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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

E a seguir, Leonor?

Hugo Gomes, 12.08.23

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A miúda dos sapos”, cognome que Leonor Teles, assumidamente, deseja evitar após a sua “brincadeira” em forma de curta-metragem [“Balada dos Batráquios”] ter sido agraciado pelo Urso de Ouro do Festival de Berlim em 2016. A partir daí, surge-nos uma busca por algo maior: que cineasta temos em Leonor Teles? Uma demanda que a levou a uma longa à margem do Rio Tejo no rasto de uma personagem que sobressaísse do seu próprio filme - Terra Franca (2018) - passando para uma curta ambientada no Porto, com o fenómeno da gentrificação a remeter ao coração-vadio desse falso coming-to-age (“Cães que Ladram aos Pássaros”) em 2019. Talvez é nessas escapadinhas de “rapazes” que troçam de um iminente e incerto futuro que esteja encontrada a vertente do seu cinema, a preocupação de uma jovem urbana que enfrenta sozinha as adversidades do Mundo em movimento, um reflexo de todos os outros jovens, partilhando experiências, fraquezas e inquietações, e é daí que nasce um “Baan” (do tailandês “Casa”), a ficção em metragem de longa como desvirginação desse território. Será que desvendamos a Teles cineasta?

Contado em dois tempos e em dois locais, a jovem L (Carolina Miragaia), um heterónimo não assumido, dividida entre a Lisboa das orlas do Almirante Reis e o Bangkok de braços abertos (e apropriados) às estéticas de Wong Kar-Wai, fascínios e fixações, realidades e simulações, uma protagonista como tantos outros adultos “verdinhos”, de futuro pixelado, e ansiosos por uma resgatada luz ao fundo do túnel (conhecemos ‘gente’ assim, e pior, nada fazemos para os retirar dessa existencial situação, porém, até nessa passividade confirma a nossa impotência enquanto sociedade coletiva). Para todos os efeitos, este é um filme de descoberta e auto-descobertas, é Leonor Teles, esbanjada de elogios carreira acima e carreira abaixo, encarregada de tarefas hercúleas que vai desde a fotografia do díptico de Canijo ou do outro conto de inquietudes joviais (“Verão Danado”) em jeito festivaleiro, e agora motivada a emancipar-se, com isto, usufruindo dessa história de superação ao status vivente.

Não se deixem iludir pelo tom aqui descrito e escrito, Leonor Teles é um dos nomes maiores do nosso cinema, mesmo em tenra idade, por detrás das câmaras ou detrás da sombra de outros realizadores, é o rosto de um novo movimento, de um novo cinema português. Portanto, falar de Leonor Teles é falar do futuro, mesmo que em “Baan” encara-se uma experiência de impasse. Onde o filme quer-nos levar? Ou, o que poderemos extrair do filme? Nesse sentido, há que realçar a sensibilidade temporal e espacial de Teles em construir por via de uma diluição local um não-lugar. Entre Bangkok e Almirante Reis existe uma New Lisbon ou será um Bangkok europeu? É através do tal não-lugar que se reencontra a não-presença, a heroína silenciosa que está lá e não está, um brilhantismo espectral onde cada tempo é uma imprecisão.

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Flashbacks? Tal não é delineado, nem descrito visualmente como um conto em estado de progressão, “Baan” é sobre uma jovem, não de frente ao seu tempo, mas do seu tempo, não está presentemente no local nem na época, o seu espírito permanece ausente, talvez “preso” aos ecrãs de dispositivos tecnológicos em desejo de uma reabilitação, quem sabe? É um filme de desespero, de um desespero contínuo, sufocado e rebaixado. Leonor Teles, em conformidade com o já mencionado “Verão Danado” de Pedro Cabeleira, com “unhas” suas no visual, comunica com a sua geração, sem condescendências nem padronizações, e sim com empatia às suas “dores”.

Sentimo-nos em casa com as angústias da protagonista, contudo, é também uma obra de despertar a uma cineasta, a voz está embutida neste não-lugar e neste não-tempo, mas infelizmente a realizadora ocasionalmente abandona o corpo de Miragaia e avança às prestações a um ativismo colectânea, tentando “enfiar” tudo o que consegue no que requer a preocupações da Teles político-social sem o mínimo avanço nas bandeiras que escolhe. Perde-se a coerência do seu intimismo, adquire (sublinha-se intermitentemente) uma ânsia de agir (leia-se “apontar”) às patologias da sua contemporaneidade, como se assumisse um objeto plenamente politizado, enfim, todo o ato é político e o retrato desta jovem naufraga é mais que suficiente para o embarcar.

Desvia-se do coração e desvia-se da fonte, mas Teles é futuro e o seu cinema encontrará a forma sintática devida, nisso, sim, acreditamos. O restante é uma vidência do que Leonor Teles poderá se tornar, e ainda bem … 

João Miller Guerra sobre "Légua": "desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento"

Hugo Gomes, 26.06.23

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Légua (2023)

Conta-se que é uma história de três gerações de mulheres, representadas no soneto de uma morte anunciada. No entanto, em "Légua," encontramos também uma instalação performativa onde corpos dançam ao compasso dos dissabores do tempo que lhes resta. Aqui, Ana (Carla Maciel), uma mulher dividida entre a oportunidade e a gratidão, converte-se numa mártir e igualmente num testemunho à decadência da sua congénere, Emília (Fátima Soares), vencida pela previsível decadência e a sua gradual não-existência.

Filmado em Légua, uma aldeia situada no concelho de Marco de Canaveses, esta nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis, estreada na Quinzena dos Realizadores em Cannes, é uma amálgama de experiências pessoais e desejos de transgredir o real e a ficção, unindo atores profissionais e não profissionais, corpos jovens e envelhecidos, humanidades e animalidades, ruralidade e a sua iminente extinção.

Conversei, mais uma vez (diga-se), com o realizador João Miller Guerra, antecipando a estreia comercial no nosso país da sua obra conjunta, no abrigo da Cinemateca, num quente dia de junho, explorando vivências, gerações e escolhas.

Primeiramente, gostaria de fazer um ponto de situação desde a nossa última conversa, que ocorreu no âmbito de "Djon África". Referiu-se a mim nessa conversa, mencionando que a morte do seu pai teve um grande impacto em si. Pude constatar, numa entrevista concedida à SIC Notícias, que este filme de certa forma se tornou uma experiência pessoal para si. Isso também tornou mais difícil separar a sua pessoa daquela ficção.

Sim, ou seja, as coisas estão interligadas, não é verdade? O facto de "Djon África" ser sobre um descendente cabo-verdiano em busca do pai, e como conversamos na altura, eu ter perdido o meu pai, e de repente olhar para o Miguel Moreira, com quem já tinha feito três documentários e que considero um amigo, e perceber que ele não conhecia o seu, foi o ponto de partida para a aventura com "Djon África". Aqui, foi igualmente pessoal, e efetivamente está relacionado com a morte do meu pai. Acredito que todas essas experiências são maneiras de lidar ou manter um contacto com a memória do meu pai, que obviamente era muito querido para mim, mas também era uma pessoa muito especial para a Filipa, na nossa relação que tem continuado ao longo destes anos.

Havia também este lugar, fruto dessa relação, para onde eu ia desde pequeno, praticamente desde que nasci, uma casa de família, essa, onde decorre o filme "Légua". Portanto, a Filipa também tinha uma ligação forte com este lugar, sobretudo durante as férias, e em determinado momento, ambos discutimos a possibilidade de passar mais tempo ali e de criar algo que nos permitisse permanecer lá por mais tempo.

Poucos meses depois, não consigo precisar exatamente quanto tempo passou, talvez tenha sido um ano, a senhora que cuidava da casa, desde os tempos da minha bisavó, adoeceu. Quem a acolheu foi outra senhora que também ajudava nas tarefas da casa. Esse gesto foi o ponto de partida para o filme "Légua", ou seja, esse olhar um bocado implicado, sentindo-me também como dono e responsável daquele lugar e vivendo esse momento com impotência. Portanto, esse gesto de grande amizade por parte da senhora mais nova, ao acolher a senhora mais velha, um bonito gesto deve-se dizer, foi crucial para a génese da nossa história. Depois, tal como aconteceu com o Miguel em "Djon África", o filme é uma ficção.

Antes de avançar para "Légua", permita-me fazer outra ligação com a nossa última conversa. Quando lhe perguntei sobre novos projetos, mencionou um filme que seria rodado no norte de Portugal, abordando o fim da ruralidade, ou melhor, a resiliência face ao declínio da vida rural. No filme que estamos a discutir, principalmente através da personagem mais jovem que se muda para o Porto juntamente com outros que emigram, vemos a reflexão sobre esse tema da ruralidade. Em suma, de certa forma, essa projeção transformou e levou-nos ao “Légua”?

Sim, é isso mesmo. Este filme também parte dessa ideia de transformação. Há o fim de algo, mas também o início de algo novo. Gostaria de me concentrar um pouco mais neste outro aspeto que era muito importante para nós retratar: a ideia das três gerações de mulheres a viverem, não todas na mesma casa, mas ligadas a essa casa de alguma maneira. Principalmente a Mónica (Vitória Nogueira da Silva), que está ligada à Emília (Fátima Soares), como se fosse uma tia. Em relação à Ana (Carla Maciel), visto que o marido estava frequentemente ausente devido à sua vida de imigrante, contou sempre com a sua grande amiga e fiel companheira de trabalho, Emília, para ajudar a cuidar dos filhos. Nesse sentido, voltando à ideia das três gerações, Emília representa alguém que ainda segue o regime feudal, aceitando desde muito jovem servir e cuidar de um património que não é seu. Servir os senhores. Já a Ana encara isso como uma profissão. Basta verificar que a Emília vive na casa e a Ana não, constituindo família e tendo os seus momentos, como vemos no filme.

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João Miller Guerra e Filipa Reis

Quanto à Mónica, efetivamente estudou e possui um curso superior, equivalente ao dos donos da casa, e um dia desejará o mesmo para si. A vida da Ana também não se prevê que seja de forma alguma semelhante à da Emília, servindo e aceitando a subserviência. O filme também aborda o fim desse regime feudal e a transformação. O fim é sempre uma transformação. O filme também enfatiza a ideia de ciclo, o ciclo da natureza, as quatro estações, e a transformação da Ana que ocorre com a morte da Emília. Talvez a Ana tenha encontrado a si mesma ao aceitar cuidar da Emília e decidir ficar, em vez de seguir a vontade dos seus filhos e marido e emigrar.

