Banhar-se nas trevas ...
Filme de sensibilidades que reflete a própria contorção da própria sensibilidade ao longo de épocas. “The Devil’s Bath”, nova obra da dupla Severin Fiala e Veronika Franz (do fenómeno “Goodnight Mommy”), expõe um caso na Áustria rural e obscurantista do século XVIII que traduz em outros casos idênticos, impondo um tempo funcional a essa mesma atmosfera de iminência, e de lume brando ao senso de terror.
Por outras palavras, não nos fiquemos pelo imediatismo, há que ter paciência neste relato acima da própria convenção de género e de declarações de géneros, a de uma mulher constantemente engolida pelo seu próprio desespero e descrença na sua existência após o matrimónio, e um manto dominantemente religioso que dita, contrariamente, como a Vida não é uma dádiva mas sim uma prisão, e cuja alma, esse precioso material, é o mais sagrados de todas as sagradas convicções. Portanto, quem aguarda um folk horror de grafismos extremos ou de excentricidades de outras dimensões pode sair frustrado, porque o tempo, esse, traz-nos um brinde, uma tese que consolida com aquele final e como a queda do pano desenrola num festim sangrento e quase herético, se não fosse a aprovação da Igreja naquela inquisição voluntária.
No livro “A Chegada das Trevas” de Catherine Nixey, aqui editado pela Desassossego, um relato lírico e histórico da queda do Mundo antigo com a dominância e difusão de uma religião, a Cristã, dispõe a sua força e expansionismo através do conceito de sofrimento e desapego material. Nas suas doutrinas primárias e ainda transpassadas séculos e séculos, o corpo nada de autoritário detém para com a existência, é a sua austeridade, a sua negação dos prazeres de vida, porta acessível ao descanso eterno no Paraíso perdido. Por essa via, a martirologia integrou essa mesma crença, quanto mais sofrimento acarreta nesse castigo vivente, maior e mais direto é esse bilhete precioso ao Além.
“The Devil’s Bath” denuncia esse pensamento de idade das trevas, de como o sofrimento imposto por uma fundação religiosa pode operar na criação de psicopatas inconscientes, assassinos de “boas intenções” e um povo que se contenta com o sofrível e a violência, réstias pagãs bárbaras, apenas transformadas por uma religião que dominou e que ainda domina, mesmo sob diferentes variações. Fiala e Franz constroem um filme anti-religioso, um anti-Faith movie, aquele subgénero na ribalta nos EUA, basta e apenas aceitar o tempo como ele é, a sua cadência lenta que nos traz recompensa com uma sangria epifânica.