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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Filme das Feias-Artes

Hugo Gomes, 25.01.24

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Numa Lisboa steampunk-retrofuturista, com pasteis de nata em abundância e um fado entoado em cada borda, Emma Stone, aqui a frankensteiniana Bela, criatura de fabricos e remendos, procura nestes lugares “exóticos” um elo que a une à humanização que tanto ouviu discursar na sua residência / esconderijo em Londres. O que vai encontrar, não só na imaginária capital portuguesa, como também algures no Mediterrâneo e numa Paris lasciva e sexualmente libertária, são “pobre criaturas” em vestas humanas, fealdades ou beldades, heroicas ou vilãs, corajosas ou cobardes, somente viventes sem noção. 

A adaptação do  bestseller de Alasdair Gray resulta nas mãos do helénico Yorgo Lanthimos numa comédia negra e algo burlesca com refinações existencialistas, pomposa num desfile de grostecidade e monstruosidades, o filme entra em conflito com a própria definição generalizada do Belo, aliás Bela, esse atalho, o nome, mantém-se na protagonista como uma provocação, e se essa beldade, seja estética ou cromática, validada numa sociedade como a de hoje, que perante tantas obras das mais diferentes artes, definidas em absoluto, caiu numa banalidade ou num axioma embutido. O conceito de Belo, associa-se a uma resposta harmónica aos nossos sensos e sentidos, há uma exaltação desse apaziguamento perante determinada melodia, imagem ou coloração, ou até na esquadra renascentista que surge ordenado pela régua e a sua simetria, o Belo está na ordem (daí um filósofo ultra-conservador como Roger Scruton tentar arregimentar uma validação da beleza e lamentar a sua decadência no século XX e XXI), e quanto ao oposto, a desordem, tendemos em encaixá-lo no desengonçado, no feio, nas feias-artes. “Poor Things” não nos leva a reflexões filosóficas ou esmiuçamento de qualquer género, só que a sua não-graciosidade, a sua não-subtileza, a reação dela extraída, faz-nos conduzir a esse dilema do belo e do feio. Ou será que perante esta modernidade que nos acompanha, o feio torna-se num novo belo e o belo no obsoleto? 

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Contudo, há aqui conflito devido à escola de Lanthimos, realizador e argumentista dotado em distorcer a sua realidade em semi-distopias várias (basta ver o caminho percorrido de “Canino” a “The Lobster” e assim sequencialmente para entendermos essa marginalização das leis básicas da “narrativa física”, diremos) e igualmente aproximando duma estética kubrickiana, perfeccionista e imperativamente esmagadora com tudo o resto. “Poor Things” tem essas tendências que nos levam a uma igualmente liberdade cénica ou de uma fantasia molhada borisviana com cruzamentos de um vitoriano orgásticamente feliz. Só as opções de como filmá-la leva-nos a essa bizarra aliança ao grotesco da sua narração e argumentação, a cor, perde ocasionalmente, tentando, previsivelmente criar um espaço temporal (e mimetizando os 'passos' de uma criança que vai reconhecendo gradualamnete a coloração do seu redor), e cujas as angulares histriónicas, a profundidade vertiginosa e embriagada, tendem em incentivar uma repudia imediata. Lanthimos está encarregue de repudiar-nos, e não falamos do “body horror” bastardamente cronenberguiano que por vezes sugere nestas imagens da bestialidade ou da Bela [personagem] a caminho da sua empatia (ou o pragmatismo que leva à sua anulação), mas na sua concepção enquanto filmica. 

Estranhamente, esta obra do realizador espiritualmente vai ao encontro de um dos propósitos de “Canino”, que é o de desejar não ser amado, portanto acredito que nesse sentido, “Poor Things” é mais desafiante do que se propriamente se vai inferir na cinefilia ainda detida desse conforto visual. Se isso é bom ou não, cabe ao espectador posicionar-se nesta questão de belo ou nada …

"Eu sou o Capitão"