No seu filme, como mencionou anteriormente, aborda também a questão da transformação dos corpos. A primeira sequência do filme, com Carla Maciel a cantar "Fruta Fresca", mostra o corpo dela, ainda “jovem” em comparação com o corpo que Fátima apresenta durante a sua própria decadência. No final, vemos Vitória / Mónica, a figura mais jovem numa festa de transe, e o movimento do seu corpo sincroniza-se com o das outras duas [Carla / Ana e Fátima / Emília]. Portanto, a minha dúvida é se há uma tese subjacente a essa questão dos corpos e de como ela se relaciona com a existência da pessoa? Porque sabemos que há um ponto em que a Fátima parece ter deixado de existir, embora ainda esteja o corpo no terreno.

Sim, há. Quase como uma transferência de poder. Vejo a festa de transe como uma espécie de ritual de iniciação, marcando a passagem da vida adulta de Mónica, exatamente no momento em que Emília falece ou "passa para o outro lado", por assim dizer. Para nós, os corpos eram de extrema importância, assim como os gestos de trabalho. Essa ênfase nas diferenças de idade sublinha ainda mais o ciclo da vida. Nascemos, crescemos, envelhecemos e eventualmente partimos para o outro lado. Essa narrativa foi cuidadosamente planeada desde o início do guião. Recordo-me, por exemplo, da nossa colega que colaborou na escrita do guião, a Sara Morais, mencionar a comparação que se poderia fazer entre a rugosidade das pedras e todo o granito ao redor, e essa transformação que também ocorre no nosso corpo e na nossa pele ao longo do tempo, à medida que nos transformamos, entenda-se envelhecer.

Mas certamente, falando dessa rugosidade, da questão mineral do filme, julgo que o “Légua” também reforma a sua questão animalesca. Há muitos animais, e de variadas espécies, neste filme, o que também contrasta um pouco com essa questão humana.

Sim, os animais têm um papel importante no filme, servindo como representações da transformação da natureza. Eles desempenham um papel fundamental na transmissão da ideia das estações, marcando o tempo ao longo do filme. Além disso, eles simbolizam um retorno à vida quotidiana que Ana havia perdido. No final do verão, ela, de um certo ponto de vista, recupera a liberdade e deixa de se sentir na obrigação de cuidar da filha.

Quanto ao cão branco que leva as meninas a presenciarem o ritual da coruja, a interpretação é aberta, sendo que cada pessoa poderá interpretá-la de acordo com a sua perspetiva pessoal. Na minha, é que a coruja simboliza a Emília, alguém que talvez, ao passar por essa transição ou passagem, tenha se fundido com a coruja ou já esteja presente de alguma forma no corpo da coruja. É uma interpretação interessante e aberta à interpretação pessoal de cada espectador.

Voltando àquela entrevista da SIC, foi referido que o João e a Filipa tiveram ideias diferentes sobre o projeto, e o filme foi fruto dessa diplomacia. Gostaria de perguntar, a título pessoal, se houve alguma ideia que achasse que resultaria no filme, mas que tenha sido rejeitada durante o processo de criação?

Não, creio que desde o princípio o trabalho com a realização, com a autoria, é sempre um exercício de grande entendimento. Cada um de nós contribui com as suas ideias, lançando propostas, e o outro também. Às vezes, como a Filipa mencionou nessa mesma entrevista, é necessário confiar. Acredito que sempre tivemos muita confiança um no outro. O que acho que mudou neste filme, e a Filipa também o menciona, é que pela primeira vez olhamos um para o outro e dissemos: "não vamos estar com atenção àquilo que cada um costuma estar. Se um está com mais atenção ao enquadramento e o outro aos atores, desta vez vamos tentar com que ambos atendamos ao enquadramento e igualmente trabalhando junto dos atores" E foi o que fizemos. Houve momentos em que filmamos, como nos filmes anteriores, em que isso era uma questão de atenção. Em certas ocasiões, o nosso diretor de fotografia, o nosso querido Vasco de Viana, ao não ter a certeza sobre qual caminho seguir, adotava ambas as abordagens.

Ele fazia uma versão para a Filipa e outra para mim. Por vezes, essas escolhas só seriam claras na fase de montagem. Poderia sair de uma cena, após a filmagem, convencido de que a minha opção era a correta e, mais tarde, descobrir, como já aconteceu, que a abordagem do outro era a mais adequada. Na edição, em determinados momentos, com o ritmo e a mensagem que queremos transmitir, a versão do outro revelava-se na escolha certa.

Queriam que me abordasse a vossa relação e colaboração com “não-atores” …

Prefiro o termo “atores não profissionais”.

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Légua (2023)

Muito bem, o vosso trabalho com “atores não profissionais”, nomeadamente com Fátima Soares, que revelou-se numa das grandes forças de “Légua”.

Fátima Soares é uma pessoa de uma generosidade extraordinária. Sempre me pergunto como seria encontrá-la na rua daqui a alguns anos, mesmo que a sua presença seja diferente. Tenho esta ligação com o cinema, enquanto ela não tinha nenhuma; estava envolvida num grupo de teatro que era uma das atividades que realizava na Universidade Sénior do Marco de Canaves. O facto de ser abordada e convidada a encenar a sua própria morte, relativamente próxima da sua idade (ou seja, mais próxima da idade em que alguém pode vir a falecer, de acordo com a probabilidade, é claro), foi um ato de tremenda magnanimidade por parte dela.

A Carla Maciel também foi uma lição para nós, naquilo que se refere a trabalhar e gostar de trabalhar. Mesmo que inicialmente pensássemos que não seria possível para nós trabalhar com atores profissionais, percebemos que a personagem da Ana precisava da elasticidade que talvez apenas uma atriz profissional pudesse oferecer. Realizamos um casting e encontramos a Carla, ficando absolutamente maravilhados com a duplicidade que desenvolvemos com ela. Demonstrou ser uma profissional de excelência, trouxe novas ideias e esteve sempre no local certo, à hora certa. Repetiu as cenas e contribuiu significativamente para o concepção do “Légua”.

Assim, penso que tivemos muita sorte, tanto com a atriz profissional quanto com a amabilidade da Fátima. Além disso, a dinâmica entre as duas atrizes também foi algo notável. A relação entre elas foi desenvolvida pelo Luciano, um preparador de elenco vindo do Brasil. Isso foi fundamental, especialmente porque trabalhar com atores profissionais era novo para nós, ainda mais, a contracenar com atores não-profissionais. O preparador de elenco desempenhou um papel crucial na criação dessa ligação, trazendo uma grande mais-valia às suas performances.

Já que estamos na a conversar na Cinemateca, deixa-me perguntar como é que Manuel Mozos, o zeitgeist do cinema português, entrou neste projeto?

O Manuel é um amigo nosso de longa data. Ele estava envolvido na Associação Portuguesa dos Realizadores, onde a Filipa também estava, e foi lá que estreitamos a nossa relação para com ele. Em dado momento, estávamos à procura de alguém que pudesse interpretar o papel do padre Guilherme. Queríamos alguém que fosse uma mistura entre um ator profissional e um não-profissional, e estávamos a considerar quem seria a melhor escolha. Tínhamos uma ideia muito clara do que queríamos para a personagem e foi então que a Filipa teve a ideia de convidar o Manuel Mozos

Sabíamos que o Manuel tinha experiência como ator, embora ele não se considerasse um. Aceitou o desafio, talvez mais amizade do que profissionalmente. Ficámos muito contentes. Na verdade, já estávamos em contacto com ele, pois tinha-nos dado, generosamente, uma lista de atrizes que se encaixavam no perfil que precisávamos para o papel da Ana. Quando percebemos que a atriz que a interpretaria teria que ser uma profissional, o Manuel elaborou-nos uma lista, na qual estava incluído a Carla Maciel.

Contudo, quando falámos com a Carla, percebemos que ela tinha uma experiência pessoal que foi a de cuidar da sua própria mãe, o que a tornou-a uma escolha ainda mais adequada para o papel. Essa experiência, que talvez tenha deixado uma marca no seu corpo, acabou sendo uma grande vantagem para a interpretação da personagem. Mais uma vez, fomos agraciados com muita sorte.

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Légua (2023)

Quanto a novos projetos?

O meu próximo projeto é, na verdade, um antigo que estou a retomar. A rodagem foi interrompida devido às filmagens do "Légua", depois houve a fase de montagem e a estreia. Trata-se de um documentário que tenho vontade de deixar-me influenciar um pouco pela ficção. É sobre um rapper descendente de cabo-verdianos chamado Ghoya, que canta em crioulo e é uma espécie de pioneiro do rap crioulo em Portugal. Ele também passou 10 anos na prisão, e eu o conheci antes de ser encarcerado. Nos últimos anos, mantive um contacto contínuo com ele. No ano passado, obtive apoio do ICA para a fase de finalização. Portanto, agora posso continuar a filmar e concluir o projeto. Esse será o meu próximo trabalho.

Quanto à Filipa, tem um filme em mente que ainda está por escrever, e à partida, será um projeto apenas dela. Não sei se terei algum envolvimento no filme ou não. O tema é prazer feminino.

Confessou-me numa anterior entrevista que não fazia distinção entre documentário e ficção.

Sim, há umas ‘coisas’ que eu ainda não filmei e que acho que poderiam colocar o filme mais nesse lugar. Aquilo que tenho, para já, no filme do Ghoya, é mais documental.

Falando com Carla Maciel, de "Légua" à condição de atriz: “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”

Hugo Gomes, 22.06.23

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

"Sou uma atriz com os pés assentes na terra", assegurou-nos Carla Maciel, uma atriz presente no "mercado" (vamos chamar-lhe assim) há mais de 30 anos, recorrendo às mais diversas formas de arte, seja num palco ou num pequeno e grande ecrã, vivendo sem ilusões, mas com ambições em relação à sua performance e ao seu compromisso artístico.  E é com "Légua", a nova longa-metragem da dupla João Miller Guerra e Filipa Reis (a estrear dia 19 de junho nos cinemas portugueses), que finalmente encontra um papel de protagonista, embora não de forma unilateral, uma vez partilha o holofote com a "não-atriz" Fátima Soares, numa espécie de bailado de corpos em decadência. Aceitando o convite do Cinematograficamente Falando…, Maciel participou numa conversa sobre esta sua experiência, abordando temas que vão desde o performativo até às questões geracionais e sociais, bem como o seu percurso enquanto atriz. Mais uma vez, destacou o seu caminho, que foi trilhado a custo de muito trabalho, resistência e sensatez.

