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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

KULTURfest 2025: o 'K' que une cultura e cinema. Começa a segunda edição!

Hugo Gomes, 26.04.25

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"Solo Sunny" ( Konrad Wolf, 1980): exibido no dia 29 de abril, pelas 21h00, na Casa Comum | Universidade do Porto

Contemos cultura com “K”, à boa moda alemã, conectando também com a palavra “Kino”, cinema no linguajar germânico. A KULTURfest chega à sua segunda edição, partindo da cidade Invicta até à capital, com a missão de difundir essa cultura, atravessando as mais diversas artes. O cinema é apenas um dos ramos … e até um dos mais políticos.

O KULTURfest – Festival de Culturas de Expressão Alemã arranca já amanhã (27/04) no Porto, no dia 21 em Lisboa, e prossegue depois para outras cidades portuguesas. Toda a programação poderá ser consultada aqui. Entretanto, Teresa Althen e Jana Binder, programadoras do evento, responderam ao desafio do Cinematograficamente Falando…

Depois da primeira edição em 2024, que desafios encontrou na programação desta segunda edição do KULTURfest? Houve necessidade de limar algumas arestas ou repensar direções? 

O KULTURfest 2024 foi um projeto piloto para descobrir se um festival interdisciplinar, direcionado a diferentes públicos, poderia ter sucesso. No final da primeira edição fizemos uma avaliação do projeto e ficámos surpreendidos com o quão bem funcionou em Lisboa, o que nos encorajou não só a planear uma segunda edição, mas também a expandir o programa para outros locais, tentando sempre ir ao encontro das necessidades do público e das questões pertinentes da atualidade que ampliem o intercâmbio cultural. Este ano, o Porto dá início ao festival com um programa desenvolvido em colaboração com a Universidade do Porto – Casa Comum, onde terão lugar a maioria dos eventos. Já em Lisboa, o festival volta a dinamizar as instalações do Goethe-Institut em Lisboa. Mantêm-se, é claro, as parcerias, e os eventos fora de portas, quando as necessidades técnicas dos espetáculos assim o ditem.  

O KULTURfest propõe um cruzamento ambicioso entre cinema, performance, gastronomia e música. A intenção é construir um retrato abrangente da cultura germânica ou criar antes uma experiência sensorial que ultrapassa o plano meramente didático? 

A diversidade da cultura é mostrada através da junção de vários tipos de artes e ofertas culturais, abrangendo um público mais lato. Acreditamos que as duas coisas não se excluem mutuamente: o intuito não é a didatização, mas sim fazer parte da experiência de imersão cultural que propomos.  

Ao criar a programação do KULTURfest 2025, tivemos em mente diversos aspetos, dando prioridade à representatividade e ao diálogo intercultural. Em primeiro lugar, procurámos o que se destacou na produção artística na Alemanha no último ano e meio nas áreas da música, do cinema, da performance, das exposições. Depois, identificámos aniversários marcantes que nos permitem olhar mais de perto para uma determinada personalidade ou acontecimento histórico e que pudessem ser relevantes nos dias atuais. Também procurámos propostas que pudessem interessar não só a um público que já teve contacto com a cultura de língua alemã, mas aos públicos que o fazem agora pela primeira vez. E, finalmente, tentámos integrar propostas não só da Alemanha, mas também de outros países de expressão alemã: Áustria, Luxemburgo e Suíça

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias propostas culturais que incluímos tanto na programação do Porto, como na de Lisboa, sempre tendo em conta o que os diversos espaços onde o festival vai ter lugar têm para oferecer.  

Com tantas entidades envolvidas e um programa que se estende por várias cidades, como é que se assegura uma identidade coesa ao festival? O que impede o KULTURfest de se tornar apenas um mosaico de eventos isolados?

