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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O sonho americano quer-se dorido

Hugo Gomes, 28.11.24

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Is it the end of the world?

É inevitável! Perante um novo western, o florescimento do debate sobre o estado do género, quase como se engavetássemos um género tão bem americano em caixões destinados a diferentes velórios. Ora, se é verdade que a desconstrução soa como destino trágico, é através desse processo que o western ressuscita momentaneamente, apenas para morrer novamente, como um Lazarus pouco ou nada milagroso. No entanto, “os mortos não magoam”, aproveitando a deixa deste título - “The Dead Don’t Hurt” - segunda obra filmada por Viggo Mortensen virado realizador, ou como deseja ser autor, virando-se para o western numa paisagem mais ampla após os espinhosos cercos da sua aproximação paternal (“Falling, 2020).

Aqui, responsável pelo argumento (e da banda sonora!), o ator também é co-protagonista, interpretando um carpinteiro dinamarquês em busca do sonho americano ao lado da também "estrangeira", Vicky Krieps. Casal improvável e mortiço, cita de cor as promessas da Terra das Oportunidades, agarrando-se às suas leituras românticas: “um amor e uma cabana”, parecer ser o jeito de se desenvencilhar no Faroeste americano. Contudo, perante esta América imponente e exigente, a personagem de Mortensen decide responder com gratidão, oferecendo o seu corpo a um Estado ainda em formação: alista-se no Exército da União para combater na Guerra Civil. Decisão que deixará a personagem de Krieps sozinha, à mercê dos espinhos que esse deserto esconde.

Após um início promissor, com enquadramentos virtuosos e uma câmara sólida, embora contida no academismo, “The Dead Don’t Hurt" acaba por não trazer nada de novo ao modelo de western no século XXI. Não é uma desconstrução, mesmo que a personagem de Krieps pareça, a espaços, dar ares de tratado feminino. Mas a declaração se perde pela narrativa intercalada e temporalmente salta-pocinhas, e uma vingança que não é mais do que um “prato de papas de aveia” a servir de “grand final”. O resultado é tão árido quanto os cenários que a história atravessa.

Nesse sentido, “The Old Way” (Brett Donowho, 2023), um semi-direct-to-video protagonizado por Nicolas Cage como um cavaleiro diabólico, conseguiu, de forma mais modesta e menos pretensiosa, honrar o western enquanto género estagnado, desafiando-o num derradeiro duelo ao pôr-do-sol.

Quão cronenbergiano é David Cronenberg em 2022?

Hugo Gomes, 11.11.22

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David Cronenberg prometeu - e se prometeu - regressar ao seu “original modelo”, ao “body horror” que implantou como marca sua [cronenbergiano]. Contudo, com “Crimes of the Future”, uma lição deve ser (re)aplicada, o de nunca voltar ao local onde se foi feliz. 

Dito isto, neste filme que partilha o título com outra obra da sua autoria (em 1970, o possível "protótipo" para esta materialização), e com um trio de apelar aos mais salivantes produtores (Viggo Mortensen, Léa Seydoux e Kristen Stewart, e sem deixar de mencionar o nosso Welket Bungué a demonstrar que Portugal é demasiado pequeno para ele), seguimos num futuro ora alternativo, ora distópico, onde a Humanidade perde a sua conscientização da dor e com isso, adquiriu um gosto pela sua “mutilação”. Se bem que a ausência de uma sensação nos leva à procurar de outros como compensação, aqui, como é sugerido, a cirurgia converteu-se no equivalente sexual destes dias “negros” (o filme obtém pouca apetência para a luz e prefere refugiar-se nos becos e galerias), o tal prazer não saciável, vicioso e por vezes desesperante. 

Crimes of the Future” joga a seu favor, assim como a seu desfavor, a imposição de um universo seu onde nada nos é realmente definido, nem nos é garantido, deixando portas entreabertas para as particularidades daquele mundo à nossa mercê. Porém, essa dita sensação de deambulação por esses territórios, sejam corporais ou psicológicos, a violência apaziguada no quotidiano destas personagens, ou a identificável estética visceral (é difícil não pensar em “eXistenz” ou até mesmo em “Naked Lunch” nestas “andanças”), soa-nos a um convite “traído”, após o incentivo, tais “caminhos” nos são bruscamente interditos. 

