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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Arranca o 6º BEAST IFF, da Eslovénia cinematográfica a finais (nada) felizes: "uma procura por novas fórmulas, por novos destinos e por novos caminhos"

Hugo Gomes, 26.09.23

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I Miss Sonja Henie (Karpo Godina, 1971)

A Eslovénia torna-se assim no centro geocultural desta sexta edição do BEAST IFF, o Festival Internacional de Cinema que acontecerá já no dia 27 de setembro, estendendo-se até ao primeiro dia de outubro em vários pontos da cidade do Porto. Este ano, para além do país homenageado e do melhor cinema do leste o qual tem dedicado com coração, poderemos contar (e continuar a contar) com um enorme foco feminino - com especial destaque para argumentista e figurinista Ester Krumbachová, uma das parceiras da “mãe” Věra Chytilová nos seus devaneios que lançaram a nova vaga checoslovaca para o holofote do mundo - e uma forte aposta no cinema queer originário das Balcãs. Sem esquecer Karpo Godina, um dos nomes maiores do cinema esloveno, que marcará presença numa retropectiva à sua figura.

É "no happy ever after" a inundar a cidade invicta nestes cinco dias, mas apesar do slogan pessimista, o BEAST IFF promete ser um festival "feliz", porque Cinema haverá, logo a felicidade é garantida. Só que esta felicidade está nas longitudes longínquas das utopias e dos "we are the worlds" hollywoodescos. Mas deixemos de descrições baratas e passemos aos nossos diretores e programadores - Radu Sticlea e Teresa Vieira - que, respondendo ao convite do Cinematograficamente Falando …, desvendam a rota desta edição.

Ao chegar a uma sexta edição do festival, e olhando em modo retrospectivo, quais os objetivos atingidos e o que poderá ainda atingir?

Radu Sticlea: Acredito que com cada edição conseguimos curar com sucesso um programa que não só mostra o trabalho de realizadores de renome, mas também dá destaque a talentos emergentes. Esta abordagem permitiu-nos nutrir e promover a próxima geração de realizadores da Europa de Leste, enquanto nos estabelecemos como uma plataforma única.

Como festival, a nossa missão é a seguinte: construir uma plataforma dinâmica para colaborar e fazer networking entre Portugal e a Europa Central e de Leste, enquanto simultaneamente desafiamos e desfazemos estereótipos associados à região. Nós acreditamos que um programa reflexivo e provocante não é só um testemunho da nossa dedicação para os talentos cinematográficos, mas também é uma oportunidade para expor a diversidade e densidade criativa do cinema da Europa de Leste. Ao abraçar conteúdos provocativos e quebrar barreiras, temos como objetivo incentivar conexões significativas e contribuir para uma compreensão mais extensa desta paisagem cinematográfica vibrante.

Sobre a Eslovénia, o país-homenageado, o que poderá dizer sobre a sua cinematografia e como resumi-la para o seu Focus. Que impressões os espectadores terão com esta viagem?

Teresa Vieira: Todos os anos, o BEAST dedica-se à criação de uma programação focada no panorama cinematográfico de um país, apresentando trabalhos de realizadores de renome e realizadores emergentes, num leque de diferentes temporalidades (das marcas do passado, ao presente e apontando para um futuro). Este ano, a escolha do Foco na Eslovénia surgiu por diversas razões. Desde logo, por sentirmos uma falta de representatividade do país - ou um certo desconhecimento da sua cinematografia - no panorama nacional, procurando criar um espaço para uma mostra mais aprofundada de produções passadas e presentes. A tal adicionado o facto de ser o primeiro país pós-comunista a legalizar a adopção e o casamento entre casais do mesmo sexo, o que se liga à nossa atenção para com as questões queer na Europa Central e de Leste

Em termos de programação específica, decidimos alterar o modelo de selecção para a cerimónia de abertura (que, ao longo da história do festival, se concretizava com a exibição de uma longa-metragem do País em Foco), seleccionando três curtas-metragens de três realizadoras da Eslovénia. Consideramos esse gesto representativo do festival de diversas formas: o formato de curta, sobre o qual trabalhamos um pouco por toda a programação, como forma de lançamento do mote para esta 6ª edição; e a escolha de três obras realizadas por mulheres, que traduz a nossa atenção para com questões de género na programação. 

