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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Victoria Guerra: "A literatura permite um universo interior que não é possível no cinema"

Hugo Gomes, 01.10.20

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Determinado a atribuir uma morte digna a uma entidade cujo fim foi esquecido, José Saramago concebeu o romance “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (em 1984) para abordar os últimos dias do célebre heterónimo de Fernando Pessoa, adaptado ao cinema por João Botelho e que estreia nas salas esta quinta-feira.

Em terras lusas, Ricardo Reis apercebe-se da morte de Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) que lhe surge, dias depois, como espírito errante. Tal como o seu poeta criador, o protagonista é também ele propício em projetar Ofélias, o tal interesse amoroso inalcançável no universo do poeta.

Esta Ofélia tem o nome de Marcenda, filha de um doutor nacionalista de Coimbra, que chega a Lisboa à procura de uma cura para o seu braço esquerdo paralisado.

Trata-se de uma personagem enigmática, um quanto metafórica, encarnada por Victoria Guerra, que falou-me sobre esta jovem mulher, o filme e a sua pertinência, e ainda os seus novos projetos.

Como chegou a este projeto e como trabalhou a sua Marcenda em relação à transição do livro para o filme?

O convite chegou diretamente através de João Botelho. A literatura permite um universo interior que não é possível no cinema, por isso, a obra foi uma ferramenta fundamental. Para lá da narrativa, o cinema de Botelho é caracterizado por uma composição estética muito própria que ajuda a essa composição e trabalho de personagem. Neste caso, trabalhamos sobretudo a precisão da palavra para a transposição justa do texto de Saramago.

No processo criativo na construção desta Marcenda, recebeu moderação por parte de João Botelho ou o realizador deixou-a em liberdade na criação? Existe uma provocação bem ao jeito de Saramago, esta, a do braço esquerdo de Marcenda estar paralisado e mesmo assim, ser o fascínio de Ricardo Reis, que por sua vez é politicamente indiferente.

É uma liberdade trabalhada em função do tipo de cinema que João Botelho faz, em função da luz, dos enquadramentos e da montagem. Há sempre um especial cuidado sobre a postura e a posição do ator em relação à câmara. No caso da Marcenda, houve uma direção específica em relação ao seu braço paralisado por causa da sua importância narrativa e simbólica.

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Durante a inauguração da exposição do filme na Fundação Saramago, João Botelho mencionou que os anos 1930 descritos no livro estão cada vez mais perto da nossa atualidade. Concorda com este reparo? É pertinente uma adaptação de "O Ano da Morte de Ricardo Reis" nos tempos de hoje?

É cada vez mais pertinente. Concordo com essa proximidade política e social, a subida da extrema-direita no mundo é muito preocupante, mas sinto que é importante realçar uma diferença: o acesso à informação e à literatura é hoje, sobretudo para as gerações mais novas, muito mais simples do que era nos anos 1930. A literatura, tal como a história e, neste caso, específico o cinema, são fundamentais para evitar a repetição de erros já cometidos.

Também está envolvida no novo filme de Edgar Pêra – “The Nothingness Club” – que, à sua maneira, também integra este universo de Fernando Pessoa. E é curioso que interprete Ofélia, que no filme do Botelho é, por si, uma projeção (alternativa) desta figura.

Sim, é verdade e é realmente muito curioso. Sinto-me privilegiada com este cruzamento de universos literários e cinematográficos. Entre Saramago e Fernando Pessoa, entre João Botelho e Edgar Pêra, cada um com a sua linguagem cinematográfica muito própria, o privilégio de poder trabalhar dois autores fundamentais da literatura portuguesa e que, tantas vezes, se dizem ser de difícil adaptação cinematográfica.

E o que pode dizer sobre novos projetos, a série da Netflix “Glória” e o novo filme da realizadora brasileira Laís Bodanzky “Pedro”?

A longa-metragem de Laís Bodanzky foi rodada há mais de um ano e retrata a vida privada de D. Pedro I e o seu regresso a Portugal, nove anos depois de proclamar a independência do Brasil. Em relação a “Glória”, não posso adiantar muito, apenas que é uma história sobre espionagem no final dos anos 1960, em plena Guerra Fria e partilhar o meu orgulho por Portugal estar a produzir finalmente uma série para a Netflix, e a minha felicidade por fazer parte do projeto e por poder trabalhar novamente com a SP Televisão e com o [realizador] Tiago Guedes.