A Carla encontra-se neste território [o Cinema] há anos, mas só agora é que se tornou protagonista, isto sem contar com a curta assinada por João Lopes - “Luís” - onde dava ‘corpo’ ao Camões.

Sim, de facto. Acredito que, após 30 anos, finalmente conquistei um papel principal. Mudar no cinema não é fácil e depende muito dos realizadores não assistirem aos filmes de outros realizadores. Por padrão, acredito também que os realizadores não frequentam muito o teatro, pois veem o teatro de uma forma ... Não é que não gostem, mas não se identificam com a sua linguagem. Normalmente, consideram os atores como detentores de uma interpretação exagerada, pois é uma linguagem distinta a do cinema. A menos que o teatro seja um pouco mais intimista. Portanto, não costumam ir muito ao teatro para ver, nem repescar os atores. Acredito que isso tenha sido uma das coisas que desmistifiquei neste filme, inocentemente digamos. Porque o João e a Filipa preferem trabalhar com "não-atores" ou "atores não profissionais"...

Sim, eles preferem esse termo, “atores não profissionais” …

E a juntar isso, o facto de trabalhar maioritariamente com elementos documentais. Acredito que os convenci de que há atores capazes de fazerem excelentes trabalhos de forma subtil, leve, como eles desejam, e também, ao mesmo tempo, de forma livre, estando disponíveis e abertos ao que os realizadores pretendem. Normalmente, eles têm sempre a ideia de que o ator vem completamente preparado para o papel, definindo as suas regras e limites. Isso depende dos atores. Portanto, é necessário fazer castings ou conversas com os atores para perceber se estão disponíveis para o projeto em questão. Para o que estão a fazer. E sim, este é o meu primeiro protagonista e estou mesmo muito feliz por ter, pela primeira vez, conseguido estar num filme do início ao fim [risos], o que é muito importante para um ator, poder sentir o filme, sentir o papel, sentir a evolução, o arco dramatúrgico. Foi muito libertador trabalhar nesse sentido.

Neste papel, vai contracenar com uma "não profissional", que é a Fátima Soares. Ao falar sobre a sua liberdade enquanto artista, gostaria de referir que este é um filme muito performativo, culturalmente performativo. Começamos "Légua" consigo alegremente a cantarolar "Fruta Fresca", e depois temos um vislumbre do seu corpo jovial em contraponto com a decadência da Fátima. Existe uma consistência corporal presente. Também é importante destacar o facto de contracenar com uma "não profissional", como fez, e trabalhar nesse seu papel.

Quando aceitei verdadeiramente este projeto, a Filipe e o João foram muito específicos e abertos, demonstrando muita sensibilidade. Tornou-se claro que estaríamos disponíveis para explorar várias versões e abordagens. Estudei profundamente o papel, questionando-me sobre como retratar essa mulher inspirada na pessoa que trabalhou na casa do João Miller. Realizei uma imersão, trabalhando tanto o estado físico quanto emocional da personagem. Sempre tive em mente a Celina, a pessoa que me inspirou, mas também quis imprimir o meu toque pessoal. Em suma, desejei emprestar a minha essência à personagem, usando as minhas próprias experiências e vivências. Como ator, é isso que fazemos: utilizamos as nossas ferramentas para dar vida à personagem e servi-la da melhor forma possível.

Trabalhar com a Fátima foi como embarcar numa montanha-russa, nunca sabendo o que esperar. Foi um desafio para mim, pois nunca tinha trabalhado com uma pessoa “não-profissional”. Essa experiência também me permitiu ser menos metódica, não ficar presa a pensamentos excessivos sobre as cenas, já que era a personagem principal e desejava interpretá-la da melhor maneira.

Permite-me ter liberdade e deixar-me levar pelas indicações do Miller e da Filipa, assim como pela própria Fátima. Foi importante perceber e escutar atentamente, pois isso faz parte do trabalho de um ator: escutar o outro. Estive sempre muito atenta, e acredito que essa atenção tenha se refletido na minha interpretação. A personagem servia intensamente a outra personagem, e acredito que, de forma inconsciente, também fiz isso na realidade, durante a interpretação. Estive sempre a servir a Fátima e o filme como um todo, por meio das ações. O "Légua" realmente destaca essas ações, mostrando os cuidados que uma mulher tem com outra, com delicadeza, poesia nos movimentos e amor dedicado a essa relação entre duas mulheres, uma mais velha e outra mais nova.

Acredito que alcançamos esse objetivo, e digo isso sem falsa modéstia, pois é a realidade. O filme realmente conseguiu destacar esses cuidados de forma bela e poética. Trabalhar neste filme foi extremamente gratificante para mim nesta fase da minha carreira, com 30 anos de experiência. Foi um novo desafio deixar de lado a preparação prévia detalhada e mergulhar completamente na atmosfera daquela casa no campo.

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Além disso, já tive experiências anteriores relacionadas ao tema, pois minha mãe foi cuidadora de pessoas mais velhas. Cresci imersa nessa linguagem do cuidado, pois ela trabalhava como auxiliar no Hospital São João e, mesmo após se aposentar, continuou a cuidar de idosos. Portanto, esse filme é uma homenagem à minha mãe, que infelizmente já não está mais aqui. Ela faleceu durante a pandemia e foi uma grande fonte de inspiração para mim. Ela costumava dizer que ninguém quer cuidar dos idosos e que as pessoas não têm paciência para eles. Essa mentalidade é prejudicial para o futuro, afinal, todos nós vamos envelhecer e planejamos nosso próprio futuro, não querendo nos tornar um fardo para os nossos filhos, considerando eventualmente a possibilidade de ir para um lar. Infelizmente, os lares ainda não são devidamente valorizados; falta amor e carinho neles. Os idosos são frequentemente desvalorizados devido a preconceitos sobre possíveis odores desagradáveis que possam ter.

Eu mesma costumava pensar dessa forma: de que os idosos cheiram mal, enquanto os bebês cheiram bem. Essa ideia estava enraizada em mim, baseada nas experiências e referências da minha vida pessoal, e isso foi algo que entreguei à personagem. O trabalho no campo também foi algo que vivenciei quando adolescente, por meio de uma amiga que vinha de uma família de agricultores. Passei minhas férias de verão ajudando-a no campo. Portanto, eu tinha essa conexão com o campo também. Esse papel realmente foi... Se não fosse para mim, teria que ser para alguém que tivesse essas referências. Era necessário que fosse alguém que soubesse do que estava falando. 

Quando li o guião, pensei: "Eu faria isto muito bem". E isso é algo raro de acontecer para um ator. De repente, olhas para um guião e pensa: "Uau, eu faria isso muito bem, nem precisaria me esforçar tanto". É algo natural, não forçado. Claro que não disse isso diretamente à Filipa e ao Miller, obviamente, mas senti essa conexão ao ler o argumento. Identificava-me com aquilo, conhecia esses sinais, essas rotinas, esses detalhes do cuidado com uma pessoa mais velha, porque também cuidei do meu pai quando ele estava doente. Portanto, todas estas ações estavam entranhadas em mim de forma instintiva e espontânea.

Pegando nessa frase da sua mãe, "ninguém quer tomar conta de velhos", e sabendo que “Légua” presta uma homenagem aos cuidadores voluntários, também aborda a história de três gerações diferentes de mulheres e os valores que as separam. No seu caso, por fazer parte da geração "do meio", a sua personagem torna-se uma espécie de mártir. Ela é consumida pela gradual não-existência de Fátima, mas, ao mesmo tempo, o filme dá-lhe a liberdade de manifestar a sua própria presença. Pode-me falar destas presenças e das suas respectivas relações com o mundo que as rodeia?

Essas mulheres estão a desaparecer. As mulheres que cuidam das casas. As mulheres possuíam um espírito de sacrifício, partindo de um ensinamento antigo. Cresci com uma mãe e um pai que nos ensinavam a seguir os nossos sonhos, a fazer aquilo que gostamos, mas advertindo que existem momentos em que temos de fazer sacrifícios pelos outros, ou seja, olhar para o próximo. Muitas vezes, em prol do outro, prejudicamo-nos. Aprendi isso muito bem e tento transmitir essas lições aos meus filhos. Não é que eles devam prejudicar-se ou fazer isso frequentemente, pois isso criaria um culto de vampirismo em relação a certas pessoas, e esse não é o propósito. Mas sim, quando sentimos que, por mais que falemos da história, que a personagem da Fátima tenha sido má (porque assim foi construída), a personagem da Ana não a quis abandonar. Ela poderia ter tido uma vida melhor com o marido lá fora. Podia ter ido com ele, mas acabou por abdicar da sua própria felicidade para cuidar dela, porque também se envolveu nessa situação.

A gratidão é, de facto, muito importante, não é verdade? São valores que estão a perder-se nos tempos de hoje, também como o espírito de sacrifício e até mesmo o amor pelo próximo. Estes valores estão a desvanecer-se à medida que as pessoas se tornam mais individualistas, mais centradas em si mesmas. Parece que dizem: "Não me importo com os outros, só quero avançar e ir mais longe". Estes ensinamentos têm um significado profundo para a Ana, e ela deseja transmiti-los à sua filha, mas esta não os compreende completamente, uma vez que pertence a uma diferente geração. Uma geração que já não dá tanta importância a possuir uma casa, já que vivem em vários lugares. O tema da família já não é tão valorizado como antigamente. São gerações que ainda desejam ter uma família, mas estão mais focadas na construção pessoal. Assim, existem aspectos positivos nessa evolução, mas também se perdem valores fundamentais nas relações com os outros.

