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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Reprodução interdita

Hugo Gomes, 15.09.22

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

A Man” abre e fecha sob a atenta presença de “La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced", o célebre quadro da autoria de René Magritte, o qual vislumbramos um homem de costas voltadas ao espectador mas voltado a um espelho que somente reflete as suas costas (a imagem unicamente vista por nós daquele sujeito). A sua identidade é um puro mistério aos olhos do lado de lá da “quarta parede”. 

Uma brincadeira que em tempos Samuel Beckett em cumplicidade com Alain Schneider e o clown Buster Keaton colocaram em prática - “Film” (1965) - emanando a dominância do espectador perante as figuras cinematográficas o qual cruzariam acidentalmente o seu olhar com a audiência [tenebrosa]. Do outro lado, em memória a Godard - o hoje desaparecido - Belmondo falava para com o público descontraidamente natural, o desejo não é o de ser a realidade de um filme, mas antes falsear um filme perante a realidade estabelecida. “Para quem estás a falar?” perguntaria a sua pendura Anna Karina, deslocada daquele comportamento errático em “Pierrot Le Fou” (1965). “Para a audiência”, respondeu o nosso Ferdinand, o Pierrot batizado por improviso. 

Porém, voltando a Magritte, a pintura ignora o seu voyeur, prosseguindo no mistério inabalável da sua identidade. Quem é aquele homem? A génese? O seu intermediário? O seu fim? Sabemos à posteriori, de que se trata de um retrato do poeta e patrono Edward James, porém, a realidade do quadro oculta essa informação, o que vemos nesse reflexo (onde um livro de Edgar Allan Poe pousado na bancada é devidamente refletido), é uma identidade performativa, como se a identidade não fosse outra ‘coisa’, um jogo em plena construção. 

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"La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced" (René Magritte, 1937)

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"Film" (Samuel Beckett & Alain Schneider, 1965)

Em “A Man” de Kei Ishikawa, o quadro serve para subliminarmente recordamos o quão maleável é a questão identitária, desde o seu refúgio aos parâmetros sociais, contrariando uma certa ideia regida pelo senso comum ou pelas sociedades panópticas (cada gesto nosso é monitorizado por uma entidade hierarquicamente superior), por outras palavras somos aquilo a que somos impostos, e porque não contrariar isso? O filme parte como um thriller, um mistério ocorrido após uma viúva (Sakura Andô, “The Shoplifters”) aperceber que o seu marido não era bem aquilo que se dizia ser, não um “simples” segredo, e sim toda uma figura. Entretanto, um advogado (Satoshi Tsumabuki, “The World of Kanako”) é contratado e parte numa investigação daquele verdadeiro homem (Masataka Kubota, “First Love”). No seu caminho vai para lá da mera tarefa, tropeçando em questões levantadas à sua própria identidade, adquirindo compaixão por aquele “transgressor”. 

Existem momentos em que “A Man” parece descarrilar pela via de facto, uma delas é trazendo como dispositivo narrativo uma quid pro quo à moda de “The Silence of the Lambs”, perpetuando respostas instantâneas ao suposto "whodunit" (neste caso exerço a criatividade e o apelido formalmente de “whoishe”). O outro elemento fragilizado advém da passagem de testemunho, desta feita de “protagonismo”, colocando a família enviuvada e órfã (o nosso tapete de entrada para a narrativa) para segundo plano, com isto dissipando os seus dilemas existenciais em contacto com aquele imbróglio identitário (“o teu apelido pertence a um homem que não existe”). 

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

Ora cortado o vínculo emocional, “A Man” apronta-se a catalisar o dito tema da identidade com pequenos pontos de fuga, sugestões para a elevação do seu discurso, como por exemplo a inserção da arte dos condenados à morte, indicado ao não-serviço de absolvição de culpas mas antes para convidar o espectador a conhecer intimamente o seu artista (um tratado da sua própria vivência). Nessa possibilidade, a artificialidade da identidade esconde uma cerne genuína, impossibilitada de metamorfosear perante os nossos estímulos e vontades. Será essa a verdadeira identidade, ou é somente a chamada existência, o qual devemos desassociá-las e emancipar esta última de qualquer padrão sócio-cultural? 

Obviamente que o filme não capta respostas, nem as queremos. como "Rashomon” de Akira Kurosawa e mais tarde “The Third Murder” de Hirokazu Koreeda que remexem no conceito de ”verdade”, arrancando do seu absolutismo (“o que é a verdade?”, ou “é apenas uma questão de perspetiva?”), “A Man” provoca esse turbilhão conceptual desafiando as suas sólidas bases na nossa sociedade. Já Magritte, o seu último “cameo” na obra, é um memorando do quão possível é essa performatividade em relação à identidade. Recado? Não somos escravos da mesma.