Por entre poetas, escritores, sombras e ilustradores

Hugo Gomes, 30.09.20

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Há uma dita fascinação pessoana por detrás da filmografia de João Botelho, que vai desde a sua segunda longa-metragem (“Conversa Acabada”, 1981), passando pelo “Filme do Desassossego” (2010) e agora na pista do heterónimo na cadência das palavras de José Saramago – “O Ano da Morte de Ricardo Reis”.

Em termos funcionais, o livro, editado em 1984, serviu como exercício para o Nobel da Literatura poder retratar um Portugal a experienciar o seu Estado Novo, o seu nacionalismo (confundido com patriotismo) que ao contrário da desinformação hoje chegada a nós por parte da nossa educação, encontrava-se longe do dito apartidarismo durante a Segunda Guerra Mundial. Esse longo quadro de época preencheu as páginas de uma história insólita de um heterónimo que ganha vida acima do seu criador. Aqui, a “criatura” dá-se pelo nome de Ricardo Reis, uma das criações de Fernando Pessoa e a qual, a não possuir um digno obituário, Saramago encarrega-se de tal tarefa, ao mesmo tempo que a subverte num delicioso paradoxo.

Quanto ao filme, Botelho prometeu um tom de fidelidade para com os escritos e sobretudo na ilustração do Portugal degradante, cinzento e chuvoso de outrora, que, segundo o próprio, aproxima-se dos tempos atuais. Banhado em tons cinzentos, fotografia, essa, que realça a negritude deste enclausuramento que se dá pelo nome de país, embarcamos ao mesmo tempo com Ricardo Reis (interpretado pelo veterano Chico Diaz) no porto de Lisboa, após anos e anos residido no Brasil. De volta à sua terra natal, o nosso protagonista assume-se como um indiferente politizado, cuja essa consciência é despertada através da carnalidade de Lídia (Catarina Wallenstein), a camareira do hotel onde se encontra hospedado, a Ofélia possível, visto que a projetada encontra-se em Marcenda (Victoria Guerra), jovem de classe alta com a particularidade de ter o braço esquerda paralisado, e o qual recusa o seu amor.

Para acompanhar estas desventuras, está o próprio Fernando Pessoa (Luís Lima Barreto) ou o espírito dele, tendo em conta que a chegada de Reis a Portugal coincide com a morte do poeta. Nesse termo, o referido paradoxo é lançado, com o heterónimo agarrado à sua criação como se a sombra do Peter Pan, porventura, invertesse o seu papel de submisso. Este jogo lúdico é interessantemente adaptado nos gestos mimetizados de Botelho. Um filme, como o próprio aclama, de grande dívida para com o feito de Saramago.

“O Ano da Morte de Ricardo Reis” é, como tem sido habitual nos últimos filmes de Botelho, uma obra algo franciscana que faz uso do seu jeito de “desenrasque” para nos causar um distanciamento para com o virtuosismo da reconstituição. E tal como muitas das suas obras, sentimos uma distância, uma frieza para com a matéria emoldurada e inserida num requinte técnico e nos desempenhos capazes (muitas vezes com vontade em trespassar o somente boneco ilustrado).

Necessitávamos, mesmo assim, de um pouco mais de Botelho (como aqueles momentos da inserção de António Lopes Ribeiro, desempenhado pelo professor e realizador Paulo Filipe Monteiro) e muito menos de Saramago … algo, como diria, mais próprio.

João Botelho: "Não faço ação à americana ou policiais franceses, e sim filmes portugueses."

Hugo Gomes, 29.09.20

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João Botelho dirige Chico Diaz, Victoria Guerra e Cataraina Wallenstein na rodagem de "O Ano da Morte de Ricardo Reis(2020)

João Botelho prometeu devolver o valor incalculável da literatura portuguesa e o faz através da sua própria arte – o Cinema. Depois de Agustina Bessa-Luís, Eça de Queiroz e Fernão Mendes Pinto, o realizador regressa ao universo pessoano [Fernando Pessoa], que o sempre acompanhou, para transcrever o romance do Nobel da Literatura, José Saramago.