Um projeto feito a várias mãos é sempre um desafio, e a colaboração com muitos parceiros torna o processo mais complicado de gerir, porque é necessário dar resposta a necessidades e públicos muito diferentes. Mas sabemos que um bom trabalho cultural consiste em misturar o invulgar e pôr em contacto diferentes públicos. Isto pode levar a experiências emocionantes. As temáticas abordadas no KULTURfest 2025 - reunificação/divisão da Alemanha e da sua sociedade; migração; papel das mulheres - mantêm-se. Já a forma como abordamos os temas nas diferentes cidades varia. Em cada cidade por onde o KULTURfest 2025 vai passar, a oferta é diferente e adaptada aos parceiros locais, aos espaços que nos acolhem, que têm as suas especificidades e constrangimentos. O programa do KULTURfest não é, por isso, só um. É um programa adaptado a cada cidade e a cada realidade, e onde os elementos funcionam tanto em conjunto, como também de forma isolada.

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“Zwei zu Eins” (Natja Brunckhorst, 2024): exibido no 28 de abril, pelas 21h30, na Casa Comum | Universidade do Porto

Num momento em que a Europa volta a confrontar-se com temas como fronteiras, migração e identidade, de que forma o KULTURfest aborda estas questões, nomeadamente a (e)migração, sem cair em leituras simplistas ou mensagens unidimensionais? 

Estes são temas que nunca deixam de ser atuais e que são recorrentes no trabalho do Goethe-Institut por todo o mundo. Acreditamos que o intuito do festival é trazer à tona discussões aprofundadas sobre este e outros temas de interesse contemporâneo, construindo senso crítico e dando voz a diferentes experiências e concepções.   

A partir destes conceitos, em 2025, desenvolveram-se diálogos entre as várias ofertas do festival. Um programa de filmes e debates tenta abordar por que razão as duas Alemanhas ainda não se uniram completamente, mesmo 35 anos após a reunificação, o que levou a que uma parte da Alemanha hoje apoie um partido com fortes tendências antidemocráticas. O programa de exposições e debates foca-se no tema da migração, tanto no passado quanto no presente. Também temos propostas que convidam o público a discutir temas que há 100 anos também eram muito presentes, como é o caso da conversa sobre o autor Thomas Mann, onde se reflete sobre a resistência artística no passado e no presente. Isto, no entanto, sem esquecer que o KULTURfest continua a ser um festival cultural na sua essência. 

Na seleção cinematográfica nota-se uma forte presença de comédias e sátiras. Esta escolha reflete uma tendência no cinema germânico contemporâneo de lidar com a realidade através do humor, ou é também uma forma deliberada de provocar reflexão sem recorrer ao dramatismo? 

O cinema de expressão alemã não é conhecido por lidar com a realidade de forma humorística e leve. Durante o KULTURfest, foi importante podermos mostrar que existe uma maior variedade no cinema de expressão alemã, provar que existem ofertas para todos os gostos, o que contraria um pouco o estigma mais “pesado”. Os filmes que escolhemos para esta edição apresentam diversas formas de abordar a realidade (e a história), como é o caso do filme de abertura no Porto e em Lisboa, “Dois por um” (“Zwei zu Eins”), uma comédia mais “feel good”, mas ao mesmo tempo honesta sobre a reunificação alemã, e que junta um elenco de luxo, onde se destaca Sandra Hüller (“Anatomie d'une chute”). Já o filme de encerramento no Porto, “Veni vidi vici” (Daniel Hoesl e Julia Niemann, 2024) é uma sátira política austríaca bastante forte. Pode-se observar de facto um “talento especial” para este género no cinema austríaco, com realizadores como Ulrich Seidl (que produziu o filme em questão), e um humor bastante sarcástico e ácido, que é usado para refletir sobre questões pesadas da nossa sociedade.

O KULTURfest surge no rescaldo do desaparecimento do KINO – Festival de Cinema de Expressão Alemã. Este novo festival procura ocupar esse espaço ou representa uma evolução com um escopo mais alargado e interdisciplinar? 

