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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Guerras declaradas ...

Hugo Gomes, 14.01.24

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Fora a sua temática de que o enredo é refém, “L'Amour et les Forêts” poderá ser recordado como um palco para Virginie Efira desempenhar a dobrar, duas personagens, irmãs gémeas, cuja intenção é nos chegada num modo fútil, digamos, descartável. 

Porém, é voltando à temática, essa, a da violência doméstica, seja física ou psicológica, que no cinema pouco ou nada adquiriu forma sem ser a do corpo de “cinema de género” (deste lado, “The Invisible Man de Leigh Whannell permanece como um dos recentes casos funcionais, ou até mesmo “The Entity”, com Barbara Hershey, remontando o ano 1982). Contudo, nas vestes dramáticas, muitos destas explorações resumem-se a pedagogias ou panfletos de mão armada, por exemplo, Jennifer Lopez em “Enough” (2002) cuja solução foi encontrada na retribuição de força, olho por olho, dente por dente, enquanto que no vínculo psicológico, o “gaslight”, palavra à meia-luz que tão bem conhecemos do homónimo filme de George Cukor (em 1944, mas antes um filme de Thorold Dickinson em 1940), esperneia como matéria para thrillers da ordem criminosa e vice-versa.

Aqui, Valérie Donzelli, atriz e realizadora, que deu nas vistas com outro território “maldito” do cinema, o cancro (ou doença terminal várias), com “La guerre est déclarée” (2011), deseja sensibilizar como objetivo crucial (a realizadora e argumentista Audrey Diwan alia-se à missão), usando Efira como um prototipo, uma face para um extenso episódio “e se fosse consigo?”, “coadjuvada” por Melvil Poupaud, ultimamente rotulado de “canalha francês” (“Coup de Chance”, “Jeanne du Barry”), e voilá, temos assunto para final de visionamento. Neste sentido, nada contra o debate do tema, e a urgência de o fazer é mais do que qualquer produção, mas paremos que o Cinema respire através de simples filmes-tema, e aproveitemos o mesmo para manobrar em exercícios mais ricos na linguagem cinematográfica (nesse aspecto, o género é terra fértil para “flic-flacs”).

Hercúleo movimento portanto, mas não impossível, já “L'Amour et les Forêts” é só corriqueiro sem o seu escudo. 

Ofender é virtude no Evangelho segundo Verhoeven

Hugo Gomes, 24.11.21

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As histórias de freiras “histéricas”, oferendas diabólicas à Santa Trindade, sempre alimentaram o imaginário da "Idade das trevas" medieval, mais tarde aproveitadas para fomentar um subgénero cinematográfico próprio, muito em voga os anos 70, o "nunsploitation". Mas “Benedetta”, com base num livro de Judith C. Brown, por sua vez inspirado em factos reais, é mais do que a exploração da sensualidade e depravação transmitida pelos hábitos das fiéis: esta é uma produção em permanente posição de ataque aos fundamentos da Igreja.

Se a ofensa é virtude, poderemos considerar que este filme é uma catapulta devastadora, até porque a sua heresia se dilui com uma atitude jocosa pela situação, pelas intrigas, pelas personagens e pela lascividade em símbolos religiosos. Esse efeito 'trash' é um retorno à sua natureza de um velho almirante destas águas, o holandês Paul Verhoeven, o anterior realizador de 'mau gosto' (“Robocop", “Basic Instinct”), agora autor emancipado e celebrado com as graças do Espírito Santo da reavaliação da revista Cahiers du Cinéma.

É nos trajes da Idade Média, no medo constante das chamas infernais e dos prazeres carnais, que o realizador assenta mais uma demanda pela fantasia feminina, uma procissão saída do seu elogiado filme “Elle” e em confronto com a onda de conservadorismo na nossa sociedade (e isso não é só culpa dos círculos religiosos). Contudo, é na marcha contra a Igreja que as trevas de “Benedetta” cercam com uma pecaminosa satisfação, com especial atenção aos estandartes do Cristianismo: mártir e martirologia são destroçados, banhados em humilhação e distorcidos em sacrilégios.