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Věra Chytilová e Ester Krumbachová

Aquilo que o público poderá esperar, após esse ponto de partida, é uma viagem por diferentes pontos: uma retrospectiva de curtas metragens dos anos 60 e 70 de Karpo Godina, realizador de renome (aqui num ponto de passado estabelecido e fortemente marcado na história do cinema); duas sessões de trabalhos de duas escolas de cinema (criando uma mostra dos futuros nomes da cena cinematográfica, dando também um espaço para estas produções circularem noutros territórios e contactar com outros públicos); uma sessão especial de LGBT_SLO_1984, parte do programa queer do festival, para um maior entendimento dos movimentos artísticos, activistas e históricos associados à evolução dos direitos LGBTQIA+ do país; uma retrospectiva de video-art, um formato que foi (e ainda é) marcante da cena artística do país, e que consideramos fundamental para um maior entendimento das abordagens artísticas e cinematográficas da Eslovénia, procurando ao mesmo tempo enfatizar o nosso ângulo de criação de espaço para “outros formatos”, por vezes afastados das salas; um cine-concerto de “No Reino Do Chifre De Ouro” (“In the Kingdom of the Goldhorn”, 1931), com o artista sonoro Ivo São Bento, em que exibiremos a primeira longa-metragem realizada na Eslovénia acompanhado por um trabalho musical e sonoro original e exclusivo para este evento.

Procuramos, no fundo, apresentar uma seleção diversificada de múltiplas formas - e despertar todos os sentidos do público pelo caminho.

Em BEAST IFF existe uma “apetite”, chamaremos assim, em se focar num cinema feito por e para mulheres, descortinando nomes emergentes como a de Tereza Nvotová [“Nightsiren”] ou de heroínas como Ester Krumbachová, colaboradora de Věra Chytilová, ambas representadas nesta edição. Gostaria que me abordasse esta abordagem, se é algo coincidente ou uma convicção político-social-artística do festival?

TV: A resposta poderá passar pelas duas partes: surge de uma convicção político-social-artística e aconteceu igualmente (de forma não coincidente mas) natural - sendo que tal advém, desde logo, por exemplo, de escolhas em pré-criação de programação. A nossa atenção para com questões de representação de género está presente, em primeiro lugar, na constituição da equipa do festival: procuramos ter um grupo de vozes diversas, o que de forma natural influencia os resultados nas escolhas curatoriais e na programação. 

Não tendo uma maioria de programação cis masculina, implica que, regra geral, a questão (necessária, urgente, fundamental) que tem de ser muitas vezes apresentada e reforçada noutros contextos - e firmada constantemente -, de atenção para com a representação de género, se tornou quase “redundante” no nosso processo colectivo de trabalho. No sentido em que, enquanto pessoas que não fazem parte de uma categoria de “privilégio”, tal implica inevitavelmente um posicionamento individual e colectivo - um olhar - que carrega em si estas questões de forma contínua - é a nossa vida, a nossa luta, a nossa história. Faz parte de nós e a programação reflecte isso mesmo. 

Relativamente a elementos de secções não-competitivas, o caso do programa de retrospectiva de video-art da Eslovénia poderá ser ilustrativo: após a selecção de grande parte das obras que vão ser agora exibidas ao público, foi possível observar que o programa, de si, já representava uma maioria feminina. Assim, foi mantida a programação exatamente como estava após essa análise. Em relação a outros programas temáticos (fora de competição e do Foco Eslovénia), dar destaque a Ester Krumbachová é dar uma atenção para o trabalho criado por uma mulher mas também para uma pessoa cuja função não recaiu somente na realização. É igualmente um posicionamento do festival de que é necessário criar e fortalecer espaços de foco em áreas além da realização e produção: o caso da Ester, multi-facetada e fundamental set designer, costume designer, guionista da New Wave Checa, é uma forma de demonstrar essa vontade.