O KULTURfest tem origem não só na mostra de cinema KINO, mas também no festival de jazz europeu JIGG – Jazz im Goethe-Garten. Devido aos graves cortes orçamentais no setor cultural alemão, ambos os festivais deixaram, infelizmente, de existir. A dimensão de ambos os festivais também significava que dificilmente conseguíamos não só explorar outros géneros, mas também levar estes festivais a outras cidades, dado que ambos os festivais se realizavam principalmente em Lisboa. O KULTURfest é, por isso, uma oportunidade de explorar algo novo – tanto em termos de formato e de temas, como de locais.  

Ambições para a terceira edição ou futuras? 

As nossas ambições são sempre muito elevadas, claro. Temos muitas ideias, muitos artistas e projetos que gostaríamos de trazer até Portugal, colaborações e conversas que gostaríamos de incentivar. Mas vamos primeiro avaliar como corre esta edição, e depois refletir sobre o mesmo. Também caberá aos nossos parceiros e patrocinadores fazerem a mesma avaliação e decidir se estão interessados em apoiar-nos no futuro. 

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Na Cave penetrando os nossos profundos “interiores”

Hugo Gomes, 05.10.14

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D.W. Griffith observava que, para fazer um filme, bastava juntar uma mulher e uma arma, dando a entender quão básica e rudimentar se podia tornar a indústria cinematográfica. Em “Im Keller" existe uma sequência em que três conhecidos discutem sobre o “estado do mundo” de forma tão generalizada, estereotipada e, em todo o caso, desinformada sobre o que realmente se passa ao seu redor, o qual ilustra perfeitamente essa ideia. O diálogo é motivado pelo tema da Mulher, enquanto o trio partilha uma notória paixão por armas. Apesar disso, Ulrich Seidl não nos entrega mais um filme sobre a simplicidade ou mediocridades humanas. Pelo contrário, aposta numa temática que celebra a diversidade de mundos isolados.

O filme segue as várias “viagens” à intimidade das personagens, retratadas nas respetivas caves, espaços convertidos em refúgios de identidade, por vezes tocando a perversidade voyeurista. O cineasta austríaco impregna o filme do seu já característico fetichismo, regressando à sua faceta cruel de trocista da diversidade humana. Mais uma vez, Seidl apresenta-se como o maior inimigo das suas próprias personagens – que coloca num verdadeiro circo de aberrações, à mercê do julgamento do espectador e, solenemente, da sua compaixão.

O espectador, aliás, é confrontado com um sentimento de culpa, por se sentir cúmplice na violação da privacidade destas figuras insólitas, como um intruso num mundo que claramente não lhe pertence. E, acreditem, algumas destas figuras são de digestão difícil. Tal como na trilogia “Paradise”, Seidl demonstra-se incapaz de povoar o seu cinema com emoções genuínas: oferece-nos, em vez disso, um olhar crítico e mordaz, pautado por um humor negro e irónico que muito poucos cineastas conseguem executar com tamanha precisão.

“Im Keller” destaca aquilo que muitos já suspeitavam: por detrás das “sociedades perfeitas” esconde-se uma bizarria inerente à condição humana. Aliás, numa leitura metafórica, cada indivíduo possui a sua própria cave!

As esperançosas paixões adolescentes que integram o Paraíso!

Hugo Gomes, 08.07.14

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Depois da luxúria disfarçada sob a promessa de "Hakuna Matata" em “Liebe” (“Amor) e do fanatismo religioso imerso em disputas conjugais em “Glaube” (“”), chegamos a “Hoffnung” (“Esperança”), o terceiro e último capítulo da trilogia “Paradies” (“Paraíso”), do austríaco Ulrich Seidl. Contudo, este Paraíso revela-se mais uma vez ilusório, num filme que, embora alinhado com os anteriores, se apresenta como o mais leve e menos controverso, contrastando com o habitual rigor corrosivo do realizador.

Desta vez, seguimos Melanie (Melanie Lenz), filha de Teresa (“Liebe”) e sobrinha de Anna Maria (“Glaube”), uma adolescente obesa enviada para uma colónia de férias onde prevalecem disciplina marcial e um programa rigoroso de emagrecimento. Envolvida nesse ambiente opressivo, Melanie encontra refúgio numa paixão pelo médico da colónia – um amor impossível, mas que alimenta a sua inocente esperança. A jovem procura, no meio do caos disciplinar, um vislumbre de afeto num espaço onde o corpo e a alma são submetidos a contínua vigilância.