O escritor havia concebido em 1984, um retrato descritivo e detalhado de um Portugal nos anos 30 a experienciar os seus ventos de fascismo, o pretexto para atribuir a dignidade ao heterónimo “esquecido” de Fernando Pessoa. É que o poeta esqueceu-se de criar um obituário à sua criação, deixando-o livre no mundo térreo enquanto o criador resistia no lado espiritual.

O Ano da Morte de Ricardo Reis” é um enredo de duas forças opostas que se embatem num país que desiste do seu sonho de um Quinto Império. Falei com o realizador sobre este seu novo projeto e ainda sobre a inquietude do Cinema.

Queria que me começasse por responder sobre o embarque nesta adaptação e o facto de Fernando Pessoa ser uma aura que o acompanha ao longo da sua carreira, recordo que antes de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” já havia trabalhado nesse universo em “Conversa Acabada” (1981) e o “O Filme do Desassossego” (2010).

É verdade, o Saramago também meteu-se com o Pessoa e, por via dele, meti-me eu. Mas a questão é que tanto se fala de apoio à cultura, às artes, mas o grande problema é essencialmente a educação. Devido a isso, há um total desprezo pelo que é nosso. E temos ‘coisas’ fantásticas neste país, o que pode resumir a uma ideia, a uma paisagem, sem sequer mencionar a Grande Literatura Portuguesa.

Tentei com isto salientar o nosso património, e não só do “Conversa Acabada”, esse modernismo diálogo entre Pessoa e [Mário de] Sá Carneiro, mas da literatura contemporânea, que tem uma proximidade com aquilo que está a acontecer hoje. O romance do Saramago tem uma capacidade notável de mostrar um ano de ’36 muito parecido com a nossa atualidade. Obviamente que não havia a COVID. [risos] Mas já existia a extrema-direita, os Trumps, os Bolsonaros, os Órbans, os irmãos da Polónia, os Putins e até o islamismo, ou seja uma tendência enorme de negritude.

O que Saramago fez com este seu livro foi o inventário de tudo o que acontecia em Portugal no mundo durante 9 meses correspondente a esse mesmo ano. Ele relatou as invasões da Etiópia, o surgimento do Nazismo, a Guerra Civil de Espanha, as inundações de meses em meses em Portugal, o fortalecimento do fascismo e até mesmo espetáculos e outras variedades. Isto tudo é visto hoje como uma espécie de retorno, por isso era mais que importante falar sobre isso.

Segundo, porque é uma obra muito bem escrita e muito cinematográfica. Dentro das obras de Saramago, esta é a mais propícia para o Cinema. E, no fundo, este filme é uma mensagem para os mais jovens: “Leiam, simplesmente leiam”. Temos grandes obras da literatura e devemos ter, acima de tudo, orgulho no que possuímos e produzimos. E, além do mais, é também uma mensagem sobre cinema, falar e abordar o cinema.

Bem sabemos que existe atualmente um triunfo do entretenimento, uma tendência tão infanto-juvenil, e que poderemos encontrar mais cinema nas séries. Ou seja na televisão do que nas salas. Por vezes é preciso gritar: “Para”. Nisso, uma das poucas “coisas” boas da COVID, foi que isto nos obrigou a parar e a pensar.

Este filme está longe dos 3000 planos ou dos “N” efeitos sonoros, está mais perto das luzes, das sombras, dos seres humanos aflitos e, essencialmente, da oralidade do Saramago. Isso porque quero que as pessoas leiam, porque acho que quando sou apoiado pelo Estado tenho de devolver um pouco esse mesmo serviço público. Para além do filme, há que ir às escolas, falar com os “miúdos” sobre Saramago ou sobre Cinema. Os jovens de agora chegam mesmo a pensar que o cinema começou com o Tarantino… simplesmente não! Tem mais de 120 anos. [risos]

Mas pronto, a aventura é esta!

Recordo que “A Jangada de Pedra” (George Sluizer, 2002), a primeira adaptação cinematográfica de uma obra de José Saramago, foi repudiada pelo próprio. Acredita que este filme agradaria ao escritor?