Uma questão pertinente, visto que o festival foca este ano numa mostra de cinema Queer (ou simplesmente de temática LGBTQIA+), o qual decorrerá em simultâneo com o Festival Queer Lisboa e posteriormente com a extensão no Porto. Existe diálogo entre os dois festivais, ou há um sentimento de concorrência?

TV: O BEAST tem dedicado ao longo de diversas edições um espaço para programação de cinema queer. Este ano, o festival decidiu criar um título para essa secção: “How to Care for Cosmos”. Um título que surgiu, entre outras coisas, de inspiração a partir de “Modern Nature”, de Derek Jarman. Uma ideia de um jardim que tem de ser cultivado, com flores que representam o “tudo”, o “universo” - o “nós e es outres”. É um programa que procura o cuidado, a atenção para com questões que consideramos urgentes, de forma a procurar um futuro melhor para todes. 

Este foco transparece uma identidade queer que não é somente uma secção: faz parte do ADN do festival, composto maioritariamente por pessoas da comunidade LGBTQIA+. O programa desta secção, este ano, resulta em grande parte de colaborações com dois festivais de cinema queer da Europa de Leste: Sunny Bunny (Ucrânia) e FFi (Eslováquia). O Sunny Bunny é o primeiro festival de cinema queer da Ucrânia e teve este ano a sua primeira edição. Exibir estas curtas-metragens ucranianas neste momento é também um statement do BEAST, que tem reforçado o seu foco - já existente em edições passadas - no cinema ucraniano durante este período de guerra, com uma vontade explícita de dar voz aos cineastas do país - e, este ano em particular, à comunidade queer. A colaboração com o FFi resulta de uma preocupação para com a situação sócio-política do país: em 2022, duas pessoas da comunidade LGBTQIA+ foram assassinadas à frente de um bar (safe space para pessoas queer). 

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Before Curfew (Angelika Ustymenko, 2023)

Mostrar curtas-metragens da Eslováquia é também uma forma de demonstrar o nosso apoio para com a comunidade do país, e uma procura para um alerta de movimentos de ódio que ainda (ou desde sempre) acontecem na Europa. Os programas que serão apresentados foram criados colaborativamente: uma selecção que uniu diversos olhares de diferentes pontos geográficos - todos a partir de perspectivas de indivíduos queer.

Esta resposta passou, primeiro, por uma mostra do gesto programático desta secção: colaboração, diálogo e trocas. Não foi por acaso: serve de ponte para aquilo que poderá ser dito em relação ao Queer Lisboa e a sua extensão no Porto. Não só não existe qualquer concorrência entre festivais, como almejamos que existam cada vez mais e mais espaços para vozes, visões e identidades queer - algo que consideramos crucial. Felizmente, nos tempos que correm, é possível ver cada vez mais a presença de cinema queer em programações não dedicadas exclusivamente ao cinema queer

No entanto, a existência do Queer Lisboa/Porto, que têm notoriamente das identidades mais firmadas e estabelecidas no panorama de festivais nacionais, é algo que consideramos absolutamente fundamental, insubstituível e de um valor imenso. A sua linha de programação denota preocupações partilhadas - desde logo, por exemplo, exibindo filmes que relatam as questões da Guerra na Ucrânia - , também com produções de países como a Roménia, o Kosovo, mas também de múltiplas regiões além-Europa (filmes da Nigéria, do Brasil, da Colômbia, entre tantos outros). Partilha de preocupações, um olhar atento para com as questões da comunidade LGBTQIA+ e uma selecção de excelência a nível de qualidade de produção cinematográfica são ingredientes para a receita perfeita para aquilo que diremos de seguida, em jeito de conclusão.

O Queer Lisboa e o Queer Porto são festivais que respeitamos, que admiramos, com quem claramente partilhamos (para além das datas de calendário entre Queer Lisboa e BEAST) uma simpatia imensa e com quem obviamente gostaríamos de um dia colaborar (se elus nos quiserem também ;) ).

O que poderá destacar na programação, dos filmes aos convidados?

