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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Cláudia Varejão e como aprendemos a amar a montagem

Hugo Gomes, 26.05.20

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Amor Fati (2020)

Cláudia Varejão havia prometido sereias, e à sua maneira entregou-nos através de um retrato antropológico das Ama-sans, uma comunidade milenar de mulheres pescadoras no Japão, hoje em vias de desaparecer pelo desuso da sua atividade.

Passados 4 anos, a realizadora regressa num projeto mais ambicioso que a mera documentação; uma busca pela cerne do afeto derradeiro conduzido sob o signo de Amor Fati (significa ‘amor ao destino‘). Numa pesquisa de dois anos, na sua terceira longa-metragem, a cineasta procurou histórias, casos, gestos e olhares que possam ser induzidos num retrato sobre a existência, amamos aquilo que iremos certo dia perder, assim como os que estão para ‘nascer’.

Em conversa, Varejão referiu e apontou a natureza do seu projeto e colocou em destaque ‘Amor Fati’ como o início dos tempos que aí seguem. Uma realidade pós-COVID19 e o futuro incerto do cinema português independente.

Segunda as suas notas de intenção, procurou por mais de dois anos, “histórias de amores inabaláveis que expressassem amor à primeira vista”. A minha questão prende-se a um filme concebido e idealizado por via da montagem. Como chegou até lá? E já agora, o que procurava ao certo nesta panóplia de histórias? Quais os requisitos?

O início das ideias são lugares incertos. Não posso definir, com rigor, quando terá começado a pesquisa para este filme, pois na verdade penso nele desde criança. Ou melhor, observo os encontros entre as pessoas com muita curiosidade desde que me conheço. E nessa atenção lembro-me de pensar, ainda pequena, que as pessoas que viviam em casal pareciam ter rostos e gestos semelhantes.

Foi deste pensamento que, em nada, é original, pois muitos de nós reparamos nesta particularidade, que nasceu a proposta para o filme. Mas esse foi só um pretexto. Porque o filme anda à volta de um tema mais vasto e misterioso, que é o Amor. Diria que, nesse sentido, o filme gera-se a partir de uma curiosidade. Não de uma questão. Porque eu não fui à procura de respostas. Procurei, sim, percorrer um caminho durante um espaço de tempo que seria povoado por encontros, curiosos, sim, mas sobretudo humanos e amorosos.

E queria também tecer um retrato do nosso país a partir destes encontros. Quem somos nós no momento presente? Quais as inúmeras expressões de amor que podemos encontrar à nossa volta? É um filme sobre a absoluta diversidade humana, que é na sua génese tão livre e afetiva. Depois o caminho fez-se caminhando, tanto na rodagem como na montagem. Um passo levou a outro e por aí fora. Viveu muito da imprevisibilidade do real. E creio que no filme se sente isso.

Novamente na montagem, é mais curioso encontrar uma dicotomia saliente entre vida e morte. No caso da última, senti que com o amor/afeto não termina com a morte da “outra metade”, apenas a transforma em dor.

É bonito referir que essa dicotomia, ou esse encontro das metades, não desaparece com a morte. É certo também para mim. Mas eu não creio que se dê apenas lugar à dor quando uma das partes desaparece. A ausência reforça, aos meus olhos, a presença. Ou seja, quando no filme assistimos a uma morte de um dos elementos desse laço uno, sentimos, mais do que nunca, de que era ali que ele pertencia, àquela outra metade. E sentimos dor, sim, pela saudade e pelo lugar vazio. Como se no vazio momentâneo, a metade sobrevivente perdesse o sentido ou a própria motivação de estar vivo. Mas por outro lado, numa ideia mais abrangente do filme, podemos entender esta perda como uma peça fulcral para entender a própria narrativa que o filme tece – ou se quisermos, o sentido (ou falta dele) das nossas vidas.

A morte desta personagem aconteceu quando eu já estava na reta final da rodagem. Foi um momento muito triste porque eu crio, na intimidade dos meus filmes, fortes laços afetivos com as pessoas que filmo. E no momento em que recebi a notícia da morte, não tendo muito tempo para racionalizar, num impulso optei por incorporar este acontecimento no filme. Podia não o ter feito. Mas em diálogo com a família senti que havia espaço para esse passo e que, juntos, seríamos capazes de o fazer, com respeito e enaltecendo o amor entre aquelas duas pessoas. Foi um momento muito importante na rodagem do filme, onde me questionei, inevitavelmente, sobre a natureza do meu cinema e os meus próprios desejos e limites enquanto realizadora. Este é o filme que mais me ensinou, sobre o ofício e sobre a vida.