Julgo que se Saramago estivesse vivo, gostaria disto. Eu não gosto do “A Jangada de Pedra”, nem do filme do [Fernando] Meirelles [“O Ensaio Sobre a Cegueira”]. Há uma pressão enorme por parte dos grandes estúdios em estabelecer nos atores um realismo vincado e como nós não temos dinheiro para isso, adquirimos, em certa parte, uma liberdade para fazermos o que queremos.

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Chico Diaz e Luís Lima Barreto em "O Ano da Morte de Ricardo Reis(2020)

Mas voltando à adaptação em si, para além da responsabilidade, como geriu esse processo criativo de transformar aquelas páginas em imagens? Obteve alguma liberdade nesse mesmo processo?

Eu não reescrevi nada, nem sequer podemos reescrever um grande escritor. Apenas utilizei os fragmentos que poderia adaptar com as circunstâncias e condições que tinha ao meu dispor; o preto-e-branco, o formato 36, o de transformar o Campo de Alcochete em Fátima, o de ter mil pessoas no Campo Pequeno e repetir umas quatro vezes para termos umas “quatro mil” naquele comício. Este tipo de atitudes pode-se fazer cá, porque numa grande produção é necessário uma habilidade imediata e dinheiro o qual tornam impossível esses mesmos improvisos.

De facto, toda esta ficção é um paradoxo sem fim. Temos um poeta solitário que cria um heterónimo e que, após a sua morte, a criação assume o papel de criador. É como se a sombra do Peter Pan emancipasse e, nesse sentido, os papéis eram invertidos.

O Fernando Pessoa era incapaz de escrever sobre os desejos carnais do Ricardo Reis. O Saramago, por outro lado, sabia perfeitamente o que é um ser humano. Já Pessoa conhece o espírito. [risos]

Em relação ao protagonista, porquê a escolha do muito experiente ator brasileiro Chico Diaz?

Tive um amigo que foi um ano para o Brasil e veio de lá com sotaque brasileiro. Logo, segundo a ficção, Ricardo Reis esteve lá 16 anos, por isso mesmo, teria de ser um brasileiro a desempenhar esse mesmo papel. Quanto à escolha do ator, inegavelmente Chico Diaz é excelente na sua arte, porém, para desempenhar a personagem, teve de aprender a atuar à portuguesa, nem que seja abrir as vogais e consoantes.

Tive a sorte de trabalhar com ele um mês antes das filmagens, juntamente com Luís Lima Barreto e o facto de ele também ser um ator de longa carreira facilitou esta transformação. Ele atribuiu a carnalidade que precisava para este Ricardo Reis. É um ator de corpo e inteiro.

Além disso, há uma história de cumplicidade com o Brasil em questões de produção, o que tornou verossímil esta decisão.

E em relação ao lado dos “espíritos”? A escolha de Luís Lima Barreto como Fernando Pessoa?

O Luís Lima Barreto é também uma escolha estranha. Mas o que aconteceu na realidade é que o Fernando Pessoa quando morreu, com 47 anos, parecia que tinha 90. É claro que o Lima Barreto não tem 90 nem anda lá perto [risos], mas eu precisava de alguém semelhante aquele Pessoa que morreu, que era um Pessoa mais “gordo”, longe da imagem angulosa que popularizou.

Existem, julgo eu, duas ou três fotos de quando ele morreu, o qual exibem um Pessoa calva, de feições rechonchudas e de bigode cinzento. É esta a imagem que procurava para este Pessoa. Por outro lado, há um cinismo no modo de representar o Pessoa que me interessava muito.

Mas pronto, no fundo, isto parece um western. A paixão de dois cowboys, depois surgem umas mulheres lá pelo meio, e um deles pega no outro e cavalgam até ao pôr-do-sol. Obviamente, algo que gosto de brincar, apesar de levar a sério o Saramago, é com o cinema e os seus géneros cinematográficos. Eu acho que o cinema não dá lições a não ser as de cinema. O resto é para inquietar, mas isso é o Saramago, não sou eu.

Então não acredita que o cinema pode, ou deve, dar “lições”?

