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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Na graça de Greice ...

Hugo Gomes, 31.08.24

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Novamente Lisboa! Não “uma” qualquer, a Lisboa de Leonardo Mouramateus, brasileiro vivendo como Colosso de Rhodes nestes dias - um pé em cada margem - fazendo da capital o seu biótopo, envergando-se num imperativo olhar “estrangeiro”. E é essa Lisboa com que ficamos, porque é nessa mesma que habita Greice, jovem estudantil, algo fura-vidas e com uma particularidade, uma mentirosa nata, e através disso, mesmo sem intenções de má-índole, a convivência com ela torna-se algo difícil, não só para as personagens do seu universo, como para nós, espectadores. 

Talvez seja nesta mesma figura, a de Greice, com encantamento próprio, graças ao corpo e alma de Amandyra, o qual nos deparamos com o melhor e o pior que esta obra tem para nos oferecer, e portanto, um desafio à nossa sensibilidade, ou hipersensibilidade empregada nos espectadores hoje de poderes atribuídos. Até porque Greice detém as marcas burlonas de quem se “vira como pode na vida”, por vezes sem olhar a meios a quem prejudica, mas igualmente exibe um lado doce, jovial e vivido, e uma fantasia às telenovelas que Mouramateus parece partilhar fascínio, que faz querer a sua companhia, com alguma distância é certo, isto envergado no dito olhar do realizador, essa perspetiva de Lisboa longe de miserabilismos e classes médias baixas, apenas imigrantes com alguma sorte na sua fatura e com Belas Artes no horizonte (vejam, a estátua de São Jerónimo, o primeiro artefato a sair da escuridão-génese do filme). 

Greice” espelha os mesmos trilhos do realizador em outros 'andamentos', nomeadamente a da sua anterior longa-metragem “A Vida São Dois Dias”, este “homesick” [saudades de casa] embrulhado numa certa recusa de voltar, um desraizamento e suave negação das suas origens. Lisboa, novamente essa, o lugar de pertença às suas figuras que se dão pelo nome de personagens e curiosamente é nessa mesma cidade que Mouramateus revela-se mais esmerado nos planos e nas suas conduções (existe um flashback integrado à ação, cujo um quiosque assume tendências antonionianas). Depois conta-se sempre com o seu “muso”, Mauro Soares, a servir de “pau mandado” [no bom sentido] a este imaginário citadino. 

Contudo, o desafio imposto por Greice, essa menina-migrante sedutora, que engraça como subsistência, e o de enquadrar-se numa espécie de bolha. Talvez seja isso mesmo que nos compele a distanciar-nos da jeitosa órbita da protagonista. Há algo nela e nas suas companhias “alfacinhas” de privilégio ou de uma nova “burguesia à rasca”, ligadas a esoterismos e moralidades pré-fabricadas.

Um pianista que sofre como um país

Hugo Gomes, 10.06.24

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Como lidar com a história recente portuguesa no nosso Cinema?”, questão colocada por um colega crítico, à porta de um visionamento qualquer, que tinha como ponto de partida o evidente fracasso de bilheteira que “Soares é Fixe”, da autoria de Sérgio Graciano, revelou ser. A conversa tendeu a apontar a inaptidão do filme em “adaptar” um dos momentos marcantes da área político-social de Portugal pós-25 de Abril, seguida pela comparação com outras cinematografias europeias na sua própria relação com a história do século XX e XXI. Conclusões? Nada foi obtido, apenas um lamento de quem … e não está sozinho nessa demanda … se indigna perante tal tratamento em nome do “cinema popular”. 

O fiasco funcionou como uma resposta de que existe um público, mesmo que normalmente desligado do seu nacionalizado cinema, nunca totalmente abraçado aos trabalhos gerados a “três pontapés”. Tal pergunta-desabafo desafiou-me a olhar para outros exemplos de história recente virados ao cinema, e felizmente, notei artesãos mais capazes em retratá-la que, apesar de não contrariar o panorama geral, dão-nos lições de moral aos “Soares é Fixe” desta vida. Um dos realizadores bem-intencionados nessas jornadas de olhar para dentro e para o horizonte passado é definitivamente Luís Filipe Rocha.

Convém salientar que 2024 é um ano de ‘renascimento’ para o cineasta, que popularmente conhecemos pelo pequeno êxito “Adeus Pai” (1996) ou do também muito divulgado “A Outra Margem” (2007), um palco completo à excelência performativa que era o ator Filipe Duarte (1973 - 2020). Com uma exibição feliz do seu raríssimo “Sinais de Vida” (1984), uma introspecção-homenagem a Jorge Sena numa experimentalidade biográfica enviesada numa breve retrospectiva à sua obra, na Cinemateca de Lisboa, o restauro do seu “Fuga” (1978), projetado em algumas sessões especiais, uma edição de luxo em DVD de “Cerromaior” (1980) e, por fim, o lançamento do seu mais recente trabalho - “O Teu Rosto Será o Último” - sete anos após do seu documentário “Rosas de Ermera”. Este último é uma adaptação do livro homónimo de João Pedro Ricardo, uma narrativa persistente num paralelismo para com as transformações de um país que se libertaria das amarras da sua opressão expressa em 40 anos de poder salazarista, e de uma guerra que cicatrizou a sua sociedade.