TV: Um dos destaques inevitáveis da programação é a retrospectiva de Karpo Godina, realizador que marcará presença no festival. As obras produzidas entre os anos 60 e 70 por esta figura incontornável da história do cinema são uma magnífica amostra da originalidade, frescura e a abordagem satírico-politizada (com uns óptimos travos musicais e de humor à mistura) que marcam o espólio deste cineasta e um pouco do seu trajecto inicial no universo cinematográfica - essa descoberta que podemos ter dos primeiros passos que o realizador deu nessa sua própria (e única) viagem.

Destaque igualmente para o programa “Post Porn - Radical Visibility”. Criado em colaboração com o Post Pxrn Film Festival Warsaw, surge como resultado de uma curadoria conjunta entre os festivais, de apresentação de uma selecção de curtas-metragens polacas de post porn. O encontro com os diretores deste festival, que estarão presentes na sessão, será uma excelente oportunidade para conhecer melhor o “post-pxrn” mas também a relevância da produção destas - e outras obras -  no contexto sócio-político e artístico particular da Polónia.

Em relação ao programa queer, não só destacamos todas as sessões — Sunny Bunny, FFi e LGBT_SLO_1984 — como também consideramos importante mencionar a Queer Talk que decorrerá durante o festival, onde será possível participar numa conversa com todos os directores desses festivais, aos quais se juntará Romas Zabarauskas, cineasta lituano reconhecido pelo seu trabalho no cinema queer, convidado do evento de indústria do BEAST.

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In the Kingdom of the Goldhorn (Janko Ravnik, 1931)

Por fim, destaque para o regresso da secção CINE-GEOGRAFIA SOCIALISTA | ÁFRICA - EUROPA DE LESTE. Este ano, com um programa em que será exibido um documentário de Traian Cocoș e Răzvan Marchiș “Viagem... longe da África” (1972-194), seguido de uma talk com Iolanda Vasile. Este programa, que conta com o apoio do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra, através do projecto EDU-AM, e do Instituto Cultural Romeno, criará espaço para uma conversa que terá como ponto de partida a investigação de Iolanda Vasile sobre as ligações que a República Socialista da Roménia teve com vários países do continente africano entre os anos 1965- 1989. Será discutido como os câmbios educacionais, principalmente no cinema, mas também em outras áreas, contribuíram para as transições políticas no continente Africano colocando as bases do processo de transição pós-colonial.

O festival contará com a presença de realizadores das diversas secções, para além de convidades de indústria que estarão presentes durante esta edição.

Muito deste cinema do leste que aposta enquanto tema do evento é normalmente ignorado pela distribuição comercial nacional. Existe um preconceito para com estes filmes, ou entendimento (provavelmente pelo senso comum adquirido pelo experimentalismo de muitas destas cinematografias) como pouco acessíveis a públicos maiores.

RS: Nós reconhecemos o panorama evolutivo do consumo de cinema português. O público português está a demonstrar um interesse cada vez maior pelo cinema de nicho, incluindo as particularidades únicas e cativantes da Europa de Leste. Esta mudança na preferência do público é encorajadora e sinaliza um desejo crescente por experiências cinematográficas diversificadas, para além dos filmes comerciais mainstream.

Além disso, observamos uma tendência positiva no sector da distribuição. Os distribuidores estão a começar a reconhecer a mudança dos gostos do público português e estão mais abertos a atribuir espaço a conteúdos de nicho, incluindo filmes da Europa de Leste. Esta abordagem progressiva reflete um reconhecimento amplo do valor cultural e do significado artístico destes filmes.

Enquanto festival, esforçamo-nos ativamente para estar na vanguarda desta onda de transformação. O nosso objetivo é tornarmo-nos num ponto de encontro fundamental para os profissionais da indústria, incluindo cineastas, produtores e distribuidores, tanto de Portugal como da Europa de Leste. Acreditamos que a promoção de ligações entre estas duas regiões pode levar a oportunidades interessantes de colaboração e co-produção.

Sobre um eventual crescimento do festival, alguma vez colocou-se em cima da mesa extensões das vossas mostras? Ambições para o futuro?