Pode. Ético e moral. Todavia, a principal função do Cinema é a sua inquietação. Não é o conforto, nem o consolo, não é indicar caminhos, não é o de resolver, é sim, o de inquietar, e a partir daí são as pessoas que escolhem os seus próprios caminhos.

Claro que há uma questão ética, até porque a ética é a colocação da câmara, as luzes e as sombras. Ética é não deixar o espectador entrar lá para dentro, mas permitir que veja e ouça. O cinema pode bem contar histórias, só que tem de construir a distância segura para que o espectador se sinta livre de dizer – isto é o espetáculo, não é a vida.

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João Botelho na rodagem de “O Ano da Morte de Ricardo Reis” (2020)

O cinema americano atirou-nos para dentro do ecrã, por isso mesmo desejo fazer algo diferente, que é o de sair fora do ecrã e ser verdadeiro, e cuja verdade é o texto, os olhares, os gestos. O resto não é verdadeiro, aquilo não é vida, é uma espécie de representação da vida. Por isso é que gosto bastante de teatro, e corromper o cinema com o teatro. Gosto da ideia do artifício, a da mulher de 60 anos que faz de adolescente e que nos leva às lágrimas só pelo seu desempenho.

Adoraria fazer ópera. Chegar às emoções dos espectadores que não seja através da identificação das personagens.

Conhecendo a sua grande admiração por Manoel de Oliveira, digamos que está a fazer uso de uma das suas mais recorrentes “lições de cinema”, quanto mais o cinema se aproxima da realidade, mais se afasta da arte.

Absolutamente! Quanto mais uma pessoa entra lá dentro, menos vê e menos ouve. Aliás, o Oliveira não queria que os atores olhassem uns para os outros, mas sim, que olhassem para fora, porque estão a representar para o espectador.

Eu não vou tão longe, prefiro ter em conta algumas ambiguidades. Mas gosto da ética do Oliveira: para cada situação só existe um ponto-de-vista para quem o faz. Por exemplo, este romance dado a 10 realizadores diferentes originariam 10 filmes completamente distintos. O Cinema não é o que se passa, nem como se passa, é como se filma. O meu modo de filmar é inequívoco, assim como a maneira de filmar do João César [Monteiro], do Pedro Costa, do Oliveira, do José Álvaro [Morais], de muitos.

Cada um com o seu Cinema.

Voltando à sua anterior frase: “há mais cinema nas séries do que nas salas” …

Há mais cinema na televisão porque os adultos deixaram de ir às salas, não é somente uma situação portuguesa, mas 85% dos frequentadores de salas de cinema têm menos de 18 anos e, portanto, o entretenimento ganhou. Eu costumo dizer que houve um filme que nos condenou a todos, chama-se “Tubarão”. Simplesmente abriu a boca e engoliu tudo [risos]. Porque no fundo esta onda infanto-juvenil não é mais do que Série B ou Z com dinheiro investido. Atenção, eu não estou a insinuar que o “Tubarão” é um mau filme, apenas destruiu tudo à volta e agora sofremos com as sequelas.

Eu gosto e faço cinema-tempo, e não cinema-movimento. Não faço ação à americana ou policiais franceses, e sim filmes portugueses.

Devido a este ponto, deixe-me repescar uma outra frase sua, impressa no livro “O Cinema da Não-Ilusão: Histórias para o Cinema Português”, de João Mário Grilo, que foi o seguinte: “A verdade é que nenhum dos filmes portugueses de entretenimento interessa a qualquer um dos meus três filhos, que são espectadores normais de cinema. Porque, patetice por patetice, preferem os americanos, que são patetas grandes.”

Porque não há cinema comercial português, aquelas comédias populares que as pessoas adoram – “O Pátio das Cantigas”, “Canção de Lisboa”, entre outros – davam um prejuízo enorme, apenas eram apoiadas pelo Estado fascista. Eram comédias iguais umas às outras, era a pequena burguesia em ascensão, “portam-se bem e vão para o reino dos céus”. Ao contrário do que se afirma, não eram rentáveis, eram somente propaganda. Não há nenhum filme português que tenha sido pago na bilheteira… nenhum!