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Basta testemunhar a primeira sequência: um grupo de homens (e um padre à mistura, para distanciar os ‘servos de Deus’ dos ‘serventes de Deus’), que acompanham os televisados avanços da Revolução dos Cravos, cujo o olhar atento aos eventos é interrompido pelo chamamento de uma canja na sala de jantar. Seguem para a refeição e debatem sobre o sucedido, numa tertúlia recheada de certezas, dúvidas, conspirações, apelos e injúrias em modo comic relief. Não fomos introduzidos concretamente a estas personagens, e sinceramente, tal sequência soa-nos de uma inútil existência, a não ser pela perpetuação de dois factores, que mais tarde apercebemos apoiar: o contexto histórico-temporal que a narrativa adequará (pós-25 de Abril), e a insinuação, mesmo que discreta, de que o que veremos é uma intenção de aliar-se a esse percurso “revolucionário” (e contra-revolucionário) e manifestar-se como um drama de revisão a um país. 

Segue-se então o nosso enredo: uma das personagens daquela trupe será o avô (Pompeu José) do nosso protagonista, Duarte (Vicente Wallenstein em fase adulta), que desde criança descobre um dom, uma destreza (ou talento) para o piano. Os pais (Rita Durão [a mãe] a convencer-nos que 2024 é o seu melhor ano em muito tempo) estimulam essa aptidão, inscrevem-no no Conservatório e, sob a atenta proteção do seu tutor (Adriano Luz), ele prossegue à luz de uma eventual consagração. Fala-se no mais “beethoveniano dos beethovianos do seu tempo”, gaba-se a sua sensibilidade musical, o seu entendimento e conexão com as partituras e os seus autores, o qual coleciona no seu pequeno quarto-refúgio, mas na progressão do seu crescimento, algo “estranho” acontece. Duarte começa a renegar o seu dom, o qual converte-se numa tinhosa maldição.

Traumas são bandejados como interação para com este sofrimento artístico proveniente de Duarte, que por sua vez nos leva ao melancolismo da sua figura, numa mistura de medo do fracasso à perda da sua identidade. Luís Filipe Rocha construiu um filme sob o signo dessa degradação, não ostenta fantasias além daquelas que o seu avô, em jeito de ‘contador de histórias’, o delicia com as aventuras do seu amigo de longa data, Policarpo. O espectador tem a certeza, devido ao tom manifestado, que não estamos envolvidos num conto de “sonhos superados” e sim num reflexo de uma infelicidade maior e daí, talvez lendo por “linhas tortas”, evidenciamos a história de uma difícil libertação pós-25 de Abril. 

Do medo do risco, do estrangulamento de talentos e aptidões em prol de valores nunca esquecidos após anos e anos de martelação, dos “brandos costumes” e da escapada para um terreno sem avanços - “O Teu Rosto Será o Último” é sobre um país de cinzas. Duarte é apenas um sintoma, e Luís Filipe Rocha é dotado em captar os aromas dessa história recente e em cometer a sua crónica. Filme de pianistas e de cordas entrelaçadas, que tão bem afigura-se como resposta à combalida gesticulação da dita história recente de “Soares é Fixe” e de muitos outros congéneres.

Espiões e futeboladas ...

Hugo Gomes, 06.05.24

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Cândido - O Espião Que Veio do Futebol” procura cinema onde não o há, com a inteira noção de que está a construir uma produção ambientada para pequenos ecrãs, cujas suas ambições não disfarçam essas habituais armadilhas. 

Desvendando um episódio da nossa história recente, Cândido Plácido de Oliveira (1896 - 1958), jornalista desportivo e eventual selecionador de futebol, se vê envolvido num enredo de espionagem montado pelos ingleses que o conduzirá aos calabouços da polícia política (PVDE) e posteriormente “cumprindo pena” no Tarrafal devido à sua resistência. Tomás Alves (“Amor de Perdição”, a de Mário Barroso, “Salgueiro Maia: O Implicado”), perante uma questionada caracterização (a calvície revela uma secção que ainda  nos posicionamos no amadorismo), faz o que pode tendo em conta que a narrativa segue-se em fragmentos telenovelescos, com personagens ali e acolá apenas servindo de contexto social e político e nunca adensando a veia thriller que parece emanar. 

Talvez seguindo a tradição da produtora Ukbar que é apostar nessa ambiência de espiões e guerra iminentes, com alemães nazi invocados como apocalypse deveras, “Cândido” (de Jorge Paixão Costa, que em outros tempos assinou um dos mais bem equilibrados produções de cinema popular - “O Mistério da Estrada de Sintra”) resume apenas a isso, a tentativa de, uma, fazer cinema para massas seguindo os códigos de géneros consolidados, e dois, penetrar no século XX português extraindo dele estas mirabolantes e ocultadas jornadas de um país em rebelião com o seu Estado Novo. Dessas duas vias, o falhanço é abismal, primeiro por não ser verdadeiramente cinematográfico na sua invocação de elementos thriller e segundo por não ser convincente na sua transcrição histórica. Apenas Carloto Cotta, soando num registo oposto ao do filme, salva o que pode nesta “carolice” produtiva. 