Quanto à Ana, apesar de mártir, ela também encontra a sua emancipação no preciso momento em que recusar ir com o seu marido para a França. Ela gosta de ali estar, daquele sítio, que lhe faz bem, e entre ir limpar “a merda dos franceses”, como diz a certa altura no filme, e ficar ali a tomar conta da ‘velha’. Ela acaba por escolher a ‘velha’, porque esta sempre lhe fez algo, a ajudou durante muitos anos a criar os filhos enquanto o marido estava na França. Não pretende deixá-la sozinha, portanto, é uma questão de lealdade e de princípio ético. Ela também não a quer porque ela gosta do cão, gosta das flores, de estar naquele sítio que a faz sentir bem.

E, portanto, há aqui uma tomada de posição da Ana. Ela decide, tem o poder de decisão ali. Isso também é importante no filme, pois para ela, como mulher, é um passo acima, está a evoluir de alguma forma. 

Conversei com o João Miller Guerra em três ocasiões diferentes, e m todas elas me falava de um projeto sobre o fim da ruralidade. Ou seja, a desertificação destas áreas. E neste caso, você é a mulher cujo marido vai para outro país e a filha muda-se para a cidade, contudo, a sua posição é ali. O plano final do filme é da agência imobiliária pendurando na fachada da casa, naquele campo de batalha, uma placa de “Vende-se”. Por outras palavras, indiretamente, “Légua” é o tal desertificação rural …

Para dizer a verdade, eu agora coloco em causa esse “fenómeno”. Tenho notado que muita gente da cidade está a procurar um cantinho rural. Houve uma altura em que pensávamos que essa tendência ia desaparecer, mas depois da pandemia comecei a perceber que muitos gostam da vida no campo, e não só pelo bem-estar psicológico, mas também como uma espécie de investimento, uma forma de poupança. Se algo acontecer, sempre teremos uma casa com algum terreno. Acredito que a pandemia não acabou com a ruralidade como pensávamos. Quanto às pessoas cuidarem das casas, acho que já não há muitas disponíveis para alugar. Os chamados caseiros estão em extinção. 

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Légua (João Miller Guerra & Filipa Reis, 2023)

Mas isso não poderá ser causado com a gentrificação de algumas cidades?

Sim, é verdade. Lisboa está a empurrar os seus habitantes para “fora”, e estes “deslocam-se” para as periferias. Por sua vez, as periferias estão a ficar cheias, e as pessoas acabam por encontrar um cantinho mais afastado. Mais de 90% dos jovens estão a perceber que se sentem bem lá, na verdade. Daqui a uns anos, Lisboa pode estar vazia. Não sabemos, mas é o mais provável, considerando as dificuldades em encontrar ou alugar uma casa neste momento, especialmente para os jovens. Por isso, que estes veem a casa como algo flexível. Não é um lugar fixo, como costumava ser nos anos 90, ou como os meus pais viam nas décadas de 60, 70, 80 e 90. Agora, com as oportunidades no estrangeiro, os jovens não pensam mais "ah, vou sair da faculdade e comprar uma casinha". É difícil. Por isso, talvez não seja o fim da ruralidade como pensávamos. O que achávamos que ia acontecer.

Sobre essa frase que proferiu há bocado - “sou uma atriz com os pés assentes na terra” - gostaria lhe colocar uma questão, talvez mais abstracta mas isso poderá a abordar por onde quiser, e do facto de estar presente, há vários anos (devemos salientar) nas três plataformas - cinema, teatro e televisão - como é ser atriz em Portugal?

Há muita resistência. Como a Nina diz na peça de Tchekhov - "A Gaivota" - “temos que resistir, resistir, resistir, resistir, resistir”. Não é fácil, como costumo dizer aos jovens que estão a começar e a trabalhar comigo, se realmente gostas disto, tens que resistir. Agora, com o aumento das plataformas, das redes sociais, tudo está a mudar rapidamente, é tudo muito mediático, tudo gira em torno dos seguidores. Mas quando queres fazer um trabalho consistente, começas pelo teatro, vais gradualmente entrando no cinema e na televisão. São todas linguagens diferentes.

Acredito que o teatro amador contribuiu muito para esta época. Comecei muito jovem, a cantar, tinha um grupo de música popular e fazia teatro amador com o meu pai nas freguesias. A ideia de atuar nas freguesias e nas coletividades pode parecer um pouco modesta, mas não é. Isso nos dá força, porque percebemos o quão difícil é ser ator em Portugal. Ou atriz em Portugal, especialmente para as mulheres, quando queres seguir um caminho sério e mostrar o teu trabalho, sem ter um nome conhecido, sem seres filha de alguém famoso, sem ter sangue azul, sem ter conexões especiais.

Portanto, quando és uma pessoa completamente desconhecida e decides sair da tua zona de conforto e aventurar-te, a regra é nunca desistir. Não vou dizer que foi fácil. Em 2000, deixei o Porto e vim para Lisboa. Tentei de tudo, fiz revista, explorei todas as oportunidades. Sou uma atriz versátil e posso orgulhar-me disso, a vida me ensinou a ser assim. Tive que me desenrascar, porque não tinha dinheiro nem recursos. Não pude estudar em Londres ou na França, como gostaria, se tivesse ido para lá aos 18 anos, hoje certamente não estaria aqui. Tenho consciência disso e sei o meu valor. Daqui a 30 anos, não subestimarei as minhas capacidades. Trabalho muito, escuto muito, e gosto de colaborar com pessoas que me estimulam e me desafiam. Nesta fase da minha vida, não tenho tempo para más vibrações. Prefiro envolver-me em projetos onde também seja valorizada, porque valorizo muito os projetos em que me envolvo.

Sou alguém que se entrega a 200%, e quem trabalha comigo pode confirmar isso. Vim do Porto para Lisboa em 2000 e enfrentei inúmeras adversidades, fiz cerca de 400 audições e consegui apenas uma. Às vezes, quando os jovens dizem "tantas audições, tantas self-tapes", eu só posso dizer: "Antes, os castings eram presenciais. Eu fazia viagens constantes entre o Porto e Lisboa para castings e esperava meses para saber se fui escolhida ou não."

Comecei de forma humilde e olhava para as novelas com admiração, sonhando em trabalhar com atores talentosos. Eventualmente, consegui oportunidades de trabalho e fui progredindo na minha carreira. Sempre perseverei e segui os meus sonhos, mesmo quando as condições eram difíceis. Tive altos e baixos, mas continuei a lutar.

Além disso, sou casada com um ator [Gonçalo Waddington] e temos o desejo de construir uma família. Tenho dois filhos, um deles começou a faculdade em Roterdão recentemente. Quando se quer constituir uma família e ter uma vida decente, as coisas ficam (ainda) mais complicadas, especialmente em Portugal. A minha filha está a estudar Belas Artes e ficou impressionada com as instalações da universidade em Roterdão, que estão num nível completamente diferente do que temos no nosso país.

Encorajei-a a seguir os seus sonhos no estrangeiro, porque aqui as oportunidades podem ser limitadas. Tanto eu como o meu marido trabalhamos arduamente e produzimos os nossos próprios projetos. Não dependemos do nome dos nossos pais. A minha filha também não quer depender do nosso nome.

Hoje, com 49 anos, continuo a fazer self-tapes, a preparar projetos e a submeter guiões. Precisamos criar o nosso próprio trabalho e sermos versáteis. Comecei na música e atuei em musicais, revistas e muito mais. Quando vim para Lisboa, o meu primeiro trabalho foi na revista no ABC, onde desempenhei funções de liderança. Ninguém me conhecia na altura, e era uma altura em que o Porto e Lisboa estavam bastante distantes no mundo das artes. Foi um processo de conquistas constantes e muita resistência. Muitas vezes, pensei em desistir ou mudar de profissão, mas continuei. A incerteza financeira é uma constante, mesmo hoje em dia, mas é algo que faz parte deste caminho.

Já que menciona a idade como um fator, lembro-me de uma entrevista com Luís Miguel Cintra, durante a apresentação da cópia restaurada de "Ilha dos Amores", de Paulo Rocha, em Cannes. Questionei-o sobre a falta de personagens mais velhas, e a sua resposta foi: “Portanto, se a pessoa envelhece provavelmente tem um destino diferente. Mas vamos esperar o quê? Que os mais novos inventem personagens de velhos?  Não conhecem. Não têm conhecimento de como funciona um velho. Portanto, a imaginação deles não vai para velhos. Por isso temos de nos resignar, como em tudo na vida.

Agora, cada vez mais, vemos mais representatividade das gerações mais velhas nas novelas. Há uns 4 ou 5 anos, senti que os idosos estavam a ser esquecidos na indústria. As personagens mais velhas existem na vida real, na ficção e em todas as áreas. Felizmente, começou a haver uma maior procura por atores mais velhos, até mesmo nas próprias televisões. Estão a reconhecer a importância de manter os artistas a trabalhar, o que é fundamental. É triste e desrespeitoso quando um artista é esquecido após uma longa carreira. Muitos desses atores foram incríveis em tempos e ainda podem continuar a sê-lo.

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Luís (João Lopes, 2012)

Claro que hoje em dia se escrevem menos textos longos, porque as pessoas têm outras capacidades e nem todos conseguem decorar texto de um dia para o outro, especialmente os mais velhos. No entanto, atores talentosos e experientes podem contribuir muito para o cenário artístico em Portugal. É importante escrever mais papéis para personagens mais velhas.

Curiosamente, acho que a faixa dos 30 anos é mais desafiadora do que a dos 40. No meu caso, não foi um percurso fácil. A partir dos 45 anos, comecei a ter mais oportunidades de trabalho e maior visibilidade. No entanto, a competitividade entre as atrizes mais jovens, na faixa dos 20 anos, é intensa, pois há uma abundância de personagens disponíveis para essa faixa etária. O período entre os 30 e os 40 anos é um território incerto.

E juntando ao envelhecimento o factor mulher?

Exatamente. Para as mulheres, é ainda mais complicado. Porquê? Porque parece que é esperado que estejam sempre jovens. Não concordo com isso. As pessoas devem envelhecer naturalmente. Não vou contra isso e não farei cirurgias para parecer sempre jovem e manter a aparência de alguém com 30 ou 40 anos. Claro, cuido de mim com uma boa alimentação e exercício, mas isso também faz parte do meu trabalho. Não tenho a ambição de parecer jovem para sempre. Quero ter papéis aos 50, 60 e 70 anos. A partir de agora, parece que as pessoas estão a mudar a forma como veem os "40". No último ano, tenho sentido como se tudo o que fiz ao longo dos anos finalmente estivesse a ser reconhecido. O cinema trouxe visibilidade, é verdade, mas o teatro também, pois tenho trabalhado com diversos criadores e encenadores. A minha busca constante é aprender e conhecer pessoas, especialmente compreender a mente dos encenadores e como eles dirigem. Gosto de ser dirigida por diferentes pessoas. Devemos continuar a escrever mais boas histórias e a criar bons filmes.