Hoffnung” distingue-se pela abordagem mais estética e pela suavidade narrativa, marcando uma aparente hesitação de Seidl em transgredir as linhas de rebeldia que definem o seu cinema. A temática juvenil, embora carregada de potencial, mergulha em clichês e previsibilidade, diluindo o impacto cru e ácido dos capítulos anteriores. Falta-lhe a intensidade polémica de “Liebe” e a visceralidade simbólica de “Glaube”. Ao invés disso, o cineasta entrega uma narrativa, por vezes, mecanicamente e previsivelmente roçada, recorrendo frequentemente à simetria visual. Esta obsessão pelo enquadramento estético traz à mente o quadro à lá Wes Anderson, embora sem os movimentos meticulosos e  que caracterizam o norte-americano.

Ainda assim, o elenco jovem oferece autenticidade e uma naturalidade crua às cenas, o que reforça o realismo que Seidl tanto procura. Porém, nem a força interpretativa dos atores consegue resgatar o filme da sensação de ser o desfecho mais frágil da trilogia. As sequências non sense que surgem pontualmente apenas acentuam o deslocamento de "Hoffnung" em relação ao universo coeso e provocador construído até então.

No fim,  é uma conclusão que decepciona pela sua leveza excessiva, num contraste flagrante com a audácia e intensidade dos capítulos anteriores. O Paraíso, afinal, nunca esteve tão distante.

Duas religiões, um só tecto.

Hugo Gomes, 07.07.14

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Na segunda parte da trilogia “Paradies” (“Paraíso”), Ulrich Seidl entrega em “Glaube” (“”) a obra mais pessoal e delicada da sua carreira, assente numa crítica mordaz às feridas abertas da religião e às hipocrisias das sociedades ocidentais (marca própria da cinematografia seidliana). Derivado da sua educação católica fervorosa, o cineasta, prestes a tornar-se padre e perante essa experiência, segundo o qual perturbadora, mergulha nessa íntima e desconfortável autognose, explicitando o que testemunhou e o levou a rejeitar o predestinado caminho religioso. O resultado de tal divã é um filme corrosivo, provocante, mas profundamente metafórico, ancorado no realismo cru que respeita o seu modus operandi, algures entre o observatório documental e a crueza ficcional (um tanto de Haneke e a sua escola feita e difundida).

Em “Glaube”, seguimos Anna Maria (Maria Hofstätter), uma fervorosa católica que dedica os dias a tentar converter imigrantes em Viena. A sua fé, porém, é abalada pelo regresso de Nabil (Nabil Saleh), o marido paraplégico e muçulmano – uma religião desprezada por Anna Maria. Sob o mesmo teto, desenvolve-se uma disputa conjugal que também funciona como alegoria dos confrontos religiosos contemporâneos, pontuada por insultos e violência física. Seidl transforma este mero conflito doméstico numa alegoria poderosa sobre os preconceitos religiosos, explorando como crenças profundamente enraizadas podem colidir em níveis mais íntimos. Uma Guerra das Rosas que nem é mais que uma Guerra Santa de pequenas dimensões. 

A abordagem de Seidl à religião é corajosa e desconcertantemente reveladora. A crítica à dependência religiosa e à falta de vontade individual surge de forma subtil, eficaz até, enquanto o filme expõe intolerância, menosprezo e conflitos que permeiam a fé. O regresso de Nabil, um muçulmano incapacitado, apresenta-se como um elemento irónico e simbólico, expondo a fragilidade dos preconceitos de Anna Maria e, por extensão, a habitual e recorrente crítica de Seidl à hipocrisia ocidental.