Hugo Gomes, 23.11.23

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Em junho de 2023, lamentavelmente comum no Mediterrâneo, mais uma embarcação de migrantes oriundos do Norte de África (maioritariamente) naufragou, resultando na perda de 800 vidas. A notícia, relegada a um rodapé pelos meios de comunicação ocidentais, rapidamente cedeu lugar à busca pelo submersível Titan no Atlântico Norte, operado pela Ocean Gate com 5 tripulantes, abastados entre eles, devemos salientar, com o intuito de observar as ruínas do Titanic. “Morreram todos”, foi desta e criticada forma que o pivô José Rodrigues dos Santos abriu o telejornal da RTP, e é com esta ruptura que desvendamos o desfecho desses “esforços”. Ou seja, enquanto chorávamos por cinco, 800 vidas não obtiveram tamanha solidariedade, apoio nem sequer “buscas incansáveis” do que restava daquela gente. O Mar Mediterrâneo, diante da crise migratória, havia-se convertido num cemitério marítimo, dessacralizado, e distanciado das nossas sensibilidades

Em setembro deste mesmo ano, em plena Competição do Festival de Veneza, Matteo Garrone (“Gomorra”, “Dogman”) apresentava o seu último trabalho - “Il Capitano” - filme que seguia a jornada de um jovem senegalês seduzido pelas “promessas do Primeiro Mundo”. Previsivelmente, a odisseia não será de todo feliz, e o rapaz, cuja inocência torna-se no maior adversário e igualmente aliado, é confrontado com os bastidores do “sonho europeu”, passando pela Níger, ao deserto do Saara e à prisão libanesa até chegar por fim, ao obstáculo marítimo. 

Etapas de sofrimento que Garrone ameniza por via de um tom fabulista (resquícios do seu “Il racconto dei racconti”, 2015), presente em delírios, miragens, sonhos ou escapes do protagonista, mas o pesado daquele cenário mantém-se como pintura de parede, relembrando ao espectador da rota dos infortúnios, dos que tentam alcançar a mundanidade que nós europeus nascemos com direito garantido. Desde o seu primeiro passo, o mesmo “passageiro” [leia-se, espectador], prevê na sua “bola de cristal” os desdobramentos deste sonho, as consequências, os antagonistas e o clímax, esse, justificando o título, o qual, numa estratégia burlona em que o nosso protagonista (mais uma vez, inocência como palavra de ordem) assume-se “capitão” de uma sobrelotada embarcação, cegamente rumo a Itália

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O “caminho marítimo” é desgostoso, sofrido, miserabilista, mas é a partir daí, com “terra à vista”, que Matteo Garrone joga o seu privilégio num imprevisto “conto de privilegiados”. Considerando a narrativa comum, ou a ausência dela,, o destino trágico de milhares de “aventureiros”, o realizador tentou prevalecer uma fantasia, um “happy-ending” abrupto ou inconcluso em jeito de manifesto à miserabilidade que estes “contos” trazem. Poderá ser uma boa intenção, servindo do Cinema como escape da nossa realidade, ao mesmo tempo trazendo consigo uma satisfação burguesa (contra a vulgarização da tragédia) e, consequentemente, uma romantização daquela situação em prol do nosso conforto da sensibilidade. É um italiano a dizer-nos, sobretudo, que “nós” europeus estamos absolvidos da culpabilização da jornada destes “peregrinos”, enquanto que na realidade, nós somos os traidores dos seus sonhos. 

Il Capitano” é, em todos os aspectos, um filme verdadeiramente competente, seja tecnicamente, performativo ou na descrição da sua “realidade”, distanciando-se da presença branca (não há uma única ‘personagem’ europeia, levando-nos a uma história inteiramente de quem viaja). Contudo, incentiva uma hesitação, à banalização trágica que tanto critica e igualmente à tragédia banalizada que emana enquanto espetáculo de emoções.

O Pinochet vai nu

Hugo Gomes, 22.09.23

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No decorrer do Festival de Veneza, deparei-me com um texto, supostamente crítico, em que um jovem entusiasta presente no Lido referia múltiplas vezes, na sua impressão de “El Conde” de Pablo Larraín, o desconhecimento pela figura histórica de Augusto Pinochet. O facto de esse mesmo texto estar integrado num site que se apresenta como cobertura de um festival de cinema levanta dúvidas quanto à seriedade da crítica de cinema nos dias de hoje, ou até mesmo reflete na opção de alguns meios de comunicação optarem pela quantidade ao invés da qualidade dos seus “escribas”. Porém, são questões e debates fora deste parâmetro, mas é a partir desse pormenor, cada vez mais frequente personalidades históricas marcantes do século passado encontrarem nestas novas gerações uma certa abstração, contornos aproveitados por Larrain neste seu regresso ao Chile, em mais um “e se” a fazer sombra ao anterior “Neruda”, o qual reimaginava o poeta num policial à paisana.