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Cláudia Varejão

Acerca da estreia exclusivamente online da obra, tendo em conta estes tempos de pandemia, que benefícios/prejuízos trará, não só a performance do filme, como ao futuro dos festivais de cinema num mundo pós-COVID 19?

É arriscado assumir um discurso firme neste momento em que todos recebemos novos dados a cada instante sobre as medidas que afetam o sector do cinema. O que posso dizer, no instante presente, e que vale o que vale, é que senti que era meu dever enquanto realizadora e profissional do cinema não cancelar a estreia anunciada no Visions du Réel, por respeito e por solidariedade com o festival, mas também com todo um sector que se vê parado e sem perspetiva de retorno. Desejo que esta estreia desperte alguma esperança de que nós podemos encaixar noutros moldes de trabalho (em nada ideais, mas necessários no momento) e que nos estimule a pensar (e repensar) sobre o nosso frágil trabalho e dependência direta com as dinâmicas sociais. O streaming há muito que foi entrando no mercado de distribuição e, no meu ponto de vista, temos de o regularizar de forma a não tornar-se um inimigo mas antes um aliado. Parece-me, por isso, que esta seja uma boa oportunidade para estudarmos o assunto.

Agora, para mim, é insubstituível a experiência de ver um filme em sala assim como partilhá-lo com outras pessoas num espaço físico criado para essa sagração. É para essa meta que trabalho, passo a passo, em todas as decisões que tomo ao longo do longo processo de realização de um filme. E vou lutar sempre pela primazia do cinema em sala. Até porque as salas de cinema, mais do que nunca, precisam de nós todos, sem exceção. Temos o dever de as proteger das consequências devastadoras que já estão a sofrer, criando, desde logo, políticas que as ajudem a voltar ao seu quotidiano (que já era pautado por um tão grande esforço de sobrevivência).

O Ministério da Cultura (não só o da tutela atual como de todos os governos passados) é de uma negligência assustadora nesse sentido. Permitiram o fecho gradual das salas de cinema, tantas delas com um valor patrimonial e cultural inegável, e foram cúmplices da desvalorização do cinema em sala. E a sociedade civil é igualmente responsável. Quando, passo a passo, voltarmos a caminhar lá fora, temos obrigação de dar prioridade às salas de cinema, pois o seu funcionamento alimenta todo o ciclo do sector do cinema. O cinema é uma arte relacional em todas as frentes. Não podemos pensar em voltar a filmar, sem pensar em como os filmes vão depois ser vistos. O momento presente tem de despertar em cada um de nós, seja no cinema ou em qualquer outro assunto da nossa vida, um pensamento macro. Parece-me que ficou bastante claro como dependemos uns dos outros.

Novamente frisando os próximos tempos, a produção portuguesa e a sua “indústria” conseguirão adaptar-se a essas novas “normalidades”?

A normalidade não existe. É um conceito frágil que se sustenta numa série de ideias pré-definidas. E quando se tira o tapete, diz-se, fica-se sem chão. É preciso construir novas referências. E nisso o ser humano é brilhante, sabe adaptar-se às mais adversas situações. Nós não temos indústria, ou seja, não temos uma máquina cinematográfica que gera dinheiro. Mas, à nossa escala, temos, sim, um pequeno sistema de funcionamento, com as suas lógicas internas e que dá trabalho a milhares de pessoas.

Vamos precisar de muito esforço e de muita paciência de todos os envolvidos, desde o sector da realização até à distribuição dos filmes, para voltar a olear a máquina. Mas é sobretudo onde e como são mostrados os filmes que queremos fazer, seja nas salas de cinema como nos próprios festivais, que devemos centrar a nossa atenção e reforçar o trabalho. E devemos exigir envolvimento e investimento da parte da tutela.

Podemos contar com estreia em sala de "Amor Fati" no nosso país?

Estamos a trabalhar para isso, com grande entusiasmo, e seguramente acontecerá assim que se reúnam as condições necessárias para o público regressar às salas de cinema. Mas estamos a fazê-lo numa dependência inevitável com as medidas que vão sendo tomadas no país. A seu tempo chegaremos às salas, sim, é essa a nossa meta.