É a profanação representada no corpo de Virginie Efira, que depois disto se torna estrela feita até fora do território francês, e na inocência ambígua da belga Daphne Patakia (“Nimic”), que estão as grandes virtudes deste filme disparatado, provocador, astuto e, sobretudo, respeitoso à velha alma 'verhoeviana' do seu realizador.

Na cama com "Sibila" em batalhas em Solferino. Uma conversa com Justine Triet

Hugo Gomes, 29.06.19

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Virginie Efira em "Sibyl" (2019)

Em 2013, Justine Triet deu nas vistas num enredo de sarilhos parentais num dia crucial das presidenciais francesas. A rua de Solférino tornou-se  num verdadeiro campo de batalha, revelando ao Mundo uma das mais vibrantes captações de multidão no cinema desde as guerras ideológicas de Serge M. Eisenstein. “La bataille de Solférino” proclamou um novo nome da cinematografia francesa.

Mas o que aconteceu em Solférino ficou em Solférino e Triet apostaria em filmes mais contidos e visualmente menos caóticos, pedindo auxílio à atriz Virginie Efira para a conduzir em retalhos da feminilidade no seu esplendor. Com o sucesso de “Victoria” (“Na Cama com Victoria”), realizadora e atriz regressam ao divã com “Sibyl”, filme que relata os dramas existenciais de uma psiquiatra aprisionada pelo passado que parte para a rodagem de um filme (a atriz principal é uma das suas clientes) para se reencontrar com ela própria e completar o seu livro.

Integrado na Competição do Festival de Cannes, falei com Triet num momento em que o filme é visto como estandarte da representação feminina em diversos festivais mundiais, não conseguindo evitar as questões que dominam o corrupio dos press junkets e conferências de imprensa.

Como surgiu a ideia para este filme?

A minha ideia era ter esta personagem cuja profissão consiste em ajudar os outros, mas que não pode ajudar-se a si. Uma espécie de contradição que a levará a uma vida constantemente repartida e caótica.

Devo dizer que existem muitos meios que apressaram-se em apelidar o seu filme de “denúncia à masculinidade tóxica que condiciona a personalidade das mulheres nos mais diferentes estados da sua vida”. Concorda com estas reflexões?

Não vejo o filme dessa forma, nem completo, nem durante o processo de produção. O que vejo é a história de uma mulher que é confrontada pelo passado, e como tenta lidar com estas suas decisões. Aliás, como consegue superar o peso dessa sua história? Neste caso, decide escrever um livro, o que é uma boa forma de reconciliar-se com os seus “demónios”.

A segunda parte de "Sibyl", a Triet passa a ação para a ilha de Stromboli. Para os cinéfilos, o local é incontornável. De alguma forma é uma referência ao clássico de Rossellini? Será a nossa Sibyl uma espécie de Ingrid Bergman?

Não tentei com isto replicar os passos de Rosselini, nem sequer fazer uma referência direta ao clássico. Stromboli tem aqui um papel quase emocional para com a protagonista, a qual acompanhamos numa primeira parte totalmente focada na prisão da sua mente. Ela tenta buscar inspiração para o seu livro, mas é constantemente cercada pelas sombras do seu passado, o que faz com que a ilha se torne numa inspiração, num regresso à realidade, mesmo sendo um ambiente completamente novo para Sibyl. Stromboli é um lugar saturado de uma sensação de ficção e como cenário é absolutamente cinematográfico, irreal para aquela parte do Mundo. Quando a protagonista embate nesse lugar, entra em ação, numa suposta realidade que a deixa confusa com esta dita ficção do real, desta exceção. Por isso, sim, mais do que referenciar, a ilha tem um propósito de psicanálise.

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Justine Triet

Já deve ter percebido que no festival a questão das mulheres no cinema é tema para durar. Visto o seu filme estar presente na Competição, surge uma espécie de “responsabilidade” da sua parte. Como realizadora sente não conseguir atingir os seus maiores objetivos por ser mulher’

No meu caso, sinto-me bastante livre. Sempre pude abordar aquilo que quero e trabalhar com quem quero, mas talvez seja eu, uma privilegiada. Mas nunca me senti presa a nada pelo facto de ser mulher. Contudo, tenho conhecimento de que muito tem que ser feito nesse aspecto, sei que ainda existem diferenças abismais salariais em vários casos, sem falar do acesso à indústria, que sempre foi dificultado consoante o género. Em França, tal cenário não é dos piores, mas ainda existe. Ainda há muito para fazer.