Em “El Conde”, o realizador propõe uma hipotética, e sobretudo fantasiosa, história sobre a vida e morte do ditador, colocando-o nas vestes draculianas de um vampiro qualquer, ser nefasto e hediondo levitante noite fora em busca de corações frescos, solução única de preservação da sua imortalidade e rejuvenescimento. Uma metáfora fácil ao vampírico regime de Pinochet e à “seca” com que o país foi deixado após a despedida do Poder em 1990 (tendo falecido em 2006), deixando um legado, apoiado pelos EUA (deve-se sublinhar), de morte de milhares, corrupção e um golpe contra um governo democraticamente eleito na fatídica data de 11 de Setembro de 1973 (um outro cineasta chileno, Patricio Guzmán, possui um dos considerados documentários definitivos desse dia e das suas consequências - a trilogia “La batalla de Chile: La lucha de un pueblo sin arma” [1975 - 1979] - fica a recomendação). Portanto, não existe ciência nesta fantasia grotesca, Larrain, após Hollywood, volta ao ponto de partida munido de crucifixo e água benta, enfrentando, por fim, o “monstro” de frente. Desta vez, sem alusões, sem contextos históricos; uma sátira como a maior das estacas apontadas ao coração. 

Pinochet (Jaime Vadell, habitual colaborador do realizador) é uma anedota em forma de besta, envelhecido, velhaco e semi-desdentado, desejando a morte como “prego no caixão” ou o corpo a abarrotar de juventude da sua suposta carrasca (Paula Luchsinger). Já não é mais uma figura histórica; é, ao invés disso, uma criatura mitológica, nascida dos relatos incoerentes que só o seu espectro parece sobrevive no imaginário de todos; é o “papão” propriamente dito. Em outras palavras, Larrain esvaziou Pinochet, condizendo-o à estética do “espaçoso” que prevalece nos seus últimos trabalhos (enraizando uma ideia de vazio, ruinosa e algo esquecida pelo tempo, veja-se os “palacetes” artificializados de “Jackie” e de “Spencer”). Aqui, o “conde”, título inglório e blasfémico para quem cobiça realeza, é o “rei vai nu” num palacete decadente no seio de nenhures. Destino, esse, o do esquecimento, o pior que pode acontecer à sua ambição; eis o castigo de Pablo Larraín ao seu “nobre de lata”. Contudo, no limite do seu trajeto, entra mais um peão em cena, reforçando a intenção da obra, a de troçar do defunto (ou defuntos), a de acidamente distorcer figuras históricas em prol de uma causa, essa, a de despir simbolicamente o medo e, por consequência, uma ideologia. Infelizmente, “El Conde” vence como exercício, e esperneia por atenção enquanto obra política. 

Voltando ao ponto de arranque, se não sabem quem é Pinochet, não será com “El Conde” que vamos finalmente “aprender”, mas convém reafirmar que o Cinema não traz respostas; apenas nos inquieta com mais perguntas.

A Cuba que vemos ... de longe!

Hugo Gomes, 05.09.23

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Num momento, durante as preparações para um espetáculo de marionetas, o encenador e mentor guia a sua artista (e manipuladora dos fios desta "vida artificializada") de que o realismo (ou a atribuição do mesmo) é apenas um gesto que varia consoante a nossa perspetiva. Nesse aspecto, aponta o lugar do espectador daquela (ainda) proto-peça como o catalisador de quão coerentes (ou não) se tornarão os movimentos dos bonecos performantes. Retendo esta mesma indicação, sigo para o filme - "Los océanos son los verdaderos continentes" - da autoria do italiano Tommaso Santambrogio como uma questão de "lugar".

O próprio revela nas "notas de intenção" que a ideia do filme surgiu da sua impressão em Cuba, constatando o abandono social e arquitetural como um sinal dos tempos e da natureza do seu país. Ora, como bem se entende, não se trata aqui de uma perspetiva nativa, mas sim de um turista acidental encantado com a decadência exótica envolvente, e com isso espremendo uma narrativa com três fatias de personagens que culminaram em representações (suas) do estado de Cuba e dos seus respetivos habitantes. Não coloquemos aqui imposições morais que hoje apresentam a tendência da crítica de cinema contemporânea, mas é um facto que nos deparamos com uma visão de alguém nas filas de trás do imaginário auditório. Nesse sentido, Santambrogio, nesta sua primeira longa-metragem (uma curta de 2019 virada longa, deve-se salientar), é fiel a si próprio, mesmo que a sua visão esteja contaminada por referências (ou atalhos) de como representar a região em si, que não correspondem à experiência do seu vivente.

