme mostra o que ele realmente é... e o espectador que tire as suas próprias conclusões.

O Brasil precisa hoje de um Marighella?

[Hesita] Sim. É óbvio, até porque ele foi patriota. Marighella amava o Brasil e o que sentimos mais falta hoje é de pessoas que amem o Brasil. Uma prova disso é o nosso Governo, que chama a quem está a proteger a própria vida [durante a pandemia] de “idiota”. Ele [Bolsonaro] acabou de dizer isso.

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Bruno Gagliasso e Seu Jorge na rodagem de "Marighella" (2020)

O que está a dizer é que faltam no Brasil pessoas que defendam o país?

Sim, fazem falta pessoas que não tenham medo de lutar pelo país. Quer dizer, nós temos, só que quem está a tomar conta do país parece não se importar com os brasileiros. Isso é triste. Toda a gente está a ver as reuniões da CPI [a Comissão Parlamentar de Inquérito à gestão da COVID-19]. Eles estão a fugir das perguntas porque sabem que vão ser presos se responderem. Onde está o dinheiro das vacinas? Foi gasto noutras coisas, como em medicamentos cientificamente ineficazes para o combate da COVID-19. Recusaram sete vezes a vacina… sete vezes! Não sou eu que estou apenas a falar, está à vista de todos...

Você é célebre em Portugal graças à sua participação em várias telenovelas, mas reparo que tem apostado cada vez mais no cinema. Em “Marighella” ou “Todas as Canções de Amor” e “Loop”. Hoje em dia, o cinema está atualmente mais capacitado para falar sobre o Brasil atual que a televisão?

Acredito que o cinema sempre falou. A telenovela teve um papel muito importante, tendo em conta a dimensão que tinha. Hoje, está mais dispersa, mas continua a ter relevância no Brasil. Admito que atualmente tem menos, mas continua. A Arte, mesmo nos momentos difíceis, tem tendência a sobressair. Podem tentar apagá-la, mas Arte é História e com a História não há nada a fazer.

Uma força de nome Marighella

Hugo Gomes, 20.05.21

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É terrorismo sim” avança Carlos Marighella para a objetiva do espectador, encaminhando o seu olhar diretamente para o nosso - uma quarta parede é quebrada - a partir daqui não existe mais dúvidas, “Marighella” [o filme] quer realmente dialogar connosco. 

A obra de estreia do ator (que para muitos é já uma estrela do cinema brasileiro), Wagner Moura, na cadeira de realizador, é um manifesto, uma provocação, um gesto “sangue-na-guelra” onde tudo impresso e exposto não é meramente decorativo. Trazendo à luz da ficção o ativista e militante comunista Carlos Marighella (1911 – 1969), que optou pela luta armada contra o regime imposto pelo Golpe Militar de 1964, o filme tem menos de reconstituição de época e mais de exorcismo ao nosso presente, aliás, ao Brasil atual, embarcado em sombras, entidades e fantasmas que se julgavam desvanecidos pelo tempo. Figura controversa, desde o seu ativo até às lições de história envolto da sua aura, Marighella é um herói para muitos, um criminoso para outros, e como o filme frisa, para que não seja acusada de embelezamento, um terrorista, os meios indignos na prestação de um fim digno.

Se bem que Moura incita a discussão, o debate e a indignação com alvo nas alas mais conservadores com este thriller politizado e por vezes tendencioso no próprio retrato (o dito vilão, mesmo encarnado com afinco e delírio por Bruno Gagliasso, é um sádico imundo que não acredita na ideologia que defende), é na sua concretização que deparamos com um realizador feito. Algures entre o cinema guerrilha que o próprio autor inspirou na sua experiência durante a rodagem do famoso díptico “Tropa de Elite”, de câmara à mão e com gosto pelo deambulação em forma de travelling (como a sequência inicial do assalto ao comboio, onde, talvez por imaginação nossa, alguém solta a palavra “Bolsonaro” como cuspidela). É um trabalho cheio, dedicado e costurado de maneira a conseguir, mais que tudo, humanizar um ícone (para o bem ou para o mal), adquirindo novo fôlego pela voz aveludada do cantautor Seu Jorge

Contudo, e sabendo que o Cinema é por vezes ideias, e um filme funciona como emissão dessas, “Marighella” sofre de um mal que muitos dos seus congéneres brasileiros evitam ceder (“Bacurau”, por exemplo, contornou por vias da sua distopia), o apelo à militância, a uma força revolucionária contra um regime que se prolonga neste século e que hoje está à vista de todos. É ideologia contra ideologia, um drama ao serviço do seu propagandismo. E bem que sabemos, perante esta radicalização que nos atinge, é que “Marighella” não irá conquistar novos apoiantes, mas é, sem dúvida alguma, das produções mais corajosas e ambiciosas que o Brasil já produziu no período pós-impeachment. Sim, corajoso, julgo que é esse o adjetivo mais que acertado para este caso.

Um "McCastro", se faz favor!

Hugo Gomes, 11.07.20

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O exímio piloto cubano, Juan Pablo Roque (aqui interpretado pelo brasileiro Wagner Moura), “deserta” da sua pátria (Cuba) através de um arriscado e elaborado plano que consiste em nadar do território cubano até à baía de Guantánamo (território norte-americano) para ser automaticamente detido pelas autoridades na sua chegada. Já no interior da prisão, Roque desvenda as suas intenções e os motivos que o levaram a exilar do regime de Fidel Castro. Nesse momento um dos guardas leva-lhe comida, McDonalds como se pode verificar nas embalagens típicas. Retirando cuidadosamente o hambúrguer da sua caixa de cartão, e após uma primeira e saboreada dentada, Roque dirige-se, com um sorriso de satisfação nos lábios, aos militares que o interrogam: “Anos a fio a comer ‘McCastro’, McDonalds parece-nos uma iguaria.”