Não só em relação às mulheres, mas também às minorias …

Sobre as questões de cinema feito por mulheres e minorias, só o facto de discutir sobre isso deixa-me infeliz. Eu assinei a petição 50-50 e o que vejo, tendo em conta os números, não é muito confortável. Não consigo dar uma solução para isso, mas faço o que posso, tentando atingir a paridade na minha equipa, porque quando falamos de igualdade não devemos restringir-nos aos cargos de realizador, mas a todo o sistema. Penso que devemos questionar o facto de nas escolas de cinema, principalmente La Fémis, termos este 50-50 e depois o resultado não se vê na indústria. O que realmente se passa? O que aconteceu a estas estudantes? Porque é que não vemos este número de mulheres a chegar à indústria e aos grandes cargos no cinema? Isso devemos, mais que tudo, questionar.

A igualdade não se emprega apenas às mulheres; a indústria francesa ainda tem muito que fazer quanto às minorias. Não temos uma representação justa, dentro ou fora do ecrã. São questões que debatemos constantemente e temos o conhecimento que o percurso ainda é longo.

Mas no seu filme não vemos essa representação.

Sim, tens absolutamente razão, friso, estas questões são importantes e ainda mais temos de lutar por elencos diversificados. O que acontece neste caso é que não houve muita diversidade no casting e nas escolhas dos diretores de castings. Não estou a culpá-los, eu também tenho culpa no cartório, aliás, temos todos culpa de alguma forma. O sistema precisa mudar, é claro.

Por exemplo, eu vi muitos possíveis maridos de Sibyl e até a certa pensei em preencher a lacuna da minoria com este papel. Mas isso é também uma forma de racismo, concentrar as minorias a papéis secundários, como fosse uma espécie de preenchimento de quotas. Não cedi por isso mesmo, eles merecem melhor e a escolha não seria de todo natural.

Os seus dois últimos filmes abordam uma feminilidade longe da farsa vendida pela sociedade. Obviamente, como homem, não sou a melhor a pessoa para fazer estes apontamentos, mas nos seus filmes o sexo nem sempre é bonito e uma noite de copos é da maior parte das vezes caótico. Este desencantamento é uma aproximação do real, do dia-a-dia das mulheres?

Sinto-me livre nesse sentido, o que me garante a possibilidade de representar aquilo que penso. É um ato constante e possivelmente egocêntrico, mas nos meus filmes eu inspiro-me diversas vezes na minha pessoa. Com isto, submeto-me aquilo que gostaria de ver no grande ecrã. Obviamente, como mulher, gostaria – acima de tudo – de ver personagens femininas da forma mais real possível e penso que as espectadoras também o desejam. Quanto às cenas de sexo, tentei replicar o mais credível possível, não só visualmente, mas emocionalmente.

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La bataille de Solférino(2013)

Gostaria de referir “La bataille de Solférino” ("A Batalha de Solferino"), um filme visualmente de grande escala em comparação com estes seus dois últimos trabalhos, mais contidos e intimistas …

Mas Solférino foi feito sem dinheiro algum.

Sim, não estava a referir ao orçamento, mas na sua conceção. Foi um filme mais trabalhoso?

Ah sim … foi. Entendi mal … peço desculpa.

No caso de Solférino, como eu vim do universo do documentário usei essas mesmas habilidades para conduzir o filme. Filmamos quase sem dinheiro e utilizei a multidão que estava nas ruas durante as eleições presidenciais desse dia. Ou seja, através do documentário entrei na ficção. Em certa parte, Solférino foi uma espécie de conflito dessas duas dimensões. Atualmente, os meus filmes são mais ficcionais, o que lhes garante uma maior liberdade na sua criação.

Por exemplo, como fã do Shyamalan, reconheço que “The Visit” tenha sido um filme mais complicado de concretizar que as outras suas produções, tudo porque o realizador trabalhou sem dinheiro e teve que usar a criatividade para superar essas dificuldades. Contudo, não percebo como é que alguém pode afirmar que “sem dinheiro, não se pode fazer filmes“. Essas dificuldades só servem para desafiar-nos enquanto realizadores e procurar alternativas quanto à sua produção.