Hitler por um dia ...

Hugo Gomes, 12.09.22

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Encaremos a hipotética “Terceira Guerra Mundial” como uma fantasia post-it, relembrando a facilidade com que a História se repete e de que maneira as utopias não são mais que meras ilusões ditadas por otimistas delirantes. O título desta sexta longa-metragem do iraniano Houman Seyyedi emana esse lado fantasmagórico, um cenário pós-apocalíptico apenas residido numa cultura de medo, cuja possibilidade está a um mero passo da Humanidade e ao mesmo tempo soa-nos longínquos perante os avisos da Memória (a “Terceira Guerra Mundial” é um grito de quem está à beira de precipício, ora salta, ora cede ao medo de cair). Ou seja, não encontramos aqui nada de bélico ou de conflito global que nos incute essa apontada miragem, o que extraímos é a percepção e através de tal uma metamorfose gradual de um protagonista embarcado no desespero do seu meio, “imperativamente” conduzido a um papel crucial numa encenação histórica. 

Desta forma seguimos Shakib (Mohsen Tanabandeh, que vimos bem representado em “A Hero” de Farhadi), um homem oscilando entre precaridades e sonhos inúteis, que consegue um trabalho enquanto figurante numa produção sobre o Holocausto. Shakib torna-se, por momentos, num judeu “faz-de-conta”, condenado a percorrer uma pista de horrores de arame farpado e câmaras de gás, tudo em nome da ficção, observado atentamente por “cruzes suasticas” e um lider de expressões rochosas. Contudo, o “vento mudou de curso”. Devido a um acidente, o protagonista de tal filme - o “Hitler requisitado” - é obrigado a afastar-se, deixando a produção à mercê de uma nova e rápida contratação. Entretanto, o realizador nota em Shakib algo, possivelmente as expressões faciais necessárias para o seu retrato histórico, “resgatando-o” da mera “plebe” da figuração e o posicionando a um destacável holofote. Shakib terá assim que vestir a pele do “impostor”, jogando-se no body double deste igualmente hipotético símbolo do Mal. Com isto vai metamorfoseando, subtilmente, graças à encarnação imposta. E quando a vida do mesmo, literalmente, a persegue, encurralando-o num alarmismo emocional. A ficção funciona como um exemplo a seguir e a realidade é nos invocada sob um selo de “déjà vu”, e tal, consolida-se num final imperdoável. 

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A “Solução Final” de uma guerra que ainda não chegou nem saberemos se irá chegar. Serão as “histórias do papão” a fazer caso? Mas esta guerra, seja terceira, primeira ou derradeira, nasce dentro de nós, neste caso, o protagonista que vai crescendo até se tornar num protótipo de um megalómano ditador. Dá vontade de estampar aquela frase atribuída (ou falsamente atribuída) a Edmund Burke, hoje vulgarizada em tempos de redes sociais e de cumplicidades nas palavras de outros - “O Mal impera porque porque os homens de bem nada o fazem para impedir” - neste caso o “Mal” nasce pela ausência de empatia ao próximo e pelo próximo, assim como o distanciamento económico-social, ingredientes que semeiam “monstros”, incompreendidos ou não, revanchistas para com as injustiças a que foram sujeitas anos a fios. 

Sentimos compaixão por Shakib? Não, até porque Houman Seyyedi estabelece uma distância entre o espectador e este protagonista em descida infernal ao seu desconhecido interior, um homem de medos, de hesitações, delator, mentiroso, demasiado ambíguo para merecer a nossa confiança. Encontramo-nos na sua presença, mas nunca na sua companhia. Mohsen Tanabandeh trabalha esse Shakib numa atuação underacting, fortalecendo esse repelente de intimidade, um “homem-bomba” prestes a explodir. Ou será uma ameaça? Como a “Terceira Guerra” é nos dias de hoje. Um medo criado para impedir “explosões”. E quanto a nós, que ditamos internamente a mesma “cantiga”, cultivando esse receio de algo global como uma atração às nossas próprias guerras, iminentes conflitos prestes a desencadear. “World War III” é esse estudo de personagem, posicionando o indivíduo na sociedade sem nunca o interpretar e reinterpretar. 

Vindo do Irão, onde comumente são denúncias políticas, ora embelezadas em metáforas, ora escancaradas na mensagem óbvia, surge-nos uma tragédia pessoal e sobretudo global. Seyyedi deve ter apertado a mão de Asghar Farhadi quanto ao território moral a explorar e a incitar (o mencionado “A Hero” joga pelos mesmos dilemas se formos a ver bem), mas vai mais longe do que a somente provocação.