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Tudo nos é derivativo, remodelado ou até mesmo influenciado, e o espectador fica-se no meio termo, passeando por um corredor de aberrações e de órgãos descartáveis, humanos que há muito deixaram de o ser, e a evolução prometida como próximo passo. Mas se se trata de um passeio, Cronenberg obriga-nos a percorrê-lo a passo de trote, saindo de seguida pela assinalada porta de fuga. Os devaneios, os desejos freudianos, a mote numa discussão da nossa existência carnal (somos seres do sofrimento, apenas há que abraçar esse propósito), rodopiar-nos ao encontro de um Cronenberg entusiasta. 

Voltando à lição, ninguém retrocede na sua maturidade (sem querer com isto referir o “Crime of the Future” como o filme da maturação de Cronenberg, mas é um Cronenberg maturado sem riscos, nem condição de regressar). Estranho, sabendo que é o próprio que assina a obra, e mesmo assim, ficamos com a sensação de que não fosse esse pormenor acreditaríamos estar perante alguém a tentar ser “cronenbergiano”. Neste momento os “cronenbergianos” são mais “cronenbergianos” que o próprio fundador do “cronenbergiano”.

Capitão Fantástico e a jornada do cowboy de chapéu castanho sujo

Hugo Gomes, 18.09.16

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Automaticamente encontramos em (“Captain Fantastic”) “Capitão Fantástico”, a segunda longa-metragem de Matt Ross, um ensaio comparativo com a pouca ortodoxa obra de Yorgos Lanthimos, “Canino”, o qual se depara com uma distopia induzida, o como distorcer e controlar o nosso quotidiano, o mundo que olhamos e idealizamos regendo a essas ideias implementadas por órgãos superiores. Enquanto que o grego levava essa vertente para uma alegoria da Caverna de Platão, em Capitão Fantástico a situação declara-se inicialmente como um “grito de guerra” aos costumes ocidentalizados.

Viggo Mortensen é esse “fantástico líder“, um homem eremita que se refugia nos densos bosques americanos, dependendo do seu instinto e intelecto para sobreviver (pronto e uma “ajudinha” a nível de segurança social, pormenores, enfim). Em acréscimo, ele é um pai de 6 crias, o qual educa segundo as suas revolucionárias ideologias, promessas feitas para a sua falecida mulher, juras de uma impotente tendência de “mudar o Mundo” da sua própria formatação. Pois bem, até certo caminho, esta “estranheza” nada nova de Capitão Fantástico conquista-nos com a sua crítica social, ingénua é certo, mas constantemente desafiadora da “perfeita comunidade” que se dá pelo nome de EUA.

Neste percurso, previsivelmente anexado a mais uma road trip (como o cinema norte-americano independente adora viagens pela estrada fora), os alvos são muitos, desde a educação escolar (ou a insuficiência desta) até ao entranhar religioso nos nossos dias (a magnífica ideia de Ben substituir o Natal pelo dia de Noam Chomsky), passando pela falta de senso crítico individualista. Até determinado ponto, Capitão Fantástico sabe “puxar” os fios de forma correta, porém, estamos a falar de um obra de vertente indie, daquela classe que adequadamente figuraria num Festival de Sundance (na verdade o filme chegou mesmo a estrear no dito festival norte-americano), ou seja, tudo acaba por recorrer ao território moralista, mais do que o suposto intimismo.

Quando o macguffin do filme revela-se numa família atípica a lutar para dar à falecida mãe e mulher um funeral digno às suas “crenças“, entra em cena uns supostos antagonistas, os sogros de Ben (interpretados por Frank Langella e Ann Dowd), fervorosos religiosos e de frutíferas posses. A partir deste momento, Matt Ross tenta encontrar um “meio termo” entre o modo de vida pouco ortodoxa levado a cabo pelo protagonista e dos costumes “normais” de uma cultura ocidentalizada deste par de personagens. Falha a crítica, a perspetiva, a ousadia de transgredir o pensamento comum e por fim, a queda para o registo coming-to-maturity.

“Capitão Fantástico”, alusão ao energético álbum de Elton John (Captain Fantastic and the Brown Dirt Cowboy), sobrevive graças a uma ideia, a uma sugestão que não é levada avante em derivação do politicamente correto que afronta os nossos dias, sem percebemos que essa atitude de não ferir suscetibilidades converte-se na sua maior ofensa. No final é isto, um filme cobarde apenas erguido com a força do seu protagonista. Pois bem, Viggo Mortensen é verdadeiramente o “fantástico” do título. Graças a Noam Chomsky!