Acredito que a sociedade atual está muito centrada na imagem. Tudo tem que ser belo, perfeito e impecável. Parece que nada pode estar fora do lugar. Mas o mundo real não é assim. Existem pessoas com diferentes aparências, algumas podem não ser consideradas bonitas à primeira vista, mas são incríveis atrizes e atores. A beleza ainda é muito valorizada e tem um grande poder nesta indústria.

Essa questão da beleza é igualmente própria da televisão.

Sim, é verdade. No cinema, vemos muito disso também. Chamam muitas celebridades populares, o que atrai audiências e faz sentido, desde que estejam comprometidas com a indústria cinematográfica. No entanto, é importante lembrar que não deve ser "tudo ou nada". Existem pessoas que trabalham na área há muitos anos e merecem reconhecimento. Falo, não apenas por mim, mas por pessoas que têm formação, experiência e que dedicam suas vidas a esta arte, e de repente, são esquecidas. Isso acontece mesmo com artistas mais jovens. Há muitos jovens talentosos que saem dos conservatórios e não conseguem oportunidades. Por quê?

Vivemos numa sociedade demasiado preocupada com a estética?

Posso falar do caso português, e sim. Noto que quando vemos produções nórdicas ou sul-coreanas, por exemplo, acreditamos na existência daquelas pessoas, por parecem-nos exatamente isso, pessoas. Claro que vemos atores que cuidam da sua aparência e podem fazer alguns ajustes, mas sem exagerar. O culto da beleza e da perfeição é cada vez mais evidente. 

Em Portugal, parece que se dá demasiada importância à imagem superficial, como o carro que se conduz, a casa onde se vive, a roupa que se veste, e as pessoas são frequentemente julgadas por esses critérios. Infelizmente, este foco excessivo na imagem muitas vezes leva as pessoas a negligenciar o seu crescimento interior.

As pessoas não leem tanto quanto deveriam, não procuram enriquecer os seus horizontes e não buscam conhecimento. Se dedicássemos mais tempo a isso, talvez nos sentiríamos mais realizados e não sentiríamos a necessidade de nos expormos de forma tão exagerada. É importante frisar que a verdadeira riqueza está nas nossas experiências profundas e na nossa capacidade de crescer enquanto seres humanos, ao invés de apenas focar na superfície.

Dentro dessa ideia, podemos dizer que o “Légua” é um filme contra essa estética?

Não sei explicar, mas não é a beleza exterior convencional. É mais uma beleza que se manifesta nas ações, nos movimentos, na performance, de alguma forma, e sim, vindo da Natureza.

Beatriz no país das "maravilhas"

Hugo Gomes, 17.03.23

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Continuando com o seu formalismo do desesperante real, Marco Martins mantém-se leal aos trajetos agonizantes que as suas personagens, mártires feitos e refeitos, caminham em busca da sua essência. Mas o que é que procuram? A resposta aos seus males, seja ela, física, existencial, obsessiva ou corrosiva. O seu Cinema é composto por essas cores, estas deambulações e nisto, trazendo, não somente emoções, mas uma estética política, “à esquerda” como acusou veemente o jornal Observador nos ares de estreia de “São Jorge” (2016). Em “Great Yarmouth: Provisional Figures”, projeto maturado em dois “mundos” distintos, um pré e pós pandemia, ganha vida acrescida sob os ventos das novas marchas politizadas, reacionária e extremistas e quiçá nacionalistas, pintando-nos como “bons emigrantes”, acarinhados pelos povos do Mundo e bem-sucedidos na sua integração. 

Martins provoca, - porque em Great Yarmouth, cidade costeira inglesa (e uma das mais precárias do Reino Unido) - num êxodo à portuguesa é possível escutar os nativos referindo-os como mão-de-obra silenciosa, assumindo trabalhos que os próprios ingleses desdenham. Na liderança dessa peregrinação ao encontro de “vidas melhores”, está a Mãe, apelidada desta maneira (como gosta, devemos salientar), Tânia, portuguesa integrada, a face de uma rede de “exportação” destes trabalhadores carenciados e reduzidos a corpos exaustos, sacrificados, as outras martirizadas equações deste cosmo. Beatriz Batarda é essa “criminal” emigrante, com sonhos próprios, mesmo que mais mesquinhos e pirosos que sejam (velhos e bingo, combinação da sua vulgaridade). Não interessa, ela própria embarca na “foleirice” como íntimo refúgio, o “Promise Me” de Beverly Craven, por exemplo, servido como canto de sereia e de igualmente forma como canto de banshee, cantarolando para ‘seduzir’ ou invocando o antidote para a sua angústia. 

Digamos que na atriz, o ponto alto de “Great Yarmouth”, Martins deposita-lhe fé e determinação para nos guiar pelos dantescos infernos desta exploração, das madrugadas frias e silenciosas, meio adormecidas e calejadas pelo cansaço acumulado, dos “quartos” de hotel (as aspas não são acidentais) ou das idas e vindas aos matadouros de perus, em que o “trabalho liberta” encontra-se invisivelmente gravado nos seus muros. E nela testemunhamos o cansaço, envolto numa rotina, gradualmente desintegrado por vias de um caos, as rugas vincadas do seu rosto renomeia-se como “cicatrizes do tempo”, o qual não volta atrás de maneira alguma e é comumente sabido, mas são essas supra-expressões que a camufla com as noites intermináveis e os becos sem saídas. O sonho não passa disso … num sonho. Acordar é o derradeiro ato. 

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Enquanto isso, Batarda, é toda ela um filme à parte, a alma, a raiz, a força e a farsa, Martins apenas a filma, a integra e suplica para que nela nasça um filme emancipado. O realismo britânico mimetizado numa narrativa suja e sob curvas e contracurvas, a duração da miserabilidade sente-se, seja pelas sisifistas matanças às aves comestíveis, decepadas e decapitadas, "carne para canhão”, como os portugueses e tudo o resto. Só Beatriz’ salva-se, adquirindo as suas asas e transcendentemente sobrevoando tudo o resto. 

Great Yarmouth: Provisional Figures” instala-se como um ensaio sem norte, talvez as várias vidas e os seus vários procedimentos criativos o esvaziaram, porém, encontra conforto na sua protagonista, maior que o filme, maior que a vida. Beatriz Batarda show, é o que é!

"Dá-me as minhas savings"

Curtas, curtinhas, a origem: 1ª edição dos Prémios Curtas

Hugo Gomes, 13.03.23

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Os premiados e os jurados / Fotografia.: Ricardo Fangueiro

Foi através de uma curta que Portugal desbravou caminho em direção à Kodak Theater, a nomeação à tão cobiçada estatueta norte-americana automaticamente entrou para a História audiovisual do nosso país, e então porquê de estarmos constantemente a reduzi-los a "protótipos" de futuras longas-metragens?

André Marques teve um sonho, criar uma cerimónia de festividades, premiações e de comunhão a esse universo bem português, a resistência do Cinema na sua mais natural essência, a simples e de rápida dicção, a curta. Para isso juntou oito magníficos* e fundou um júri, aliciou e arrecadou apoios, e “convidou” a todos os participantes a inscrever o seu trabalho. A sua vontade fez com que o seu desejo se materializasse. No passado dia 10 de março, sexta-feira nervosa devido à nomeação de “Ice Merchants”, cujos Óscares seriam revelados no domingo seguinte (“será desta?” pensavam todos os que presentes), o Auditório Fernando Pessa em Lisboa encheu-se (deve-se sublinhar), para receber a primeira edição, modesta, ainda com o seu quê de improviso, muitas vezes ocultado graças ao malabarismo e carisma de Rui Alves de Sousa, radialista da Antena 1, que assumia o papel de anfitrião. Intercalado pela dita premiação e pela projeção de três curtas referentes aos três géneros-base (ficção, documentário e animação), a cerimónia ficou marcada pelas promessas do seu fundador, ambicionando seguintes edições em maior escala e a ambição de um “microfestival” em celebração daquilo que a curta-metragem tão bem representa - o Cinema, aqui e agora.   

Quanto à premiação, a noite consagrou “Azul” de Ágata de Pinho com cinco prémios, no qual incluem as categorias de Curta de Ficção, Realização, Argumento, Atriz (também Pinho) e Fotografia (assinado por Leonor Teles). “O Homem do Lixo” de Laura Gonçalves arrecada três distinções (Curta de Animação, Curta Documental, Banda-Sonora), igualando com “Punkada” de Gonçalo Barata Ferreira (Montagem, Caracterização, Guarda-Roupa). Os outros prémios; Vítor Norte recebe o de Melhor Ator (“O Caso Coutinho” de Luís Alves), Nuno Nolasco como Ator Secundário (“Tornar-se um Homem na Idade Média” de Pedro Neves Marques), Rita Tristão na categoria de Atriz Secundária (“As Feras” de Paulo André Ferreira), Rodrigo Manaia em Interpretação Infantil (“By Flavio” de Pedro Cabeleira), e ainda a animação “Garrano” de David Doutel e Vasco Sá no campo dos Som / Efeitos Sonoros juntamente com a ‘dobradinha’ de “2020: Odisseia no 3.º Esquerdo” de Ricardo Leite (Direção Artística, Efeitos Visuais).

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Rui Alves Sousa e eu / Foto.: Ricardo Fangueiro

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Vítor Norte brama ao Cinema após vencer o Prémio de Ator / Foto.: Ricardo Fangueiro

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André Marques, fundador do evento, discursa / Foto.: Ricardo Fangueiro

*Bruno Gascon (realizador de “Carga” e “Sombra”), Mia Tomé (atriz e radialista), Edgar Morais (ator), Inês Moreira Santos (crítica e blogger do Hoje Vi(Vi) um Filme), Teresa Vieira (curadora, crítica e radialista da Antena 3), Rafael Félix (crítico e fundador do Fio Condutor) e André Pereira (videografo e editor de vídeo da Renascença).