E outra “coisa”, nós não temos preponderância para fazer mainstream. Os americanos gastam em lançar um filme  que equivale a dez filmes portugueses. O nosso cinema está mais próximo do europeu dos anos 60 ou até mesmo do americano mudo. Estamos mais próximos do Ford, do Dreyer, do Ozu, ou seja, com a História do Cinema do que com a indústria de entretenimento.

Para finalizar, quanto a novos projetos?

Já tenho um no “forno”. Já ganhei um concurso e só estou à espera para filmar sem máscaras. Vou adaptar Alexandre O’Neal e se intitulará “Um Filme em Forma de Assim”, tendo como base o seu conto “Uma Coisa em Forma de Assim”, ou seja, posso fazer tudo o que me apetece. Eu já tenho idade para isto. [risos]

 

Estar além da criatividade para revelar António ao Mundo

Hugo Gomes, 18.08.19

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E quem é que te disse que quero adaptar-me a Lisboa? Lisboa é que tem que se adaptar a mim”. Longe de ser uma figura do seu tempo, António Ribeiro, ou como é conhecido entre nós, António Variações, provocou um país ainda desconfortável com as próprias mudanças e fê-lo através da música, com a união entre um certo tradicionalismo (Amália era a sua principal influência) e uma vontade nova de cantar. Assim nasceu o artista, ainda hoje relembrado como uma das principais inspirações para as gerações que se seguiram, cantautor de temas de êxito como “Estou Além”, É P'ra Amanhã”, “O Corpo é que Paga” e obviamente “A Canção de Engate” (música que já integrou alguns dos momentos mais belo do nosso cinema), que “vê” por fim nos cinemas a sua primeira cinebiografia, 35 anos depois da sua morte.

Mas para chegar até aqui muito foi batalhado, e que o diga João Maia, realizador e argumentista, que em 2009 viu o seu guião ser alterado sem o seu conhecimento, o que gerou um confronto pelos direitos com a então produtora Utopia Filmes (responsável por “coisas” como “Second Life” e “Corrupção”). O projeto manteve-se no limbo desde então, até que, graças à persuasão de Maia, “Variações” sai do seu coma induzido com a bênção do produtor Fernando Vendrell e da sua David & Golias, e transforma-se finalmente… num filme concretizado. “Variações” tem essa luz de irreverência no nosso panorama cinematográfico, muito mais pela espera em ver este projeto realizado e por preencher um corpo que faz jus à figura transposta. O ator Sérgio Praia, que já havia interpretado o cantor numa peça de teatro de Vicente Alves do Ó, é o motor desta obra que visa a busca do homem por detrás do artista e não o inverso.

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A sua incorporação arrasta o filme para patamares acima de anteriores protótipos de cinebiografias já produzidas entre nós (a relembrar dois vergonhosos casos como “Salazar – A Vida Privada” e “Amália - O Filme”), que são de puro mimetismo primário e que em certos casos reduzem as personalidades a caricaturas de si próprias. Em “Variações”, Praia estabelece um vínculo emocional com a figura, resgata-a do “papel de cartão”, do objeto da memória coletiva, e transporta-a para o holofote como um ser inteiro nas suas dúvidas existenciais, artísticas, térreas e amorosas.

Por força do ator, o filme de João Maia encontra um propósito para a sua concepção, ainda para mais alicerçado na construção do seu ecossistema por um trabalho afincado de direção artística e guarda-roupa que exalta a extravagância da figura titular. Infelizmente, apenas isso resta dos desígnios fílmicos do cantor. O resto, mesmo não jogando inteiramente no conceito televisivo como as duas cinebiografias acima mencionadas, é de um academismo rigoroso quanto à sua estética, planificação e até mesmo narrativa, guiada por modelos “americanizados” ou simplesmente de fácil reconhecimento por via dos protótipos "mainstream".

Variações” não se presta a romper fronteiras como o seu homenageado o fizera no final da década de 70 e inícios de 80, ficando, ao invés disso, pela sombra do modelo e do retalho biográfico como “fact check”. Vale pelo seu ator, mas o resto é como diz a canção: “quando a cabeça não tem juízo, o corpo é que paga”. E se paga!