Apesar da premissa rica, “Glaube” apresenta uma reflexão claustrofóbica que nem sempre vai tão longe quanto promete, aliás, nunca quebra as quatros paredes que serve de asilo doméstico. A disputa religiosa e conjugal, embora nunca fugindo aos seus traços controversos, não se desenvolve com a profundidade esperada, resultando numa contenção narrativa que depende da capacidade de interpretação do espectador em vez de o guiar por imagens esclarecedoras (ainda que a cena de emulação de sexo com a estatueta de Cristo seja, não só uma pedrada no "charco" da nossa suscetibilidade, como também uma alusão à adoração cega, reprimida e até ao desejo sexual latente). Contudo, faz-se notar que o desempenho de Maria Hofstätter é extraordinário. Anna Maria é talvez a personagem mais consistente do universo de Seidl, uma personificação fantasmagórica do passado religioso do cineasta.

Vencedor do Prémio Especial do Júri no Festival de Veneza de 2012, “Glaube” reforça o estilo de Seidl: realista, explícito e narrativamente silencioso … e com umas quantas lambidas na cruz. Num final imprevisível, confronta-nos com a queda da fé e o vazio que a acompanha. Este é, sem dúvida, o capítulo mais íntimo e sensível da trilogia, consolidando Seidl como mestre do desconforto sem espectacularização.

Procura-se amor, ou ‘coisa’ que o valha, nos trópicos

Hugo Gomes, 06.07.14

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Cada ser procura o seu próprio paraíso! “Liebe” (“Amor”), “Glaube” (“Fé”) e “Hoffnung” (“Esperança”) compõem a trilogia “Paradies” (“Paraíso”), uma obra-padrão da filmografia de Ulrich Seidl, marcada pela sua visão corrosiva e sem concessões sobre uma sociedade ocidental hipócrita e dicotómica. Apresentada individualmente nos Festivais de Cinema de Cannes, Veneza e Berlim, esta trilogia pode ser vista separadamente, mas há uma linha condutora que une as histórias: o parentesco entre as protagonistas e o desconforto inescapável que desafia o público.

Paradies: Liebe”, o primeiro capítulo, apresenta-nos Teresa (Margarete Tiesel), uma mulher cinquentona vienense que embarca numa viagem ao Quénia salivando por turismo sexual. À chegada ao paraíso tropical, Teresa ilude-se nos seus próprios propósitos, tentando encontrar não apenas prazer, mas também o amor puro e sincero que sempre idealizou. Contudo, procura-o nos locais errados, entre homens que se tornam tanto instrumentos de fantasia como representações cruas de um sistema onde o afeto se transforma em negócio. Teresa, no entanto, é incapaz de amar ou ser amada – uma figura simultaneamente trágica e irónica no universo impiedoso de Seidl.

O cineasta desvela o amor enquanto transação, expondo corpos e emoções com uma frontalidade rara. Não enriquece as suas personagens nem as desenvolve: limita-se a esquematizá-las, quase como peças de um estudo antropológico. Esse distanciamento ameniza, de certo modo, o choque das cenas mais provocadoras e obscenas, mas reforça a natureza crua e realista da abordagem. A narrativa surge como uma colisão entre o documental e o ficcional, ambas as vertentes detidas por humor negro e um observacionalismo sem lapsos de Seidl, um guia turístico desconfortável quanto implacável, ignorando qualquer necessidade de cativar ou agradar ao espectador - não é obrigado a ficar, a “porta” é serventia da casa.

Liebe” não é uma obra de fácil digestão. É brutal e irónica, desafia tabus e preconceitos, e coloca o público diante de um espelho desconcertante sobre o que separa Mundos, do primeiro a terceiro, a procura e a oferta, a fantasia e a cedência, com ecos de neocolonialismo. A busca de Teresa pelo amor nos trópicos, como quem procura o Santo Graal, não é apenas uma jornada pessoal, opera numa metáfora amarga sobre os desejos reprimidos e as hipocrisias (Seidl é o cineasta dos hipócritas, sem dúvida alguma) de um mundo cujas emoções mais humanas são as mais solicitadas mercadoria. Iguarias, portanto.

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