Petra Costa: na vertigem do trauma e da sensibilidade do Brasil

Hugo Gomes, 01.05.20

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Vertiginoso é o caminho que Petra Costa percorreu até chegar a esta sua retrospectiva no Visions Du Réel.

A cineasta brasileira tem caminhado de braço dado com a sua própria intimidade, até mesmo na proximidade com a esfera política, a qual resultou no seu filme mais bem-sucedido – “A Democracia em Vertigem” – conquistado uma histórica nomeação nos Oscars de 2020. Mas longe do estetizado retrato da fragmentação da ética política brasileira, Petra Costa sempre fora uma ativista no seu jeito autoral, entregando como grande arma massiva a sua sensibilidade.

Sabendo que os tempos do COVID-19 impediram que o festival suíço se realizasse sob os moldes tradicionais, decorrendo exclusivamente online, o meu reencontro da cineasta foi dividido por um ecrã, e partilhado por temas fortes e quentes, muitos deles impostos por esta “nova normalidade”. O cinema brasileiro, o estado do Mundo, o íntimo e o trauma como os mais cumpliciados inimigos, foram os tópicos trazidos nesta conversa “distante”.

Gostaria de começar com o próprio convite da Visions du Réel, do atelier que irá coordenar e claro, a retrospectiva integral da sua obra. Como se sente? O que espera atingir com este projecto?

Fiquei muito honrada com o convite, acompanho desde há muito este festival. Visions du Réel trouxe sempre consigo uma visão bastante interessante e inovadora do universo do documentário, assim como o ramo mais híbrido da ficção. A minha ideia para o atelier é falar sobre a minha trajetória, a minha busca nos meus filmes ao longo dos anos.

Tendo em conta estes novos tempos, o que tem a dizer sobre as mudanças trazidas com o COVID-19? Os festivais? A cultura? A política? O mundo?

Antes de tudo, é uma pena não estar presente, porque seria marcante o facto de todos os meus filmes serem exibidos em retrospectivas e poder falar sobre cada um deles. Tal vai acontecer, mas infelizmente não será presencial.

Quanto à pandemia, penso que ela trará uma reflexão importante para a Humanidade, visto que viemos de um ritmo insustentável há muitos anos. Não conseguindo perceber os recados ou pregados desse ritmo predatório da Humanidade, e muito pelo contrário, a ascensão de regimes fascistas tem acelerado ainda mais o capitalismo selvagem. Penso que o vírus acaba por deixar cair a máscara do fascismo, e mostra o quanto era um impulso de morte, uma forma de desconsiderar a vida humana, como fica claro com o governo do Bolsonaro aqui no Brasil. Espero que acorde mais consciências sobre o Estado, do bem-estar, da saúde pública, um governo mais ligado às questões sociais.

Artisticamente, para todo o Mundo, mesmo com desafios imensos (toda a questão de desigualdade social que tanto aflora, as mortes – é muito duro lidar com isso), quem puder, ou simplesmente privilégio, ter este tempo como uma interiorização ou meditação e reflexão. Acho que é muito positivo, visto que ficamos muito virados para fora. Então, o vírus está a obrigar todo o mundo a parar e a refletir.

Sabendo que numa fase pré-pandemia o cinema brasileiro … como diria … encontrava-se de “mãos atadas” pelos constantes cortes e mudanças radicais no seu sistema de financiamento, produção e distribuição. Acha que o cinema brasileiro sobreviverá com este abalo, sabendo que depois disto, com alguma previsibilidade, surgirá uma recessão económica? Será o golpe misericordioso?

Democracia em Vertigem (Petra Costa, 2019)

Todos andam muito receosos, porque mesmo antes disto, já vínhamos de uma escalada de destruição do cinema nacional. São centenas de filmes que estão esperando o dinheiro que está bloqueado na ANCINE e muitos atos de censura no audiovisual brasileira. Está uma verdadeira destruição, e isto só vem agravar ainda mais esse cenário. Sim, preocupo-me com isso, e não tenho uma boa perspetiva. Mundialmente, a crise financeira vai ser calamitosa, e tenho receio do que isto nos vai levar. Ou uma ascensão ainda maior do fascismo ou não. Espero que uma onda de solidariedade seja motivado por essa pandemia, talvez o surgimento de governos mais presentes no bem social, mas por enquanto é difícil de prever o que vai acontecer.