Para Ágata de Pinho o "Azul" não tem dimensão

Hugo Gomes, 11.05.22

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Azul, a cor empregue sem discriminações tanto ao céu como ao mar, e cuja união resulta num horizonte único, duas partes confundidas entre si, tornando a sua desassociação impossível. Naquele determinado ponto, ambos os elementos fundem num só, aquilo que mais próximo teremos da chamada invisibilidade, o que não é mais que a redução de um todo. 

Para Ágata de Pinho e a sua protagonista-espelho, o azul, também ele a servir de título da sua curta-metragem, é um estado de espírito a alcançar, um fim prescrito à sua existência - ou será antes não-existência? Com “Azul” seguimos o corpo mapeado por cicatrizes de difícil cura, e ainda mais profundo, aquelas que residem na alma de quem, conturbadamente, não ambiciona prolongar o seu sopro de vida. Entendemos que neste filme, algo intimista, de uma jovem em prazo de validade, ser ou querer ser invisível converte-se mais do que um desejo, uma missão, ou será antes inquietação?

Com estreia mundial no Festival Internacional de Roterdão, e com uma passagem na última edição do Indielisboa, “Azul” é uma curta com um mundo inteiro no seu interior, esse que trespassa o meramente terreno, sobressaindo o emocional como existencial e porque não dimensional, tendo o corpo, que nos últimos anos, o Cinema lhe apropriou como viagens pelas suas “metamorfoses”. O Cinematograficamente Falando … falou com a atriz e agora emancipada realizadora sobre este peculiar projeto sobre a crise da nossa vivência. 

Confesso que senti ao longo da sua curta um ambiente melancólico e igualmente angustiante, e visto ser protagonizado por si, este desejo de desaparecer, talvez figurativamente, talvez fisicamente, vai ao encontro de um lado autobiográfico, ou até de confissão?

Antes de mais, não é um desejo mas uma crença: a personagem realmente crê que vai desaparecer quando fizer 28 anos. Se fosse um desejo, poderiam existir outras possibilidades ou vontades que substituíssem o desejo anterior, mas sendo uma crença, entramos no campo daquilo que é inexplicável mas que não deixa de ser entendido como verdade única — o que, neste caso, se mantém até determinado ponto.

Sim, este primeiro filme é autobiográfico mas sob uma roupagem ficcional. Não me interessou expor a minha vida, interessou-me sim pegar em certas experiências da minha vida e tratá-las com elementos ficcionais misturados com elementos autobiográficos/documentais, mas entendendo sempre estes géneros cinematográficos num sentido lato, expansivo, ao invés de delimitador.

O Azul, não só do título, mas presente simbolicamente nos diferentes elementos, seja a cor como invisibilidade, seja o mar que sufoca a protagonista, seja até mesmo a fotografia que adquire iguais tons. Como surgiu a ideia do Azul como símbolo do conflito existencial desta personagem? 

A cor azul como símbolo é, para mim, uma leitura que surgiu muito mais tarde e que, na verdade, continua a ser assim lida mais por quem vê o filme do que por mim. 

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A relação com a cor azul enquanto paisagem (e não tanto enquanto simbologia) tinha de estar presente no filme, encontrando diversas transfigurações para a sua presença, pois é uma cor que, como sabemos, carrega já tantos sentidos e simbologias. Eu tentei não pensar nessa carga simbólica e cingir-me, genuinamente, à minha relação específica com esta cor. A cor azul aqui tem para mim um sentido muito directo: naquela altura, eu procurava o azul do mar e o do céu, pela sua abstracção e, simultaneamente, pelo seu sentido de absoluto. É mais uma relação directa de sensações/emoções, do que propriamente de simbologia, que para mim implica uma certa racionalização. 

Sobre 28, não somente a idade que a nossa protagonista deseja desaparecer, mas pelo vislumbre da sua vida, ainda confinada a uma certa austeridade e dependência familiar. É sugerido, de facto, mas existe em Azul uma intenção de rebelião contra uma cada vez procrastinada emancipação à idade adulta? Como vê essa independência tardia? Já agora, também gostaria de mencionar que “28” é também abordado na recente longa-metragem de Adriano Mendes (“28 ½”), representado como uma idade de impasse. 

A crença de que ela vai desaparecer aos 28 anos condiciona tudo o resto: porque haveria emancipação, planos, desejo de futuro, se ela sabe quando a sua existência vai terminar? Claro que há muitas outras questões subjacentes a esta crença — e é o que vamos percebendo com o filme, mas, para a protagonista, esta é a primeira verdade, absoluta e inquestionável… No entanto, sim há na mesma rebelião sob a superfície que, à medida que a data do seu aniversário se aproxima, se torna mais angustiante. 

A expressão livre dessa rebelião, ou a emancipação, ou a “independência tardia”, como colocas, só pode surgir se a personagem sobreviver à sua crença e quiser finalmente encontrar o seu lugar no mundo.

Por outro lado, há uma camada que está sempre subjacente que é a da frustração em relação ao que é ser-se adulto nesta sociedade… A rebelião contra isto é, creio, potente e necessária. 

Sobre o corpo algo abstrato da protagonista, e à sua maneira performativa, existe em “Azul” uma aptidão ou fantasia do body horror? Como é a questão dos corpos relacionada com o estado emocional da personagem? 

Há uma questão muito concreta em relação ao corpo desta protagonista, uma questão de saúde que, invariavelmente, alterou a relação dela com o próprio corpo pois teve de aprender a habitá-lo de toda uma nova maneira — e essa procura por, de facto, habitar o seu corpo (daí o lado mais performativo), não é pacífica e não cessou. 

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Depois, ao aliar a isto a crença do desaparecimento aos 28 — um desaparecimento físico, concreto e material também, em que o corpo vai desaparecer — a relação que ela tem com este só poderia ser bastante específica. 

Tenho, sem dúvida, “um fraquinho” por body horror e espero poder explorar mais esse lado no meu trabalho futuro. 

Quanto a novos projetos? Existe desafio para se aventurar no território da longa-metragem? 

De momento, encontro-me a desenvolver uma longa-metragem para a qual consegui, recentemente, financiamento para a escrita. Entretanto, como esse processo será ainda longo e moroso, espero escrever e realizar mais curtas.

Miguel Gomes: "faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer"

Hugo Gomes, 24.08.21

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Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro

Em todo o nosso encontro, Miguel Gomes fez questão de sublinhar que “Diários de Otsoga” não é um filme totalmente seu, de forma a invocar a presença da companheira e correalizadora, Maureen Fazendeiro, na nossa conversa. “Peço desculpa, a Maureen não pôde estar presente, teve que tomar conta da bebé.

Possivelmente, ao lado do legado deixado por Manoel de Oliveira e do entusiasmo mundial por Pedro Costa, Gomes é dos nossos realizadores mais internacionais, conquistando lugares nunca antes “navegados” por portugueses com filmes bem distintos como “Tabu” ou o projeto epopeico de “As Mil e uma Noites”. Porém, comigo é mais que isso tudo: é um pai babado.

Apresentado na Quinzena de Realizadores do último Festival de Cannes, “Diários de Otsoga” é marcado por um gesto, o de desafiar um confinamento e a interrupção de projetos e o de dar asas à criatividade, contando com uma equipa entre o profissional e o familiar. Miguel Gomes e Maureen Fazendeiro tinham um filme em mãos, não sabiam ao certo que futuro poderia reservar esta aventura, mas o futuro também estava entre eles. Para além da rodagem, uma criança vinha a caminho, uma preocupação, uma dádiva ou uma outra dedicação.

O filme foi somente secundário, e mesmo assim prioritário. Ainda que para nós, espectadores, “Diários de Otsoga” tenha sido um filme, para Miguel Gomes foi mais que isso.

Queria começar esta conversa por questionar o significado do título.

Otsoga é Agosto ao contrário. Eu e a Maureen estávamos para sugerir um outro título - “Pura Vida” - porque a estrutura do movimento do filme, digamos, começa num território mais convencional (um beijo ou um início de um triângulo amoroso) e vai abrindo até chegarmos à possibilidade de que se está a fazer um filme. Vemos os técnicos, os atores e o filme, a cada dia que passa, podemos ver mais a vida a tornar-se cinema e não tudo fruto de um universo puramente cinematográfico como indicavam os primeiros momentos do filme. Resumidamente, tudo isto seria para chamar-se de “Pura Vida”, mas a certa altura a Maureen referiu que o título a fazia lembrar uma marca de água mineral, por isso abandonamos algo que à partida era ‘foleiro’.

Otsoga nasceu numa praia. Estava concentrado nas palavras cruzadas, até que de repente, talvez por sugestão das mesmas, uma charada de letras e palavras, perguntei o seguinte: “Se nós filmarmos em agosto em modo diário, e numa narrativa invertida (a essa altura já estava decidida essa estrutura), então que tal se invertêssemos o título?” E naquele momento escrevi Otsoga e isso fez sentido. Foi assim que obtivemos o título.

Ou seja, sabiam que o filme ia ser rodado e até mesmo estreado no mês de agosto?

Isso também já estava combinado. Havia a questão da Maureen estar grávida, com o nascimento previsto para fim de outubro ou início de novembro, portanto não podíamos filmar nos últimos dias da gravidez. Então tivemos que arranjar uma altura muito antes do parto, numa rodagem que fosse rápida, então a solução foi agosto.

Em conversa com a atriz Crista Alfaiate, ela revelou-nos que o filme nasceu de um gesto de “temos que filmar de qualquer forma”, por oposição ao confinamento e à paragem de projetos que a pandemia provocou.

A primeira visita que fizemos após o fim do primeiro confinamento foi à Crista. E falámos sobre a situação. Recordo-me dela confessar que estava a receber, naquela altura, os apoios da Segurança Social, e também de nos ter elucidado sobre a situação de vários colegas, alguns dos quais não recebiam rigorosamente nada e outros apenas 50 euros mensais. Foi exatamente na mesma altura em que o Ministério da Cultura responsabilizava a Segurança Social, ou seja, ninguém resolvia o problema nem sequer se assumiam culpas, e nós [artistas] estávamos indignados com todo este rol. Sendo que este filme nasceu de uma iniciativa de “dar trabalho”.