Faço então um parêntesis para narrar uma "aventura" minha em 2019, durante o Festival de Cinema de Jerusalém a decorrer na Cinemateca da cidade. Entrei numa discussão em relação ao filme "Roma" de Alfonso Cuarón, em que o meu parceiro de conversa "cuspia" ao ouvir alguém pronunciar apenas o título, acusando o trabalho do mexicano de ser falso para com a pobreza que retrata. Segundo ele, Cuarón embeleza a miséria humana, em contraposição com um cineasta quase antípoda - Wang Bing - que sob a sua crueza e crueldade mantinha-se fiel aos farrapos humanos que filmava. Contrapus, pensando no colombiano Luis Ospina e a sua rutura com o cinema miserabilista que havia concedido até se autoconscientizar como "vampiro" da "porno-miséria" (palavras suas... maravilhosas palavras suas), com uma questão ainda hoje sem resposta definitiva - como se deve filmar a pobreza?

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Depois deste aparte, regresso a "Los océanos son los verdaderos continentes" com o mote do manual da pobreza registada: o como e devemos proceder em relação a ela? Definitivamente, Santambrogio tomou algumas notas de Cuarón, não reproduzindo a magnificência dos planos conjuntos do mexicano e da ação em camadas (crime um filme dessa natureza estar na Netflix), mas induzindo um diálogo com o espaço/tempo, acima das suas personagens. É a perspetiva do italiano, cuja rusticidade e o abandono preencheram a sua imaginação enquanto estrangeiro, desviando-se da Cuba de postal (colorida e melódica), e incentivando a replicar o seu "gesto de realidade", neste caso, e buscando outra inspiração evidente (visto que colaborou em "Historya ni Ha"), com Lav Diaz, o de transformar o biótopo à sua frente (personagens, ações, espaços e tempos, a totalidade do "mise-en-scène") como um exorcismo da História contida e silenciosamente sintetizada.

O preto-e-branco serve novamente como apoio aos seus "mentores", mas por sua vez, o engajamento de Santambrogio é poeticamente temporal, aí Cuba, representada em três tempos (estados como bem entender, que traduzem em personagens de tramas paralelas), resume-nos como um tratado sociopolítico, o bastante para que a primeira sequência se indique, não um sonho (o "failsafe" desta realidade filtrada), mas sim um teatro geopolítico e absolutamente tectónico. A distância, não como um sentimento do seu enredo, mas de uma nação condenada ao remoto.

 

Filme de abertura da Giornate degli Autori do Festival de Veneza

Reprodução interdita

Hugo Gomes, 15.09.22

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

A Man” abre e fecha sob a atenta presença de “La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced", o célebre quadro da autoria de René Magritte, o qual vislumbramos um homem de costas voltadas ao espectador mas voltado a um espelho que somente reflete as suas costas (a imagem unicamente vista por nós daquele sujeito). A sua identidade é um puro mistério aos olhos do lado de lá da “quarta parede”. 

Uma brincadeira que em tempos Samuel Beckett em cumplicidade com Alain Schneider e o clown Buster Keaton colocaram em prática - “Film” (1965) - emanando a dominância do espectador perante as figuras cinematográficas o qual cruzariam acidentalmente o seu olhar com a audiência [tenebrosa]. Do outro lado, em memória a Godard - o hoje desaparecido - Belmondo falava para com o público descontraidamente natural, o desejo não é o de ser a realidade de um filme, mas antes falsear um filme perante a realidade estabelecida. “Para quem estás a falar?” perguntaria a sua pendura Anna Karina, deslocada daquele comportamento errático em “Pierrot Le Fou” (1965). “Para a audiência”, respondeu o nosso Ferdinand, o Pierrot batizado por improviso. 