Para terminar o assunto do COVID-19, gostaria que me falasse do projeto “Dystopia”.

É um projeto que surgiu desse desejo de retratar um momento histórico que nós estamos vivendo, e tendo essa quarentena ampliada, o que temos pedido às pessoas é registar as suas experiências na pandemia, quer no Brasil, quer no resto do Mundo. O nosso desejo é criar um mosaico de emoções dessa pandemia, ou pandemónio como quiserem chamar. Em que as desigualdades e as contradições da nossa sociedade fiquem escancaradas. Além disso, temos algum material filmado por nós mesmos, que tem sido bem fortes.

A Petra Costa vai realizar ou somente estará presente como produtora?

Ainda não sei. O projeto está em construção. Estamos produzindo e nem sequer sabemos como será o produto final.

Se pegarmos na sua obra, existe uma definição geral do seu cinema – intimidade. Desde a curta Olhos de Ressaca, passado pela belíssima confissão em “Elena” e até mesmo “A Democracia em Vertigem”, onde os avanços /recuos da política brasileira seguem em conformidade com a sua própria experiência, lidamos com essa mais íntima pessoalidade.

Muito antes de começar a fazer cinema, fiz um ensaio de uma peça, pelo qual sou encantada, que é o Hamlet, que joga na intimidade de Hamlet, da Ofélia, da Gertrudes. De muito estudar essa peça, adquire o desejo de fazer investigações que chegassem a esse nível de intimidade. Era justamente essa palavra: chegar nessa intimidade. E também, vem da minha experiência no teatro, um grupo chamado Teatro da Vertigem, inspirado na vanguarda norte-americana, que nessas minhas pesquisas teatrais o que tinha mais interesse era exatamente aquilo pelo qual tinha mais vergonha – da minha própria experiência. E quando conseguia acessar a isso, descobria material que era valioso em ser partilhado.

Também aproxima-se de outro conceito que tenho mergulhado muito que é o trauma. E o trauma, talvez seja as nossas experiências mais íntimas. As experiências, além das amorosas, são traumáticas. E o trauma é como um buraco negro que é contado através de uma cicatriz psicológica, onde se apaga todo o significado, a nossa capacidade de criar uma significância, e aí vem a tendência de repetir os atos traumáticos porque nunca tivemos a capacidade de elaborá-los. Os filmes, por um lado, também são tentativas de elaborar traumas; o suicídio de Elena [irmã de Petra Costa] e a sensação de estar a repetir os passos dela (que é próprio do trauma), e no “Olmo e a Gaivota” é o desafio de morrer para dar a vida ao outro (um trauma muito pouco explorado, as pessoas tentam desmistificar e apagar tudo o que é escuro do processo de gravidez, duma forma bem machista) e no "Democracia em Vertigem" é evidentemente o trauma político, o de ter a democracia como um dos poucos alicerces certos do qual me poderia posar na sociedade brasileira, ser rapidamente destruídos.

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Hector Babenco em "Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou" (Bárbara Paz, 2019)

No Visions du Réel, nem todos os filmes que englobam a sua retrospectiva são da sua autoria, uma delas é “Babenco: Alguém Tem que Ouvir o Coração e Dizer Parou”, de Bárbara Paz, que conta com a sua produção. Queria que me falasse sobre esse projeto de um dos “heróis esquecidos” do cinema brasileiro.

Sou amiga de longa data da Bárbara Paz e ela conversou comigo desde o começo sobre o seu desejo de fazer este filme. Ela era companheira do Babenco. Eu tinha uma grande admiração pelo seu trabalho assim como a “Elena”, o qual um dos seus grandes sonhos era ser atriz num dos seus filmes, visto que também era um dos poucos realizadores a trabalhar no Brasil nos anos 80. Ela até escreveu uma carta para ele, na altura que rodava “At Play in the Fields of the Lord”.

A Bárbara desejava elaborar um documentário mais afetivo, lírico e não ter a pressão de cometer uma biografia documental, então sugeri-lhe um filme – “As Praias de Agnès Varda” – e disse-lhe que ela teria que sentir-se livre para fazer aquilo que realmente sentia. No fundo, foi isso que o filme é, uma carta de amor, e como a poesia do cinema dele trouxe muito daquele cinema à vida. É muito emocionante, chorei juntamente com muitas na plateia durante a estreia do filme no Festival de Veneza, o qual acabou de vencer um prémio lá.