Possivelmente é com essa mesma sensação, não prolongada durante anos, mas por alguns meses, que retidos no nosso confinamento e à mercê das propostas televisivas e de streaming, assistir a um “Wasp Network”, produção despersonalizada de Olivier Assayas, numa sala de cinema nos soa a tão raro pitéu. Mas não nos deixamos ser enganados pelo nosso “amarcord” em relação aos cinemas, o que vemos nesta grande tela é uma mistela histórica embrulhado num tecido adaptável a qualquer ecrã. Assim, artificiosamente parece ter sido construído, não por ser uma fruta da indústria virtualizada da Netflix, mas por esta nova “major” encontrar nele qualidades para apostar na sua distribuição e automaticamente retalho para o seu catálogo.

Pois bem, esquecendo por momentos todo este prato alternativo da nossa dieta cinematográfica, Olivier Assayas perde-se por amores pela história real da Rede Vespa, uma operação de espionagem levada a cabo pela Cuba de Fidel para travar os ataques terroristas no seu território promovidos pelos EUA. O enredo, esse, ostenta potencialidade nem que seja em formatos documentais ou seriados, ao invés disso temos uma metragem de duas horas e uns trocos. A única solução narrativa a administrar aqui é a mera esquematização de factos, caras e eventos, contada e despachada sem enfoque nem luzes de manifestação cinematográfica. E é triste Assayas condensar em tão enlatado produto, principalmente visto que o conhecemos em andanças mais capazes como “Clouds of Sils Maria” e “Summer Hours”, visto ter reunido novamente com o ator venezuelano Edgar Ramirez, basta verificar a sua capacidade de historieta num filme como “Carlos” (o filme e a minissérie).

Talvez o problema para o realizador seja a sua própria falta de ambição. Um amontoado de material que se encavalita um nos outros, ao invés de colidir numa só lente, numa só vivência e num só percurso, como Assayas tem feito até então. Além do mais, “Wasp Network” é tão frouxo (já pouco me restam palavras para a falta de personalidade) que nem sabe que partido tomar nesta intensa espionagem e contra-espionagem (a imparcialidade é um gesto inexistente e despersonalizado). Um autêntico “McCastro”!

Para onde irão confluir "criaturas" sentimentais?

Hugo Gomes, 19.09.15

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Constituído por três atos, “Praia do Futuro” centra-se como um conto de libertação para dar lugar a uma reconciliação afetiva. Dirigido por Karim Aïnouz - conhecido pela comunidade cinéfila como o autor de “Madame Satã”, onde a transversalidade sexual serve de pano de fundo a atípico filme de favela - esta é uma obra intimista e extensa nessa intimidade com os protagonistas, mesmo que a câmara tende em reter essa cumplicidade com as respectivas personagens. Mantido de longe, e de uma configuração fria, “Praia do Futuro”, ao contrário do que o título poderia suscitar, é um claro retrato acinzentado, detido por uma melancolia crónica, onde nem as praias de Fortaleza conseguem diferenciar de uma Alemanha subjugada a um gélido clima. Até porque o que muda nessas transições de enumerados capítulos, não são os cenários, e sim os sentimentos como as constantes nuances das suas personagens, com principal atenção ao de Donato (Wagner Moura, sim, o do “Tropa de Elite”), um nadador-salvador brasileiro que indicia um encontro com o seu ser mais profundo.

O primeiro capítulo, intitulado de “O Abraço do Afogado”, envolve-se com uma aproximação de duas figuras desconcertadas, uma delas reivindicada pela tragédia, e a outra pela manifestação pessoal e a consequência dessa. Donato encontra assim a sua "alma" repartida no seio dessa sua fatalidade vivida, quer individual ou profissional. Até aqui, “Praia do Futuro” incendiava como um romance dignamente regido aos lugares-comuns do denominado cinema "queer", mas essa incógnita é evidenciada na transição de tons que se dá pelo avanço de um segundo ato. “Um Herói Partido ao Meio”, como é assim chamado, prevalece como um singelo "coming to age", uma moldagem comportamental do nosso protagonista que se transforma a olhos vistos. Contra os seus próprios sentimentos, a saudade diversas vezes salientada é citada de forma subliminar, Wagner Moura tem o mérito de camuflar a sua figura, utilizando os seus tons camaleónicos para comunicar com a direção sugerida pela fita. O ritmo desvanece no seu todo na medula melancólica, fortemente "apimentada" no primeiro ato, agora entregue a este ato intermediário.

Esta "ponte" dará acesso ao derradeiro ato, “Um Fantasma que Fala Alemão”, onde dá-se o esperado choque temporal, contudo, a obsessão pelo protagonista durante esta jornada narrativa faz dissipar qualquer clímax assim sugerido, e a fraca apelação por personagens secundárias, que poderiam corresponder ao quotidiano de Donato, contribuem para essa amenização. Mas é neste capítulo, que Aïnouz também se liberta, e sob um jeito visual e estilístico. Não com isto dizer que o realizador vira um autêntico V.J., ou experimentalista nesse foro, mas sim demonstrando um gosto apurado no trabalho visual, compondo longos planos, isentos de diálogos, mas recheados de sentimentos puros e múltiplos.

Por entre simbolismos, como a desejada "praia sem mar", que interage com uma elipse que vai desaguar numa comovente declaração de emancipação: "Existem dois tipos de medo e dois tipos de coragem. O meu, fingir que nada é perigoso. O teu, fingir que tudo é perigoso". Pois é, Karim Aïnouz incute um ensaio sobre o quão minado é esse campo das emoções, as consequências que "explodem" e deixam seres repartidos, longe do seu mar. Intrinsecamente poético.