TV: O festival tem realizado extensões ao longo dos anos, vendo esses momentos como forma de reforçar a presença do festival mas acima de tudo de criar a possibilidade de expansão de visibilidade de obras de cineastas. O BEAST, estabelecido, nutrido e com raízes no Porto (onde se pretende manter) já realizou mostras em espaços em Lisboa, como no Cinema City Alvalade e na Galeria Zé dos Bois (neste último caso, em colaboração com o Cineclube Aparição, com uma mostra de cinema ucraniano - o país de foco em 2021 - e os filmes vencedores da competição desse ano).

Em relação ao próprio festival, apostamos na criação de uma plataforma de networking e colaboração — East, Match, Go! —, que terá este ano a primeira edição. Um evento de Indústria que procura aproximar — e fomentar ligações — entre profissionais de Portugal (com ênfase no Porto) e profissionais da Europa Central e do Leste.

Nesse sentido de aproximação de Portugal a esta região da Europa, o festival tem realizado a curadoria de programas de cinema português. Nomeadamente, o exemplo mais recente, foi a criação de um programa de curtas-metragens queer portuguesas, que chegaram a diversos festivais da Europa Central e de Leste (como o BRNO 16, o Sunny Bunny, entre outros).

O objectivo do BEAST — como o de todos os festivais — será sempre o de crescer, mas também de amadurecer e de se fortalecer de forma consciente e atenta àquilo que o rodeia, tendo sempre presente a atenção para com a forma através da qual tal evolução poderá ser sustentável e adequada para a manutenção da qualidade e dos valores do festival. Para o futuro é possível dizer que pretendemos criar uma ligação cada vez mais forte com festivais e mostras com quem partilhamos ideais - e ideias -, num gesto de manter activa e em funcionamento a nossa perspectiva de que, através da colaboração, será possível crescermos — equilibradamente — em conjunto.

no happy ever after”, o tema desta 6ª edição, é um reflexo de uma procura por novas fórmulas, por novos destinos, por novos caminhos. É nesse percurso, de construção, de análise, de escuta e aprendizagem, em que queremos — e precisamos de — estar.

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Toda a programação poderá ser consultada aqui

O Lugar da Mulher é na realização! Arranca o 2º Screenings Funchal Festival

Hugo Gomes, 01.06.23

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Iniciado em 2017, o Screenings Funchal é uma iniciativa cinematográfica madeirense que visa enriquecer esse panorama no Funchal. Até à data, foram mais de 200 filmes exibidos, oriundos de mais de 30 países, contando obras-primas, cultos, redescobertas ou êxitos improváveis, tudo em nome do cinema e a sua arte de partilhar e de ver o Mundo, sistematicamente em todos os fim-de-semanas. 

Contudo, o evento sucedâneo deu origem a um festival, uma mostra cinematográfica fora do âmbito convencional do que se predomina ser festival de cinema. Ciclos temáticos que não só vieram para fortalecer a proposta em si como também criar pontes imaginárias unificadoras da ilha com o cinema, seja lá qual for, longe dos catálogos mainstreams e supra-vendidos que preenchem multiplexes no continente. À chegada da segunda edição o Screenings Funchal Festival (do dia 2 a 24 de junho), seguimos numa pequena viagem pelo cinema assinado no feminino; de Vera Chytilová, a “mãe da Nova Vaga checoslováquia", a Kinuyo Tanaka, a sensação nipónica na distribuição portuguesa deste ano, com paragens em Kelly Reichardt, na consagrada e irreverente Chantal Akerman e a promissora Eliza Hittman. Mulheres, e além disso, cineastas a conhecer ou revisitar, gestos e olhares para além da delicadeza e da serenidade. 

Para conhecer melhor este festival, o Cinematograficamente Falando … conversou com Pedro Pão, programador, dando luzes à programação, aos propósitos, aos desafios e mais que tudo, ao Cinema [toda a programação poderá ser consultada aqui].

