Falando com Rebecca Zlotowski: "queria desesperadamente fazer um filme com sexualidade, prazer, paixão e barcos"
Rebecca Zlotowski / Foto.: Marie Rouge - Unifrance
A rapariga pode ser “fácil” como o título indica, mas o filme não o é. A francesa Rebecca Zlotowski demonstrou nos últimos tempos ser capaz de entregar um cinema diversificado inserido no universo feminino.
Depois da fantasia de “Planetarium”, onde trabalhou com estrelas do cinema (Natalie Portman e Lily-Rose Depp), a realizadora parte agora de uma figura controversa da nossa “realidade”: Zahia Dehar – antiga prostituta envolvida no famoso escândalo com alguns jogadores da seleção de futebol francesa – para instalar-se numa abordagem libidinosa, mas sobretudo reflexiva quanto aos desejo de uma mulher.
É a “Rapariga Fácil” (“Une Fille Facile”), um filme que para além do tema nos remete ao imaginário erotizado dos anos 60 e 70, encontrando o espectador na imagem da própria Dehar, os “fantasmas” de Brigitte Bardot e Sophia Loren.
O Cinematograficamente Falando … teve o privilégio de conversar com a realizadora sobre o seu novo filme e o trabalho com os atores que preenchem este coming-of-age da Riviera Francesa, incluindo o português Nuno Lopes.
Na sua carreira, todos os seus filmes têm sido extremamente diferentes….
Obrigado… [risos]. Sou apaixonada por cineastas que mantêm uma filmografia diversificada. Penso por exemplo em Sidney Lumet. Nunca fez o mesmo filme. O Elia Kazan, igual.
Como nasceu este projeto?
Quando começamos um projeto, este tem sempre várias origens. Tens uma origem sentimental, outra política, e depois existe o desejo de ficção e o acaso. No desejo de ficção, posso dizer que há muito tempo que tenho esta história – duas mulheres a namoriscar com tipos ricos – em mente. Gosto desta história, mas não sabia o que fazer com ela. Depois o caso Weinstein aconteceu e todas aquelas questões sobre dominação, desejos, personagens subversivas, e abuso de poder levantaram-se e isso fez-me questionar.
Depois, estava a chorar a morte de alguém próximo e queria desesperadamente fazer um filme com sexualidade, prazer, paixão e barcos [risos]. Pensei: vamos a isso. Foi lá que conheci a Zahia Dehar. Estava a pensar nesta mulher, que fez parte de um caso famoso de prostituição [com jogadores de futebol]. E como toda a gente em França ouviu falar desse caso, tive uma empatia imediata. Gosto de defender pessoas que os outros odeiam. Homens e mulheres. E estava interessada no facto das pessoas a odiarem. Por sua vez, ela era uma mulher extremamente sexy, árabe. Isso imediatamente atraiu-me.
Depois, ela fez um pedido para me seguir no Instagram. E gostei do facto dela não ter publicista. Não sou muito famosa, por isso certamente esta pessoa devia ser uma cinéfila. Depois investiguei, talvez ela quisesse ser amiga de toda a gente no cinema, mas não. Nada disso. Ela selecionou apenas algumas pessoas. Posteriormente vi os vídeos que ela publicava e fiquei maravilhada com a sua forma de falar. Nunca a tinha ouvido falar. Há tantas mulheres que vemos constantemente e nunca ouvimos a sua voz. Gostei de a ouvir e gostei mais ainda porque ela falava como uma personagem dos anos 60. Super elegante, super misteriosa, completamente diferente das pessoas que os reality shows nos trouxeram nos últimos anos, que são normalmente grosseiras e vulgares.
Gosto do kitsch e da vulgaridade, mas ela não fazia parte disso. Ela tinha uma interessante justaposição de elementos que me fizeram projetar alguém no universo rohmeriano. E claro, Itália fazia parte desse imaginário, os anos 60, a estrela de Cannes, todos os filmes que amo, etc. E nisso nasceu o projeto.
E sempre quis situar o filme em Cannes?
Não. O aspecto mítico de Cannes não fez parte do processo, embora se o filme não tivesse sido selecionado para o festival eu estaria bem lixada. [risos].