Porém, voltando a Magritte, a pintura ignora o seu voyeur, prosseguindo no mistério inabalável da sua identidade. Quem é aquele homem? A génese? O seu intermediário? O seu fim? Sabemos à posteriori, de que se trata de um retrato do poeta e patrono Edward James, porém, a realidade do quadro oculta essa informação, o que vemos nesse reflexo (onde um livro de Edgar Allan Poe pousado na bancada é devidamente refletido), é uma identidade performativa, como se a identidade não fosse outra ‘coisa’, um jogo em plena construção. 

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"La réproduction interdite” / “Not to be Reproduced" (René Magritte, 1937)

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"Film" (Samuel Beckett & Alain Schneider, 1965)

Em “A Man” de Kei Ishikawa, o quadro serve para subliminarmente recordamos o quão maleável é a questão identitária, desde o seu refúgio aos parâmetros sociais, contrariando uma certa ideia regida pelo senso comum ou pelas sociedades panópticas (cada gesto nosso é monitorizado por uma entidade hierarquicamente superior), por outras palavras somos aquilo a que somos impostos, e porque não contrariar isso? O filme parte como um thriller, um mistério ocorrido após uma viúva (Sakura Andô, “The Shoplifters”) aperceber que o seu marido não era bem aquilo que se dizia ser, não um “simples” segredo, e sim toda uma figura. Entretanto, um advogado (Satoshi Tsumabuki, “The World of Kanako”) é contratado e parte numa investigação daquele verdadeiro homem (Masataka Kubota, “First Love”). No seu caminho vai para lá da mera tarefa, tropeçando em questões levantadas à sua própria identidade, adquirindo compaixão por aquele “transgressor”. 

Existem momentos em que “A Man” parece descarrilar pela via de facto, uma delas é trazendo como dispositivo narrativo uma quid pro quo à moda de “The Silence of the Lambs”, perpetuando respostas instantâneas ao suposto "whodunit" (neste caso exerço a criatividade e o apelido formalmente de “whoishe”). O outro elemento fragilizado advém da passagem de testemunho, desta feita de “protagonismo”, colocando a família enviuvada e órfã (o nosso tapete de entrada para a narrativa) para segundo plano, com isto dissipando os seus dilemas existenciais em contacto com aquele imbróglio identitário (“o teu apelido pertence a um homem que não existe”). 

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"A Man" (Kei Ishikawa, 2022)

Ora cortado o vínculo emocional, “A Man” apronta-se a catalisar o dito tema da identidade com pequenos pontos de fuga, sugestões para a elevação do seu discurso, como por exemplo a inserção da arte dos condenados à morte, indicado ao não-serviço de absolvição de culpas mas antes para convidar o espectador a conhecer intimamente o seu artista (um tratado da sua própria vivência). Nessa possibilidade, a artificialidade da identidade esconde uma cerne genuína, impossibilitada de metamorfosear perante os nossos estímulos e vontades. Será essa a verdadeira identidade, ou é somente a chamada existência, o qual devemos desassociá-las e emancipar esta última de qualquer padrão sócio-cultural? 

Obviamente que o filme não capta respostas, nem as queremos. como "Rashomon” de Akira Kurosawa e mais tarde “The Third Murder” de Hirokazu Koreeda que remexem no conceito de ”verdade”, arrancando do seu absolutismo (“o que é a verdade?”, ou “é apenas uma questão de perspetiva?”), “A Man” provoca esse turbilhão conceptual desafiando as suas sólidas bases na nossa sociedade. Já Magritte, o seu último “cameo” na obra, é um memorando do quão possível é essa performatividade em relação à identidade. Recado? Não somos escravos da mesma.

Hitler por um dia ...

Hugo Gomes, 12.09.22

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Encaremos a hipotética “Terceira Guerra Mundial” como uma fantasia post-it, relembrando a facilidade com que a História se repete e de que maneira as utopias não são mais que meras ilusões ditadas por otimistas delirantes. O título desta sexta longa-metragem do iraniano Houman Seyyedi emana esse lado fantasmagórico, um cenário pós-apocalíptico apenas residido numa cultura de medo, cuja possibilidade está a um mero passo da Humanidade e ao mesmo tempo soa-nos longínquos perante os avisos da Memória (a “Terceira Guerra Mundial” é um grito de quem está à beira de precipício, ora salta, ora cede ao medo de cair). Ou seja, não encontramos aqui nada de bélico ou de conflito global que nos incute essa apontada miragem, o que extraímos é a percepção e através de tal uma metamorfose gradual de um protagonista embarcado no desespero do seu meio, “imperativamente” conduzido a um papel crucial numa encenação histórica. 