Talvez tenha sido esse gesto, possivelmente não de uma forma racional, que levou a que o filme apresentasse uma comunidade de cinema, porque é quase um manifesto ao facto de um sector estar a ser negligenciado pelo Estado, que sacudiu as suas responsabilidades. Nós não podíamos remediar. Nessa altura estávamos empenhados e envolvidos com outras pessoas do cinema em pedir um fundo de emergência para o sector, que era algo que já existia noutros países, onde vários projetos ficaram igualmente paralisados mas onde mesmo assim se conseguiram implementar fundos de emergência para auxiliar os técnicos e os atores, muitos deles sem trabalho. Estávamos a lutar por isso, mas infelizmente tal nunca aconteceu. A única possibilidade que nós tínhamos era este projeto, numa escala muito reduzida visto que o filme obteve um orçamento muito limitado e não concorreu ao ICA nem seguimos os canais de financiamento normais para produzir filmes na Europa.

E se concorressem ao ICA...

Não havia tempo sequer…

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sim, mas se concorressem como apresentariam o projeto? Para o ICA é preciso apresentar um rascunho do projeto e visto que “Diários de Otsoga” é um filme livre e sem guião definido, como o fariam?

Pois, ia ser complicado. Porque a ideia era precisamente reunirmo-nos, que era algo que nos faltava (a pandemia afastou-nos, quer física quer espiritualmente), e realizar um filme que nascia da nossa partilha de um tempo, que era o tempo daquela rodagem. Se apresentássemos o projeto, ele teria que ser diferente e isso trairia o pretendido, até porque chegámos aquela casa com “folhas em branco”, possivelmente com três ou quatros apontamentos. Havia a convicção e o desejo de poder surgir um filme a partir da nossa experiência naquela casa em tentar criar um filme, e isso torna-se um assunto dentro do próprio filme - a história de uma rodagem de um filme. E pensando desta maneira não o conseguiríamos fazer através dessa aplicação aos fundos do Instituto de Cinema.

O seu filme traz-me à memória aquela frase batida de Jacques Rivette, de que “os melhores filmes são sempre documentários sobre a sua rodagem”?

Exato, íamos fazendo o filme e integrando nele aquilo que ia sucedendo. Algumas coisas com relevância nas nossas vidas, outras fruto do quotidiano. No fundo, é um filme que nasce de uma dor de dentes ou do “vou dar banho aos cães, por isso esta cena deveria estar no filme”, coisas assim. E o “Diários de Otsoga” fez-se dessa maneira, sendo que é preciso desconfiar um bocado daquilo que aparece nos filmes. Ou seja, por um lado o filme tem um lado de espelho da nossa experiência de intimidade naquela casa, na medida em que íamos escrevendo o filme quase sem o saber, mas por outro lado é um objeto de ficção, o espelho é sempre deformado e não é um reflexo absoluto da realidade. A meu ver, é uma ideia um pouco ingénua de que tudo o que está neste filme é a fabricação do próprio filme.

O Miguel e a Maureen apresentam vários desafios ao longo do filme, ao espectador e a vós próprios. A começar pelo beijo que em tempos pandémicos era quase assunto tabu, e a questão do tempo jogado pelo filme - falo obviamente da escolha da borboleta e do marmelo que vai apodrecendo ao longo do ecrã, elementos que brincam com a inversão temporal da obra. 

Bem, estamos a falar de coisas diferentes. O beijo foi das poucas ideias iniciais que trouxemos para casa como um desafios às regras COVID, e como inventámos este método, este modelo de produção que era o de estarmos isolados naquela casa, e como tínhamos um diário invertido que começava pelo último dia de rodagem e terminava no primeiro, poderíamos contornar os perigos de uma cena de beijo, filmando-a no último dia mas montando-a ao contrário.

Quanto à questão da borboleta e do fruto: é que o fruto é, basicamente, um marcador de tempo. Se me perguntares do que se trata do filme, posso ter várias respostas, mas uma delas é que é um filme sobre o tempo, no sentido, em que o facto de o tempo estar invertido o torna numa propriedade própria do cinema, o de manipular a natureza do tempo e desfazer a linearidade da vida. Igualmente é um filme sobre o tempo, porque dos 22 dias que passámos, o espectador nunca conta com verdadeiras surpresas, uma vez que “Diários de Otsoga” não trabalha em termos narrativos para constantes mudanças ou revelações de argumento mas vai mudando de uma forma mais próxima do decurso normal do tempo, ou seja o filme é praticamente estável.

Talvez seja só um momento em que percebemos, por fim, que se trata da rodagem de um filme, mas de resto nada ou pouco altera o nosso percurso. E é aí que entra o fruto, porque é à luz do tempo que aquele fruto altera, ele não é intacto ao tempo. A olho nu nada altera, mas voltando àquele mesmo fruto de três em três dias poderíamos constatar e registar as suas alterações. No fundo, o fruto é o medidor do tempo do filme, e precisávamos disso aqui, em contraste com o que pouco alterna na ação do filme. Mas entre o princípio e o fim de “Diários de Otsoga”, tudo muda. Entre uma festa e outra, há uma grande alteração, percebemos o filme de uma maneira diferente e percebemos isso com a estrutura do tempo.

Já as borboletas, elas são efémeras. Mas a ideia surgiu com a própria natureza da herdade que albergava imensas gaiolas e animais como pavões, galinhas, papagaios, e até havia um canil, e nós queríamos uma construção, que com a montagem iria gradualmente desaparecer. Foi a Maureen que surgiu com a ideia do borboletário.

Existe um momento do filme, em que o Miguel e a Maureen se ausentam da rodagem, deixando o trio de atores (Carloto Cotta, Crista Alfaiate e João Nunes Monteiro) a assumirem o cargo de realizadores. Segundo a Crista Alfaiate, foram três bobines. Confirma?

Já não me recordo quantas bobinas eram, mas havia ali um limite… é capaz de ter sido três, julgo que era isso que tínhamos diariamente programado para gastar. Era a média. Como somos democráticos, achámos que eles tinham por direito as mesmas oportunidades que nós próprios tínhamos enquanto realizadores. E se nesse dia não íamos realizar, porque não dar a vez a eles? Por isso demos-lhes a mesma quantidade de película que usávamos por dia.

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"Diários de Otsoga" (2021)

Sem mencionar a equipa de técnicos, com grande parte dos quais já tinha trabalhado, no campo dos atores, Crista Alfaiate e Carloto Cotta são faces familiares na sua filmografia mas João Nunes Monteiro ("Mosquito") é quase como um extraterrestre neste seio “familiar”.

Pois, a personagem dele é um bocado extraterrestre… Enfim, o Carloto e a Crista já tinham trabalhado comigo e juntos no “As Mil e uma Noites”, por isso já se conheciam bem. Quanto ao João Monteiro, nunca tínhamos trabalhado com ele, foi-nos recomendado por várias pessoas e vimos algum do seu trabalho, e ele acaba por ter um lado desprotegido, é aquele tipo que não consegue pregar um prego [risos]. Ele tem aquele lado mais frágil, o que funciona como um bom contraponto com o lado, um bocado mais bruto do Carloto, e portanto estávamos convencidos que ele poderia dar mais qualquer coisa para aquele triângulo, um lado que poderia ser interessante.

Repescando as questões iniciais da nossa conversa, é um facto que a pandemia lhe “parou” dois projetos. O que é feito deles? Acredita que vai regressar a eles?

Claro. Temos sempre essa esperança. Penso que um deles é mais possível que o outro. “A Selvajaria" será rodado no Brasil e é importante que seja filmado no exacto local onde decorreu a Guerra de Canudos, mas é um filme muito pesado em termos de produção, com muita figuração, técnicos e portanto vai acontecer um ajuntamento de gente, que é impossível neste exato momento. Imperativamente tem que ser rodado no Brasil, porque o livro [de Euclides da Cunha] é sobre aquele lugar e sobre aquelas pessoas, seria batota filmá-lo num outro lugar. Quero ser fiel aquela comunidade, muitos deles descendentes dos sobreviventes da guerra. Não posso trair o meu filme. O que tem acontecido é uma renegociação com os financiadores, porque o projeto está altamente financiado, para que possamos adiar as rodagens para uma altura mais adequada.

E o outro, “The Grand Tour”, é um filme de estúdio mas que não é leve em termos de produção e em figuração. Mas como é em estúdio, possivelmente conseguiremos arranjar uma maneira / solução.

É um facto que o Miguel recorre facilmente a coproduções. Sente de alguma forma que isso é uma solução para o escasso financiamento ao cinema português por parte do seu instituto?

As coproduções são necessárias para reunir uma certa quantidade de dinheiro para concretizar determinados projetos. Este é o meu quinto filme, e é a meias, não é totalmente meu, portanto digo que não tenho um número suficiente de filmes para ter uma estatística ou um plano geral.

Mas no caso do “Diário de Otsoga”, como referiu, não usufruiu de nenhum apoio estatal ou do Instituto. É possível contornar essa fonte orçamental?

Eu faço os filmes possíveis em cada momento e com interesse de os fazer. E por vezes, para os fazer, é preciso coproduções. Surgiram vários debates, muitos deles históricos ocorridos nos anos 90, de como seria a estratégia de produção em Portugal. Discutia-se menos filmes mas com orçamentos superiores ou menos dinheiro mas um número maior de filmes. Acrescentando nisto tudo que há um subfinanciamento crónico no cinema português. Fui defensor, e julgo que deverei sê-lo, de um maior número possível de filmes. Sou contra a ideia, que acho que está estabelecida, de 600 mil euros de teto máximo de financiamento do ICA para uma longa-metragem, e mesmo assim produz-se muito pouco. Julgo que são 10 a 11 longas produzidas em Portugal por ano.

Tendo em conta esse teto máximo, eu para conseguir concretizar os meus projetos recorro a outras formas de financiamento sem ser o ICA. Essa é a solução, não só para Portugal mas para a Europa e até mesmo fora dela, para financiar filmes de produção mais pesada. Mas gostaria de salientar que este filme, apesar do seu orçamento, não é menos ambicioso que um “As Mil e uma Noites”. Os filmes não se medem pelos seus orçamentos.