Durante a promoção de “Democracia em Vertigem” nos EUA, referiu inúmeras vezes que tinha material para uma espécie de sequela do filme.

Tinha sim, mas também teria que produzir muito mais, apesar que na política brasileira o argumentista continua excelente, com reviravoltas cada vez piores. Aliás, nós superamos o argumentista de “House of Cards”, que na altura nos disse impressionado que julgava que a sua ficção superasse a realidade, mas ao ver “Democracia Vertigem” apercebeu que a “vossa realidade supera a nossa ficção.”

Voltaria a trabalhar numa continuação dessa jornada na política brasileiro?

Não sei, por vezes sinto uma compulsão de fazer, mas ao mesmo tempo não desejo seguir o que já fiz. Procuro sempre novos desafios. Para dizer a verdade, não sei.

Voltando um pouco à temática da “Dystopia”. No Brasil, é irónica a guerra que existe entre o Presidente e vários governadores, anteriores apoiantes dos seus ideais, quanto ao confinamento e as formas de prevenção e combate da pandemia. Com isto gostaria de perguntar: é que com estes tempos de sobrevivência até mesmo os ideais são colocados em segundo plano?

É um pouco como eu falei, é um dos pontos positivos desta vinda do vírus, a máscara do fascismo vai caindo e também vai-se desintegrando. Mas é uma característica própria do fascismo e do nazismo, estão sempre se traindo a si mesmos. Acho que quando uma pessoa sai da barbárie acaba sempre por ser devorado pela própria barbárie. É como a SS [organização paramilitar ao serviço do partido nazi], que acaba por trair a SA [divisão de assalto do regime nazi] do e vice-versa, uma ala do Hitler começava a assassinar outra, é uma ideologia tão sem escrúpulos que se vai auto-destruindo. Mas acho que é muito positivo que tem tido uma dissidência e governadores que tem tido atitudes muito mais sensatas, aqui no Brasil, que estão a favor da quarentena e contra um Presidente que menospreza tudo isto como uma “gripezinha”, induzindo a Nação a um suicídio coletivo. Ele tem perdido cada vez mais apoios, entre eles.

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Elena (Petra Costa, 2012)

Toquei novamente na questão da política porque gostaria que me dissesse o que sente acerca dos ataques pelo qual a Petra Costa é alvo desde o lançamento de “Democracia em Vertigem”. Não sente raiva?

Não sei se diria raiva, porque grande parte disso são ataques orquestrados, são "robôs". Depois de terem me atacado, seguiram em frente contra a Patrícia Campos Mello, que é a jornalista que revelou o esquema de corrupção e fabricação de fake news que beneficiaram a campanha eleitoral de Bolsonaro. Isto não passa de uma “caça às bruxas”, vindo de um ímpeto machista que muito privilegia os erros do próprio governo, com apenas o intuito de atacar.

Assim que João Dória [governador de São Paulo] começou a posicionar-se a favor da quarentena e contra as indicações do Presidente, surgiu no Twitter, trends como #ForaDoria, #ImpeachmentDoria ou até mesmo #ImpeachmentMaia. São claramente ações orquestradas por robôs. Eles dominam essa tecnologia, por isso é uma tarefa das nossas instituições aprenderem rapidamente como os controlar, assim como as redes sociais como o Twitter e Facebook, a punir e controlar esses robots. Porque são um quinto poder que ameaça a nossa liberdade de expressão e influencia a nossa democracia. Não possuem qualquer tipo de regularização. Estão a colaborar com a reeleição dele e a destruir a nossa democracia. Ainda estamos muito atrasados em controlar esses exames tóxicos que estão extraviando as nossas redes. É uma tristeza, porque é um ataque a mim hoje, mas amanhã poderá ser a outro. É um ataque a todos.

Em Berlim deste ano, a produtora Sara Silveira (“Todos os Mortos”) fez um discurso emocionante na conferência de imprensa, proclamando o cinema como resistência. Acredita que o cinema brasileiro é a grande resistência da democracia brasileira?

É uma importante fonte de resistência desse avanço autoritário. Tem sido, ao longo das décadas, como nos últimos anos.