Visto que o Screenings Funchal é uma iniciativa que corresponde a sessões correntes em quase todos os fim-de-semanas, o que difere este intitulado Screenings Funchal Festival da periódico evento que os cinéfilos do Funchal estão habituados?

Na nossa actividade regular semanal, trabalhamos essencialmente com obras com distribuição portuguesa. O Festival Screenings Funchal além do número superior de filmes exibidos (8 em vez de 4), permite-nos construir uma programação com menos “restrições” e trabalhar com distribuidoras internacionais se houver necessidade disso e ter cá convidados que possam contribuir para o enriquecimento da experiência cinematográfica e de certa forma minimizar, mesmo que por breves momentos, a nossa condição ultraperiférica.

Este Screenings Funchal Festival posiciona-se na casa feminina, numa mostra que compreende cinco cineastas / realizadoras. Quais foram os critérios de seleção das oito obras e das suas protagonistas?

A primeira parte da seleção definida foi o ciclo. Dada a frequência pouco habitual do festival, um ciclo parece-me dar alguma coesão ao mesmo e minimizar de certa forma o espaçamento existente entre as sessões. Soube o ano passado que a The Stone & The Plot ia exibir em Portugal o ciclo da Kinuyo Tanaka e pareceu-me importantíssimo não só que as obras viessem ao Funchal mas que fossem o pilar central desta edição e que se usasse a promoção adicional à disposição para promover estas obras e chegar ao maior número de pessoas possível. Ajudou que o feedback do público tivesse sido muito positivo quando exibimos o ciclo Mestres Japoneses Desconhecidos I

Um dos critérios principais é exibir filmes que não tenham estreado no Funchal e nesta segunda parte da programação procurei que os filmes cumprissem isso e que comunicassem de certa forma entre si e com o ciclo. Acho que em todos os filmes há um olhar feminino sobre questões que me parecem extremamente pertinentes e que apresentam uma abordagem única (sem falar na óbvia qualidade artística das obras) pelas suas autoras. Apesar das limitações da programação, procurei tematicamente ter diversidade e universalidade nas lutas das protagonistas, achando importante que essas lutas não se restringissem a uma época específica. Procurei algum distanciamento temporal entre elas. Começamos na década de 60 com “Daises” e acabamos em 2020 com “Never Rarely Sometimes Always”. 

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Daisies (Vera Chytilová, 1966)

Uma das coisas que gostaria de conseguir transmitir é a sensação que há muito trabalho a fazer. Noutro formato teria sido possível pensar as coisas de outra forma, mas neste e em torno destas obras da Kinuyo Tanaka pareceu-me fazer sentido assim. Vamos ver como corre e qual será o feedback do público.

O festival apresentará 4 obras de Kinuyo Tanaka, e receberá o investigador Miguel Patrício [para apresentar a palestra intitulada “Quem és tu, Kinuyo Tanaka?”], que foi um dos responsáveis por trazer o integral da cineasta nipónica ao circuito comercial nacional. Gostaria que me falasse destes gestos que vão além da distribuição convencional, e enquanto coordenador de um festival, os desafios que estes filmes (e outros) possuem para vingar nas telas além do ambiente de festival de cinema?

Só posso (tentar) responder a esta questão refletindo sobre a situação particular da região. Não me sinto habilitado a tentar responder acerca desses desafios em Portugal Continental apesar de ter uma ideia de como as coisas correm por aí. Não temos festivais a “roubar” público às salas porque a realidade local é outra. Quando os festivais que já existiram no Funchal tinham antestreias, os filmes regra geral não estreavam cá depois.

Simplesmente não havia espaço para cinema, excepto animação e blockbusters. Durante algum tempo, por exemplo o Madeira Film Festival que decorria uma semana por ano, era a única hipótese de quem queria ver este cinema poder fazê-lo. Um dos desafios principais é fazer com que as instituições locais repensem a forma como pensam o cinema. Aqui parece-me que primeiro se pensa no impacto económico, depois no turístico, depois ainda virá certamente o educativo e o social (a arte pela arte parece-me ser um conceito alienígena por estas bandas) antes de se pensar no impacto cultural. Creio ser essencial que certas instituições (que têm poder/dever para apoiar, dinamizar e divulgar) comecem a ver o cinema como um acto de cultura e isso infelizmente não me parece que seja o caso.