Eu precisava do imaginário da Côte D’Azur, a Riviera, onde os iates podem estar junto aos restaurantes. Onde encontramos os ricos, nos seus barcos, a jantarem junto aos turistas. E eu via muito isso quando passava férias com uma tia em Nice. Queria uma imagem de obscenidade, exibicionismo e indecência que é o questionado por este filme. Quem é na verdade o mais exibicionista no filme? Quem é o indecente? Talvez todos. Talvez o prazer esteja nos que chegam de iate, mas também nos que assistem a isso. Sucede o mesmo com uma mulher subversiva como a Zahia. Ela é parte do seu próprio prazer e parte do prazer de quem está à frente dela. Por isso, o filme precisava ser feito.
Mas o filme é também um coming-of-age?
Sim, porque sentia-me mais próxima à Nayma. Eu sou muito inofensiva. A minha emancipação veio através dos estudos. Estudei até aos 25 em França e é tradicionalmente assim. Por isso senti-me mais próxima dela, de uma personagem não muito sexualizada que faz o seu caminho normalmente e que assume a famosa frase do Pascal [que surge nos créditos iniciais do filme]: que o mais importante nas nossas vidas é a escolha da profissão. E no final ela decide. E decide porque foi confrontada com a exaustiva liberdade da Sofia, com o comportamento indecente daqueles homens, da mentoria de um tipo – que a aconselha a ser mais brava do que é, porque se sente um escravo – , o desprezo da sua própria turma. Ou seja, é um verão.
É muito terna com todas as personagens do filme, não só com as raparigas…
Sou uma pessoa terna… [risos]
E pode explicar então essa ternura por aqueles homens?
Sinto desejo por eles. Levou-me anos – com o Ken Loach e os Dardenne como mentores. Queria ver no cinema a vida de gente rica. Queria que o cinema trouxesse a vida hollywoodesca. O cinema americano fez parte do meu processo, o cinema italiano também. Queria mostrar a vida dos bonitos e famosos. Claro que tive outros desejos, mas respondendo de uma forma franca, creio que a minha responsabilidade como cineasta é construir personagens de uma forma muito justa. E se olhar para as mulheres de uma forma justa, olho para os homens também de uma forma justa. Às vezes vejo construções de virilidade que de forma alguma reconheço. A minha responsabilidade era mostrar aqueles homens, não como os grandes produtores, de cigarro na boca, a serem abusivos com estas mulheres. Não. Eles também são muito sedutores e sensíveis. E entendo completamente que a Zahia queira ter sexo com o Nuno Lopes.
Pode desenvolver um pouco a forma como lida e mostra a sexualidade no filme, até porque é fabulosa?
A parte mais engraçada é que este filme usa o humor também como uma arma. Por exemplo, a Catherine Breillat que é uma grande inspiração no cinema francês, mas não o é para mim de forma direta. E não é, porque não usa muito humor. É outra geração, outro projeto de cinema que admiro muito.
Eu decidi usar um tom mais terno. E se reparar, nas cenas de sexo, nós vemos o rabo do homem, assistimos a ser ele a dizer “eu sou teu“, e não ela. Ele é que diz: “faz o queres de mim” e abandona-se ele próprio desse prazer. Ou ele ter um dedo no rabo. Desculpem dizer isto [risos], mas é algo muito comum e não se vê nunca isso no cinema. A um certo momento, precisas que a tua realidade seja mostrada pela representação.
Pode comentar a escolha do Benoît Magimel para o papel?
Ele é fantástico. Não faço ideia porque não trabalhei com ele antes. Ele transmite e carrega uma certa melancolia. Nós conseguimos perceber que ele adora o sucesso, que ama a literatura. É uma combinação de várias dimensões. Entendo completamente porque o cinema francês o usa tantas vezes como alguém generoso. Alguém que transforma as outras pessoas em alguém melhor.
E a escolha de Nuno Lopes?
Tenho uma relação forte com Portugal, por causa da minha mãe – que morreu quando eu era pequena. Ela era professora de Espanhol e de Português e traduzia livros. Por acaso, eu abria livros e estava lá o nome dela. Ela colaborou como tradutora. Queria ter a certeza que a dimensão da colonização não estava no filme. Como a Zahia era uma mulher árabe, aqueles tipos no iate tinham de ser mediterrâneos. Se não fossem, iria adicionar uma camada suplementar social que não desejava.
E porquê o título “Une Fille Facile”, um foco mais na rapariga?