Falando com Crista Alfaiate, a musa confinada de Miguel Gomes e de Maureen Fazendeiro

Hugo Gomes, 17.08.21

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Impossibilitado de levar avante os seus projetos por causa da pandemia, Miguel Gomes e a sua companheira e cineasta Maureen Fazendeiro fecharam-se numa herdade com uma equipa e três atores em agosto de 2020 para procurar a cerne de todos os “filmes de confinamento”.

Diários De Otsoga”, o resultado, tem um pouco de tudo: absurdismo, experimentalismo e estética. É uma obra em permanente busca do seu espírito, sem nunca perder a sua liberdade, recebida com inúmeros elogios após a apresentação na secção paralela “Quinzena dos Realizadores” da mais recente edição do Festival de Cannes.

No caso de Miguel Gomes, este desafio cinematográfico foi também um reencontro com Crista Alfaiate, atriz que há poucos anos figurou num lugar de destaque nas “crónicas do país triste” de “As Mil e uma Noites”: ela foi Sherazade, não por um dia, mas por três filmes.

Agora é ela própria num filme ao lado de Carloto Cotta e a revelação de “MosquitoJoão Nunes Monteiro, onde se revela uma artesã do improviso, da experimentação e, sobretudo, da liberdade artística.

Antes de mais, gostaria que me explicasse como surgiu a ideia para este projeto e como o integrou?

O Miguel tem mencionado um encontro específico - a primeira vez que saíram de casa [depois do confinamento] - em minha casa e a do Rui Monteiro [técnico de iluminação]. Aí conversámos sobre a impossibilidade de se realizar espetáculos, de teatro - como é o meu caso e do Rui - e de cinema, como era o caso do Miguel, que tinha duas produções paradas. Nessa conversa surgiu uma ideia contracorrente, uma motivação resumida como "temos que, imperativamente, fazer um filme". Contornar esta impaciência, esta realidade, esta fatalidade, em suma, esta pandemia. Partimos para dentro desta casa, todos nós testados, e tendo em conta o tempo, embarcamos nesta viagem sem um guião estabelecido.

Ou seja, este é um filme totalmente dependente do improviso?

Existe muita 'coisa' planeada, nomeada a estrutura trazida pela Maureen e pelo Miguel, mas no geral o filme foi movido pela improvisação, tendo muito sido escrito ao longo do processo de rodagem. Respondendo à pergunta, sim, houve uma experimentação ao longo desta produção, mas estabeleceram-se balizas para o que se propunha.

Então, o que poderemos considerar real e que é ficção no “Diários de Otsoga”?

Acho mesmo que o interessante do filme é o de não ter a perceção do que é real e o que foi simplesmente encenado. É algo que deixamos no ar, para que o espectador pense no que realmente está a ver, até porque a mecânica do mesmo é exposta. A maneira como se filma, a equipa que filma e até mesmo a localização da câmara. Este jogo, que é uma certa manipulação por parte da Maureen e do Miguel na sala de montagem, e não só, é conceção da estrutura, é interessante e é estimulante ficar-se com dúvidas. Ou seja, uma resposta para uma dessas perguntas é que não responde ao que se pretende.

Nesse sentido, podemos considerar o filme como docuficção?

Diria que é mais... ficção. Mais do que docuficção.

A narrativa de “Diários de Otsoga” é inversa. Houve um convencionalismo na rodagem ou tudo se baseou na sala de montagem?

Poderemos dizer que foi uma rodagem convencional, porque seguimos à luz do diário, mas ao mesmo tempo não o foi, até porque estávamos todos na mesma casa, sem guião preparado, ou seja, pensávamos somente naquilo que iríamos fazer no instante, no seguinte. Não havia um cronograma rígido.

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Tendo com conta a sua experiência com o realizador na trilogia “As Mil e uma Noites”, sentiu estar num filme do Miguel Gomes ou da Maureen Fazendeiro?

Há “inputs” no filme que são muito diferentes. Aliás, tudo isto é uma combinação de duas fixações. Para já, a diferença é filmar com um realizador e o de filmar com dois realizadores. E depois há obsessões distintas, que na minha perspetiva, se juntaram muito bem. Ou seja, não existem particularmente ‘coisas’ que possamos apontar e afirmar que “isto é do Miguel e isto é da Maureen”. A construção da obsessão dos dois está muito... como diria... ligada. Também a grande diferença é que este filme está carregado da vida deles. A sua vida conjunta. No fundo, “Diários de Otsoga” é a vida de um casal e a chegada de um bebé que interfere nesse processo de criação e de realização. Tivemos que mudar todo o processo para que Maureen pudesse acompanhar as filmagens e, ao mesmo tempo, cuidar do seu bebé. Ela foi a única que pôde sair da casa – para a ecografia e nesse dia o Miguel teve que acompanhá-la –, o que alterou automaticamente toda a trajetória do filme, deixando nós [atores] a tomar conta e a continuar. Tudo muda, até mesmo a informação trazida deste casal “contamina-nos”, porque estávamos todos confinados e juntos.

Sobre esta emancipação do ator em relação ao filme e apropriando-me de uma frase do Carloto Cotta: esse dia foi um “desperdício de fita”?

Gastámos três bobines... só naquele dia! [risos] Filmamos várias cenas, grande parte não chegou à montagem final. Posso adiantar, por exemplo, que fechamos o diretor de fotografia, Mário Castanheira, na gaiola dos pássaros. Mas apesar de tudo isto, não acredito que tenha sido um "desperdício" de fita. Pelo processo, pela liberdade que tínhamos, pela proposta e sobretudo pela possibilidade de lançar três bobines para a mão de um trio de atores e de uma equipa e esperar para ver o que realmente acontece. Aconteceu neste filme, porque o Miguel e a Maureen estavam abertos a tais propostas, e tendo em conta que tínhamos em mão um projeto sem guião predefinido, nos deram possibilidades para integrar a experiência. O gesto foi o de “o que podemos retirar dos nossos dias” e nisso resultou uma provocação. Para nós, foi incrível sermos realizadores por um dia.

Visto que “Diários de Otsoga” é um filme sobre confinamento e, logicamente, de pandemia, como vê este cenário no vosso trabalho enquanto atores? Ou melhor, enquanto trabalhadores no ramo?

Aqui [França] já foi anunciado que, para aceder às salas de cinema, será necessário um certificado ou um comprovativo de teste negativo. Portugal possivelmente seguirá o mesmo caminho, o que será uma grande “facada” ao sector, não só para o cinema mas também para a cultura em geral. Esta medida será como “cortar as pernas” ao percurso destes projetos. E como vejo isso? Trágico. Simplesmente trágico, porque influencia a vida em todo o sentido. Não levará o trabalho ao seu máximo potencial e ao seu expoente de visualização. E já era assustador quando nos deparávamos com os números de cinema português, e ainda mais de teatro. Eram péssimos. E os orçamentos? Nem vale a pena mencionar isso. E só de pensar que não haverá algum tipo de retorno e alguns projetos nem irão arrancar. Isso afeta o nosso trabalho e a nossa vida.

O streaming como ser uma alternativa para o vosso trabalho? Tem sido anunciada a criação de algumas produções nacionais em plataformas como Netflix ou HBO.

Pode ser uma alternativa de trabalho, mas não será uma solução para a produção nacional. O filme continua a querer ser visto na sala de cinema, com a qualidade que se quer e a qualidade que se tem. E com os tempos e duração específica de cada produção. Normalmente existe uma tendência de formatação e globalização, para que isto caiba num catálogo de streaming, mas que não é de todo a mesma ‘coisa’ que cinema de autor. Falo de cinema de autor, porque é aquele cinema que solicita o seu invariável tempo e a sua linguagem, e que não corresponde a um público-alvo ou a uma etiqueta do catálogo.

Fitas, borboletas e dias de desespero

Hugo Gomes, 25.07.21

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Ame-se ou odeie (é bem verdade que na última opção continua dependente a uma vincada ideologia de como o cinema português deve ser produzido e “consumido”), Miguel Gomes já estabeleceu o seu lugar na nossa cinematografia como dos mais ambiciosos realizadores da nossa praça, como também dos mais internacionais (apenas equiparado a Pedro Costa ou o legado deixado por Manoel de Oliveira).

Com a sensação que foi “Aquele Querido Mês de Agosto”, a aclamação unânime de “Tabu”, uma canção que ressoa nos cantos e recantos do passado colonialista, o pretensiosismo discutido das “crónicas de um país triste” numa recitação de um clássico intemporal literário – “As Mil e uma Noites” – e as promessas de um projeto ainda maior intitulado de “Selvajaria”, Gomes, em plena pandemia, retorna numa trajetória contra-maré, não somente narrativamente, e sim produtiva. 

Co-realizado com a sua companheira Maureen Fazendeiro (“Sol Negro”), “Diários de Otsoga” é a cerne dos filmes de confinamento, um verité de um método de construção e igualmente de desconstrução, o qual dois realizadores e a sua respetiva equipa barricam-se numa herdade com o intuito de concretizarem o seu filme. O “filme”, esse mal-amparado MacGuffin, é a tese em elaboração de como o cinema poderá se comportar perante as drásticas mudanças sociais que condicionam o seu processo criativo, sem nunca envergar pela limitação desse quadrante, pelo contrário, a ausência e a indisponibilidade de recursos. 

Carloto Cotta (presença repetente na filmografia de Gomes), Crista Alfaiate (descoberta do realizador em “As Mil e uma Noites”) e a revelação de “Mosquito”, João Nunes Monteiro (com o desafio de distorcer a sua própria imagem) são os atores desta inversa metamorfose (em paralelização com o borboletário e do marmelo em decomposição que serve de núcleo e de termostato a esta “história”) criada em constância pelos realizadores. Aprimorado por momentos humorísticos, satíricos para com o processo fílmico (basta verificar o ponto alto em que os atores comandam o filme, “que desperdício de fita” exclama Cotta) e de puro burlesco, a veia que Gomes parece ter herdado de João César Monteiro, “Diários de Otsoga” funcionam como um exercício labiríntico de devaneios e de busca inspiracional no seu formato de aparentado caos. 

Só que, e falando na língua de Miguel Gomes, o filme é marcado com uma regressão à génese [“A Cara que Mereces”], onde verificamos novamente o fascínio pelos inventários e do cinema regulamentado pelas suas estabelecidas e rígidas regras. Ou seja, há mais controlo nesta exibida “desarrumação” do que supostamente exibe.