 

*Filme vencedor da secção Orizzonti da 79ª edição do Festival de Veneza

Uma mulher em pedaços ...

Hugo Gomes, 05.01.21

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Sean (Shia LaBeouf), um construtor civil com apetência para pontes, conta à sua amante em tom de confissão a história da terceira maior ponte suspensa dos EUA, a de Tacoma, e como esta misteriosamente desabou. Segundo ele, após ter verificado toda a estrutura, cabos, pilares, condições atmosféricas, a razão encontrada para a queda foi a ressonância, a energia armazenada que se manifesta de forma natural. Este pedaço de monólogo, aparentemente sem sentido, invoca-se como uma metáfora arquitetónica das “pontes” e as suas vitalidades nas relações afetivas.

No caso de Sean, a relação com a sua mulher Martha (Vanessa Kirby) está prestes a desmoronar-se. Ao espectador é evidente esse gradualmente afastamento entre as duas margens, até porque a ressonância aí encontrada é a de um sonho desvanecido, o de constituir família, que ficou comprometida com uma tragédia. Tal como a personagem de LaBeouf, o húngaro Kornél Mundruczó é um realizador de capacidades dramaturgas com apetência por outras “pontes”, neste caso as dos ensaios performativos, com a intenção de causar uma espécie do "teatro do real".

Obviamente que a encenação, essa farsa ficcional, é o seu trabalho de compostura, mas o que prevalecem são os seus gestos de representação para com essa realidade, através do seu mundo (Mundruczó navega entre o cinema e o teatro) e das ditas e artísticas instalações. Neste caso, o atrativo é a sensação simulada de um parto e toda a agonia trazida por esse trabalho doloroso e demorado, rompido por uma luz de alegria e, subitamente, choque, pânico e luto.

Nesta cena sem cortes e com uma câmara empenhada em captar os momentos num jeito guerrilheiro e aflito, Vanessa Kirby, atriz que o grande público reconhecerá pela interpretação da Princesa Margarida nas duas primeiras temporadas de "The Crown" e das andanças de "Mission Impossible: Fallout" e “Hobbs & Shaw”, impõe-se silenciosamente e torna-se na força motora desta situação extrema. De tal forma que o resto da narrativa ambiciona pela sua dor, muda, incompreensível e oculta.

Pieces of a Woman” é um claro primo cinematográfico de um "Who 's Afraid of Virginia Woolf?” (Mike Nichols, 1966) ou “Blue Valentine” (Derek Cianfrance, 2010). Tal como estes, é um filme sobre rupturas e desejos passados e convertidos em ódios impagáveis. Não sendo um exemplar pleno e consciente do sofrimento que causa às suas personagens (por diversas vezes cede aos lugares melodramáticos de cordel ou da fácil comoção, como a vulgarização do Holocausto, inglória temática para servir uma potente Ellen Burstyn), Kornél Mundruczó consegue em meias estações erguer a sua ponte. E nela, a ressonância, essa força, manifesta-se independente e vigorosa.

Listen: Há filmes que simplesmente precisam ser ouvidos com atenção

Hugo Gomes, 09.09.20

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Um filme-denúncia dissecado por Ken Loach e todos esses cantos e recantos do cinema social. “Listen”, que erradamente tem servido de arma instrumental para guerras antigas, é um objeto curioso das suas próprias desgraças, num desencanto abalável que contrai momentos de pura emoção (muitos deles sustentados pela melhor das melhores Lúcias Moniz). É simples, digamos, sem espinhas, mas apoiado por uma coluna vertebral frágil e mesmo assim seguro da sua força. Curioso para ver esta visão à inglesa aplicada mais vezes no nosso cinema, nem que seja o seu caráter ativista e sem rodeios, sem floreados e à sua vontade, cru. Há qualquer ‘coisa’ em Ana Rocha.

Suspirando por grandiloquências

Hugo Gomes, 02.09.18

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Luca Guadagnino quis chocar, referencia os óbvios desse universo, mas ainda lhe falta muita papa. Aliás, Suspiria, a sua visão, é um filme que condensa todo esse desejo para providenciar o prolixo e sobretudo a falta de estrutura narrativa. É um objeto de camadas gordurosas, o que resulta num exercício de estilo ocasional e uma trapalhona mescla por vezes. Entre o amor e o ódio, Guadagnino ficou-se pelo marketing e o subliminar gesto politizado.

O novo Taxi Driver?

Hugo Gomes, 02.09.17

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A fragmentação espiritual leva First Reformed aos caminhos reconhecíveis de Taxi Driver. Contudo, se o filme de 1976 resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader na realização remete-nos ao ativismo dos sábios. Eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então). E daqui fala um anterior cético que tornou-se num crente perante a descrença absoluta de Ethan Hawke. Devastador e ousado.