Apontamentos de um gesto desaparecido à lá Ruiz

Hugo Gomes, 14.10.18

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A pomposidade dos dramas de época levam-nos a este antídoto, uma reconstituição míope, despojada, que se apoia sobretudo na palavra e na crença ostentada pelas suas personagens em tempos expirados. Adaptação de “O Livro Negro de Padre Dinis”, uma espécie de prequela de “Os Mistérios de Lisboa” de Camilo Castelo-Branco, o testemunho deixado por Raoul Ruiz à sua mulher, Valeria Sarmiento, torna-se numa bandeja à memória pós-tumulo do seu “eterno amante”, tendo como objetivo máximo a concretização de uma “ressurreição”. Triste será dizer que não encontramos alternativa, nem regresso a espíritos passados: Ruiz desapareceu do nosso Mundo (infelizmente teremos que aceitar isso), Sarmiento apenas arma uma fita com o afeto memorial.

Talvez seja por isso que exista aqui um certo desdém, diríamos antes, sentimento de estranheza, como um substituto deslavado se tratasse, mas é dentro dessa mesma irreconhecibilidade que somos afrontados com um romance de outrora e de salvaguardado fatalismo, que despeja lirismo nos seus gestos automatizados com uma fé inabalável. Prolongando a linha … diríamos antes … as “Linhas de Wellington” (projeto inacabado de Ruiz que Sarmiento assumiu sem alternativa), em “O Caderno Negro” somos puxados à limitação cénica e conflituosa, mas nem por isso ilimitados da nossa imaginação.

Não se sentia assim desde o primitivismo trazido pelos “teatros de época” de Oliveira ou a manobra temporal de Olmi em “Il Mestiere delle Armi” (2001), a reconstituição que não prima pelo detalhe visual nem sequer assumindo a réplica aludida, mas a recomposição de um certo parecer, antes de mais ser. É um filme enquadrado numa vontade, o gesto assimilado ao invés do gesto realizado da credibilidade, de facto, ficamos no impasse de uma obra cuidada e alegadamente cúmplice do seu artificialismo. E mesmo sob uma passiva narrativa de contos e recontos de uma adaptação reduzido ao esquematismo, algo quase alicerçado a um certo cinema de autor, “O Caderno Negro” provém de uma veia classicista, não no seu formato mas das contrações espirituosas. Aliás, somos conduzidos à tragédia de romances incumpridos, como juras de amor que imobilizam vidas e imortalizam mortes. Aí deparamos, o seu vínculo reafirmado da pomposidade da palavra e dos sentimentos anexados.

Falando em “anexos” e antes que seja tarde, miremos a beleza e a doçura amargurada de Lou de Laâge, a mera figura acorrentada a um drama maior que ela própria.

Vislumbres do aluno aplicado

Hugo Gomes, 24.03.18

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O ensino do português não se pode limitar aquilo que chamamos matéria”, como refere o jovem professor Alberto Soares (Jaime Freitas) perante o reitor do Liceu de Évora (João Lagarto), uma pequena lição que poderia ser seguida pela nosso Fernando Vendrell (aqui registando o seu regresso à realização, 12 anos desde “Pele”). Reformulando essa doutrina algo ativista citada pela personagem, o Cinema não se pode limitar aquilo a que chamamos narrativa, visto que no caso de “Aparição”, a adaptação do homónimo livro de Vergílio Ferreira, exista uma clara sede de ir além do seu próprio enredo.

Tal sente-se, numa narrativa descosturada, que desesperadamente liga e interliga situações, figuras e pensamentos que são aqui e ali invocados de maneira despachada. Pena, até porque em termos produtivos, “Aparição” comporta-se como uma lição bem estudada às milésimas estruturas televisivas que se confundem nas grandes telas, porém, para este filme em si ser sobretudo incisivo era preciso não se contentar com a superficialidade e num ato como o de beber e gargarejar por completo os reflexos contidos na obra. O incentivo da criatividade, o existencialismo que desafia a religiosidade de um Portugal (ainda) refém e a subliminar crítica a um país que se vive nas odes das “limitações seguras” (“não é permitido ter mais que a quarta classe ou mais de 300 porcos”), sugestões desaproveitadas em prol de uma narrativa direta que não despreza a intelectualidade do espectador, mas que nunca verdadeiramente a incentiva.