Desta forma seguimos Shakib (Mohsen Tanabandeh, que vimos bem representado em “A Hero” de Farhadi), um homem oscilando entre precaridades e sonhos inúteis, que consegue um trabalho enquanto figurante numa produção sobre o Holocausto. Shakib torna-se, por momentos, num judeu “faz-de-conta”, condenado a percorrer uma pista de horrores de arame farpado e câmaras de gás, tudo em nome da ficção, observado atentamente por “cruzes suasticas” e um lider de expressões rochosas. Contudo, o “vento mudou de curso”. Devido a um acidente, o protagonista de tal filme - o “Hitler requisitado” - é obrigado a afastar-se, deixando a produção à mercê de uma nova e rápida contratação. Entretanto, o realizador nota em Shakib algo, possivelmente as expressões faciais necessárias para o seu retrato histórico, “resgatando-o” da mera “plebe” da figuração e o posicionando a um destacável holofote. Shakib terá assim que vestir a pele do “impostor”, jogando-se no body double deste igualmente hipotético símbolo do Mal. Com isto vai metamorfoseando, subtilmente, graças à encarnação imposta. E quando a vida do mesmo, literalmente, a persegue, encurralando-o num alarmismo emocional. A ficção funciona como um exemplo a seguir e a realidade é nos invocada sob um selo de “déjà vu”, e tal, consolida-se num final imperdoável. 

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A “Solução Final” de uma guerra que ainda não chegou nem saberemos se irá chegar. Serão as “histórias do papão” a fazer caso? Mas esta guerra, seja terceira, primeira ou derradeira, nasce dentro de nós, neste caso, o protagonista que vai crescendo até se tornar num protótipo de um megalómano ditador. Dá vontade de estampar aquela frase atribuída (ou falsamente atribuída) a Edmund Burke, hoje vulgarizada em tempos de redes sociais e de cumplicidades nas palavras de outros - “O Mal impera porque porque os homens de bem nada o fazem para impedir” - neste caso o “Mal” nasce pela ausência de empatia ao próximo e pelo próximo, assim como o distanciamento económico-social, ingredientes que semeiam “monstros”, incompreendidos ou não, revanchistas para com as injustiças a que foram sujeitas anos a fios. 

Sentimos compaixão por Shakib? Não, até porque Houman Seyyedi estabelece uma distância entre o espectador e este protagonista em descida infernal ao seu desconhecido interior, um homem de medos, de hesitações, delator, mentiroso, demasiado ambíguo para merecer a nossa confiança. Encontramo-nos na sua presença, mas nunca na sua companhia. Mohsen Tanabandeh trabalha esse Shakib numa atuação underacting, fortalecendo esse repelente de intimidade, um “homem-bomba” prestes a explodir. Ou será uma ameaça? Como a “Terceira Guerra” é nos dias de hoje. Um medo criado para impedir “explosões”. E quanto a nós, que ditamos internamente a mesma “cantiga”, cultivando esse receio de algo global como uma atração às nossas próprias guerras, iminentes conflitos prestes a desencadear. “World War III” é esse estudo de personagem, posicionando o indivíduo na sociedade sem nunca o interpretar e reinterpretar. 

Vindo do Irão, onde comumente são denúncias políticas, ora embelezadas em metáforas, ora escancaradas na mensagem óbvia, surge-nos uma tragédia pessoal e sobretudo global. Seyyedi deve ter apertado a mão de Asghar Farhadi quanto ao território moral a explorar e a incitar (o mencionado “A Hero” joga pelos mesmos dilemas se formos a ver bem), mas vai mais longe do que a somente provocação.

 

*Filme vencedor da secção Orizzonti da 79ª edição do Festival de Veneza

Uma mulher em pedaços ...

Hugo Gomes, 05.01.21

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Sean (Shia LaBeouf), um construtor civil com apetência para pontes, conta à sua amante em tom de confissão a história da terceira maior ponte suspensa dos EUA, a de Tacoma, e como esta misteriosamente desabou. Segundo ele, após ter verificado toda a estrutura, cabos, pilares, condições atmosféricas, a razão encontrada para a queda foi a ressonância, a energia armazenada que se manifesta de forma natural. Este pedaço de monólogo, aparentemente sem sentido, invoca-se como uma metáfora arquitetónica das “pontes” e as suas vitalidades nas relações afetivas.