Mas ainda assim no que diz respeito a desafios, acho que temos é de olhar ao espelho. Continuo a achar que o grande problema é a falta de curiosidade do público. Acho que há um grupo pequeno de pessoas a trabalhar muito para distribuir filmes fora dessa distribuição convencional, tal como há um grupo pequeno de críticos a trabalhar muito, a escrever e a fomentar discussões muito importantes sobre estas obras e que do outro lado há uma enorme massa de pessoas que só quer ver aquilo que conhecem e aquilo que já viram e que não parecem minimamente cientes das discussões que este cinema tem para oferecer.

A importância de eventos cinematográficos deste género fora, além das metrópoles, do Portugal continental?

A insularidade é uma coisa tramada, e não duvido que seja equivalente ao que ocorre fora das grandes cidades no resto do país. Um madeirense ir a um festival de cinema tem custos astronómicos. É um luxo. E por vezes não tem hipótese de ver os filmes de outra forma. E acho que não devia ser assim. O streaming devia ser um último recurso, ou um complemento, e nunca a única solução possível. Acho importantíssimo e perfeitamente exequível que houvesse articulação entre entidades locais e alguns desses festivais de forma a que se tornasse mais fácil para os madeirenses (e todos aqueles de certa forma isolados geograficamente) de acederem a esses eventos, por exemplo através de extensões. E tenho a certeza que haveria público, se as coisas fossem feitas com discernimento, em locais onde estivessem garantidos conforto e qualidade de projecção e onde se colocasse em primeiro lugar o impacto cultural das iniciativas e não deixando o imperativo económico dominar. Acho que esse investimento teria repercussões brutais a todos os níveis.

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The Eternal Breasts / Para Sempre Mulher (1955)

Ambições para o futuro? Quais outros signos a explorar em eventuais novas edições do Screening Funchal Festival?

Conseguir mais apoios do que temos seria muito benéfico e iria permitir eventos com outros formatos (cineconcertos por exemplo) e trazer mais realizadores e outros convidados que pudessem enriquecer de alguma forma a oferta existente, porque esse contacto faz-nos falta e acho que é importante. Não sei, no entanto, se poderia classificar esse desejo de uma ambição para o futuro. É que já lá vão 6 anos e o reconhecimento ao que tem sido feito nestes anos geralmente vem de fora. Temas a explorar? Anteriormente referi a falta de curiosidade e como reação a isso, estou constantemente à procura de algo que provoque uma reação (boa ou má) nas pessoas. 

Gostava de num futuro próximo me focar no género de terror, que me parece ter muito má reputação em Portugal (incluindo na própria crítica), e mostrar que é um género com uma grande variedade e riqueza cinematográfica, como todos os anos o festival MOTELx bem nos mostra. Para o ano, havendo uma 3º edição do festival gostaria imenso de dedicar um ciclo ao John Waters. Estou convencido que o “Pink Flamingos”, em exibição articulada com as escolas secundárias, universidade e decisores políticos pode ser a chave para despoletar não só uma renovação de público em massa aqui no Funchal como para nos desbloquear novas formas de apoio financeiro.

A despedida da Mãe

Hugo Gomes, 12.03.14

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Věra Chytilová

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Fruit of Paradise (Věra Chytilová, 1970)

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Daisies (Věra Chytilová, 1966)

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Pearls of the Deep (Věra Chytilová, Jiří Menzel, Jaromil Jireš, Jan Němec, Evald Schorm, 1966)

Despedimo-nos da rainha do surreal, do abstrato, do ativismo, da feminilidade, do político, do transgressivo, das “margaridas” e das mesas postas, do cinema sobretudo, e como essa arte é a sua determinada linguagem. Věra Chytilová, a mulher, a mãe do novo cinema checo, parindo estéticas e nutrindo amor pela luta de câmara na mão. Chytilová, sempre!

Věra Chytilová (1962 – 2011)