Um caso em que o storytelling não é tudo enquanto não existir uma profunda introspeção à relação à matéria-prima, e que por sua vez, não basta ser “boa adaptação” como se limitasse “aquilo que chamamos matéria”. Entretanto, existe sempre uma luz no fundo disto tudo, da mesma maneira que “Amor Impossível”, de António Pedro-Vasconcelos, usufruiu da sua “força centrífuga": Victoria Guerra releva-se mais uma vez, que mesmo sob pequenas doses, é um dos must do cinema nacional e esperamos que não só dele.

Lição Nº [inserir algoritmo]: “boas ideias” não resultam (automaticamente) em “bons filmes”

Hugo Gomes, 23.08.16

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Esta é a história de Lucas Mateus (Ivo Canelas), um músico de carreira falhada que entra em depressão após descobrir que a sua namorada o traía com o seu melhor amigo, Pedro (João Tempera), que ao contrário do protagonista é um músico com uma carreira bem sucedida. Com as desilusões que se vão acumulando na sua vida, Lucas desesperadamente entra num ciclo vicioso de “carrologia”, uma arte de engate em que consiste “estudar” o conteúdo dos carrinhos de supermercado. É durante essa “caça a mulheres” que Lucas encontra, que conhece uma estranha rapariga, cuja principal particularidade é de viver dentro de um fato de dinossauro cor-de-rosa.

Na teoria, “Refrigerantes e Canções de Amor” soa como uma variação de criatividade “Sundance style”, mas o pior é quando chegamos realmente à prática, e aí sim, é onde “a dinossaura torce o rabo”. Escrito pelo humorista Nuno Markl, esta é uma comédia de ideias, porém, mal executadas em derivação de um malabarismo de tons, de uma realização ausente de frescura, por um overacting conformado por muitas das suas estrelas e por um timing incorretamente aplicado. 

Devo dizer que esta obra tem de tudo para funcionar como um case study, exibido em qualquer aula de preparação para estudantes de cinema nos termos do que se “deve ou não fazer”. Verdadeiramente triste que isso aconteça, até porque no leme deste projeto está o veterano Luís Galvão Teles, que ainda este ano presenteou-nos com a louvada tentativa de “Gelo”, um filme de ficção científica que não envergonha ninguém. Infelizmente é na sua direção que encontramos a “faca de dois gumes” deste “Refrigerantes e Canções de Amor”, se por um lado a realização de Galvão Teles afasta-nos da usual linguagem televisiva que empesta as produções comerciais (*cof* “O Pátio das Cantigas” *cof*), é nele que encontramos o desleixo total, confirmado no patético clímax, onde não existe qualquer noção espacial e até temporal.

Sim, meus caros, “Refrigerantes e Canções de Amor” é um produto falhado, sem amor nem carinho, despachado e dilacerado precocemente. Algo bom nisto tudo é Victoria Guerra, que mesmo deixada à sua mercê no interior de um fato de dinossauro rosa, consegue graciosamente contagiar-nos com o seu talento. Aliás é nela que encontramos o termo de requisitada interpretação, onde os gestos e a voz valem mais que muitas expressões faciais.

Guerra e Cosmos, LDA

Hugo Gomes, 13.11.15

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Existe algo muito estranho em “Cosmos” (Andrzej Zulawski, 2015) que nos inquieta numa primeira “entrada”. Esta adaptação do homónimo livro de Witold Gombrowicz, e sob a alçada de Paulo Branco, nos apresenta uma bizarria que nos afasta simultaneamente nos aproxima. Uma atração pelo vazio e uma renúncia pelo seu burlesco, uma objeto em órbita que esconde no seu interior um cosmos propriamente dito e propriamente dilacerado do título. Perante essa cosmologia quase indecifrável e do outro lado uma tendência anárquica ao nosso conformismo (aqui subjugada às intenções do protagonista, interpretado por Jonathan Genet). Enfim, conforme seja a relação para com o espectador, é um facto que Victoria Guerra é hipnotizante! A atriz portuguesa revela força para romper as suas próprias barreiras. Vemos nela o cariz de conquistar o palco internacional.