Escolhi “Une Fille Facile” porque não existe [a expressão] “Un Garçon Facile”. Mas os homens são fáceis. É muito fácil ser convidada para ir para estes iates. Era uma forma de comentar, questionar, o que é uma rapariga fácil? O que é uma vida fácil? O que é uma mulher difícil? Foi apenas uma escolha sem qualquer hipocrisia. Olhar para o primeiro cliché que esta mulher transmite e partir daí para acabar com ele.
A erotização da personagem, acha que seria possível se escolhesse alguém que não fosse já famosa por isso?
Acho que sim, mas era mais interessante com estas camadas logo definidas. Acho que é por isso que adoro trabalhar com atores e atrizes profissionais. Ela é uma estreante, mas a sua vida passada era como uma coleção de papeis. Quando se trabalha com a Catherine Deneuve, Isabelle Adjani ou o Benoît Magimel usamos os papeis que eles tiveram no passado. Gosto de jogar com isso. Não quero apagar o seu passado. Era mais interessante ter este filme com o imaginário da prostituição do passado, mesmo que esse não seja o tema de todo.
Não existe um elemento de risco na objetificação do corpo da personagem?
Sinto-me muito corajosa. Acho que temos de ser ousados para fazer declarações firmes. Este tema é interessante de discutir com a audiência. Como sabe, sou uma feminista declarada e muito ativa, faço parte da 50/50, que fundamos com a Céline Sciamma. Sinto que não tenho de sentir aprovação nas atividades neste campo, mas sinto que tenho de trazer algumas nuances e um certo libido, um maior erotismo e clarividência nesta luta em França. Isto talvez seja estranho no seu país: “isto é esquisito, porque ela é um objeto, mas não é uma prostituta”. Acho que esta é uma boa maneira de fazer um tributo a estas personagens.
É um filme complicado sobre uma mulher complicada, subestimada. O que não está no filme são questões de classe. Pode falar um pouco disso?
Sim, claro. Na própria erotização existem logo várias questões de classes. Em todo o lado há questões de classes, questões de corpo, questões sociais, questões monetárias. Em todo o lado, a toda a hora. No filme temos de interiorizar o alcance da sociedade nela. Se não acontecer, o filme está incompleto. Eu não posso fingir que trago esta personagem e a construo, sem trazer gente silenciosa que simplesmente a observa. Mas a violência social que acho mais importante é a violência social que vem de dentro da tua própria classe.
Acha que as mulheres conseguem por vezes ser mais agressivas com as mulheres que os próprios homens?
Sim, sinto isso. É como quando és pobre e depois não és e não queres de todo voltar a ser. Os eleitores de Bolsonaro e Trump são os mais pobres. Por isso, quando sobes um bocadinho tens um tal medo de descer que te tornas mais agressivo com aqueles que te ameaçam. Sim, definitivamente as mulheres podem ser as piores para outras mulheres. Mas, no meu caso, nunca experienciei nada para além de solidariedade e sororidade vindas delas. Mas também, nunca ninguém foi violento comigo. Talvez seja abençoada por isso.
O racismo social foi algo que gostei de jogar no filme, mesmo que de uma forma ligeira.
Houve algum desafio particular em termos técnicos para este filme?
Sim, no som. Nós filmamos num mês porque tive de filmar algo logo a seguir, uma série que será exibida no Canal+. Por isso sabia que teria de me apressar devido a agenda. O som foi difícil, porque quando estamos na Côte D’Azur, no período do verão, é uma explosão de gente. Mas o meu engenheiro de som foi um génio, ele trabalha com o Bertrand Bonello, Olivier Assayas, Arnaud Desplechin. O som foi um problema, as locações foram outro.
Pode falar da tal série de TV que filmou, “Les Sauvages”?
“Les Sauvages” é uma adaptação de uma obra de Sabri Louatah, é um trabalho político que aborda o primeiro presidente de origem árabe de França, interpretado por Roschdy Zem, que sofre um ataque. Este é o primeiro episódio, que vai para o ar em setembro.
Voltando ao filme, a Sophia Loren é mencionada e você falou da influência dos anos 60 nele…
Sim, ela chama-se Sofia, como a Sophia Loren. A música, que ela canta, é de um filme da Loren. A ligação que temos com a Zahia Dehar é definitivamente no mesmo imaginário cinematográfico do erotismo. Nós partilhamos isso. Não é uma coincidência. Gosto dela e ela gosta das mesmas coisas que gosto. Ela brota um imaginário do cinema italiano dos anos 60 neste filme. E esse é um imaginário que carrego também há muito tempo.