No caso de Sean, a relação com a sua mulher Martha (Vanessa Kirby) está prestes a desmoronar-se. Ao espectador é evidente esse gradualmente afastamento entre as duas margens, até porque a ressonância aí encontrada é a de um sonho desvanecido, o de constituir família, que ficou comprometida com uma tragédia. Tal como a personagem de LaBeouf, o húngaro Kornél Mundruczó é um realizador de capacidades dramaturgas com apetência por outras “pontes”, neste caso as dos ensaios performativos, com a intenção de causar uma espécie do "teatro do real".

Obviamente que a encenação, essa farsa ficcional, é o seu trabalho de compostura, mas o que prevalecem são os seus gestos de representação para com essa realidade, através do seu mundo (Mundruczó navega entre o cinema e o teatro) e das ditas e artísticas instalações. Neste caso, o atrativo é a sensação simulada de um parto e toda a agonia trazida por esse trabalho doloroso e demorado, rompido por uma luz de alegria e, subitamente, choque, pânico e luto.

Nesta cena sem cortes e com uma câmara empenhada em captar os momentos num jeito guerrilheiro e aflito, Vanessa Kirby, atriz que o grande público reconhecerá pela interpretação da Princesa Margarida nas duas primeiras temporadas de "The Crown" e das andanças de "Mission Impossible: Fallout" e “Hobbs & Shaw”, impõe-se silenciosamente e torna-se na força motora desta situação extrema. De tal forma que o resto da narrativa ambiciona pela sua dor, muda, incompreensível e oculta.

Pieces of a Woman” é um claro primo cinematográfico de um "Who 's Afraid of Virginia Woolf?” (Mike Nichols, 1966) ou “Blue Valentine” (Derek Cianfrance, 2010). Tal como estes, é um filme sobre rupturas e desejos passados e convertidos em ódios impagáveis. Não sendo um exemplar pleno e consciente do sofrimento que causa às suas personagens (por diversas vezes cede aos lugares melodramáticos de cordel ou da fácil comoção, como a vulgarização do Holocausto, inglória temática para servir uma potente Ellen Burstyn), Kornél Mundruczó consegue em meias estações erguer a sua ponte. E nela, a ressonância, essa força, manifesta-se independente e vigorosa.

Listen: Há filmes que simplesmente precisam ser ouvidos com atenção

Hugo Gomes, 09.09.20

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Um filme-denúncia dissecado por Ken Loach e todos esses cantos e recantos do cinema social. “Listen”, que erradamente tem servido de arma instrumental para guerras antigas, é um objeto curioso das suas próprias desgraças, num desencanto abalável que contrai momentos de pura emoção (muitos deles sustentados pela melhor das melhores Lúcias Moniz). É simples, digamos, sem espinhas, mas apoiado por uma coluna vertebral frágil e mesmo assim seguro da sua força. Curioso para ver esta visão à inglesa aplicada mais vezes no nosso cinema, nem que seja o seu caráter ativista e sem rodeios, sem floreados e à sua vontade, cru. Há qualquer ‘coisa’ em Ana Rocha.

Suspirando por grandiloquências

Hugo Gomes, 02.09.18

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Luca Guadagnino quis chocar, referencia os óbvios desse universo, mas ainda lhe falta muita papa. Aliás, Suspiria, a sua visão, é um filme que condensa todo esse desejo para providenciar o prolixo e sobretudo a falta de estrutura narrativa. É um objeto de camadas gordurosas, o que resulta num exercício de estilo ocasional e uma trapalhona mescla por vezes. Entre o amor e o ódio, Guadagnino ficou-se pelo marketing e o subliminar gesto politizado.

O novo Taxi Driver?

Hugo Gomes, 02.09.17

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A fragmentação espiritual leva First Reformed aos caminhos reconhecíveis de Taxi Driver. Contudo, se o filme de 1976 resumia aos grunhos e ao seu ativismo algo anárquico, esta nova chance de Paul Schrader na realização remete-nos ao ativismo dos sábios. Eis a redenção encontrada de um autor que nunca se confirmou (até então). E daqui fala um anterior cético que tornou-se num crente perante a descrença absoluta de Ethan Hawke. Devastador e ousado.