Falando com Jorge Jácome: "uma reivindicação política a presença de 'Super Natural' nas salas"

Hugo Gomes, 27.06.23

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Caranguejos pensantes, frutas que gemem de prazer, sereias, uma entidade que nos acompanha dentro e fora da tela, elementos, alguns dos quais devemos acentuar, que confirmam "Super Natural" como uma experiência sensorial exploradora das virtudes da sala de cinema. Num tempo em que o streaming domina e o espectador de cinema se torna sedentário, quase eremita da sua própria domesticidade, filmes requintados e estranhos assumem-se como um desafio, não apenas para os corajosos, mas para aqueles que desejam escapar da realidade que os “aprisiona”. Filmado na ilha da Madeira, é natural (e super, aliás) que Jorge Jácome tenha avançado para o formato de longa-metragem. No entanto, suspeitávamos que o faria através de um projeto eclético, inclusivo, visualmente criativo na sua abordagem e linguagem. Descrever "Super Natural" é uma tarefa e tanto, mas é a sua passagem, tanto corporal como espiritual, que no nosso papel enquanto audiência nos marca. Marcando pela diferença.

Foquemo-nos na conversa com o realizador, nos diálogos sobre um evento, estranho como tudo, mas ainda assim um evento puramente cinematográfico.

Eu vi "Super Natural" no "Indielisboa" de 2022, ou seja, um ano antes da sua estreia comercial. O que permaneceu foi o espectro do próprio filme, que proporciona uma grande experiência em sala. Mas vamos agora voltar à génese do projeto... Foi uma espécie de encomenda, que inicialmente não tinha como objetivo tornar-se um filme, mas acabou por se transformar nisso. Como é que foi esse trajeto?

Exacto! A história começa com o "Dançando com a Diferença", sediada no Funchal, uma companhia de bailarinos de dança que reúne pessoas com e sem deficiência, e que costuma trabalhar com outros criadores, normalmente, de dança, que são os bailarinos, e artistas provenientes das artes performativas. Convidou o Teatro Praga para, em conjunto, desenvolverem uma peça para palco.

Entretanto aconteceu a Covid e rapidamente começaram a perceber que iria ser muito difícil este projeto avançar, principalmente nas condições de apresentação. Então o André Teodósio, do Teatro Praga, lembrou-se da possibilidade de, em vez de trabalharem num projeto para palco, ponderarem a possibilidade de fazer um filme, vamos chamar-lhe assim. E foi então que o André me convidou para integrar esta combinação criativa. O que aconteceu a partir daí foi que estivemos duas semanas na Madeira a filmar, a recolher imagens, a recolher ideias, a trabalhar em conjunto com os bailarinos da companhia e pouco a pouco este projeto começou a transformar-se num que viria a ser agora esta longa-metragem que estamos a apresentar.

Curiosamente, este é o seu salto para o território das longas-metragens! Você trabalhou em muitas curtas, sendo que nesta passagem preserva um certo estilo, especialmente em comparação com o seu anterior "Past Perfect" (2017). Mas falando agora sobre o Funchal, Madeira, e a exploração da própria ilha, é verdade que esta foi a sua primeira vez na região? Quanto ao filme, neste caso a temática do mar, das paisagens e da ribeirinha, como foi feita a escolha desse tema e sobre o que exatamente se trata? E se esses elementos de certa forma também prestam uma homenagem à própria ilha ou assumem um teor diarístico na sua descoberta a esse espaço?

Então, a ilha da Madeira surge naturalmente porque é onde a companhia está sediada. No entanto, mesmo antes de irmos para a Madeira, começamos a considerar o próprio território da ilha como uma possível personagem para o filme ou um espaço criativo para a narrativa em si, como queiram descrever. Isso ocorre porque a Madeira tem esse lado exuberante, mas ao mesmo tempo instável, como o próprio filme faz referência constantemente. Para mim, a experiência de estar na Madeira é estar sempre em um lugar que parece prestes a desmoronar. Existe um confronto entre o que foi construído pelos seres humanos e o que já era inerente à ilha, o que considero bastante impactante. É uma experiência... Quase uma experiência sensorial nesse embate entre esses dois elementos. As vias rápidas que atravessam e perfuram a ilha já eram uma ideia que procurávamos explorar em "Super Natural", que é esse confronto entre o que é humano e o que é não-humano. E essa ideia de "Super Natural" surgiu antes mesmo de eu entrar no projeto.

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Jorge Jácome na Berlinale, em 2022

O conceito da peça originalmente já continha muitas das ideias que acabaram sendo incorporadas no filme, e quando falo em ideias, refiro-me mais aos conceitos filosóficos que estão por trás do filme. Como é possível transformar esses conceitos em ideias cinematográficas? Como esses conceitos podem ser transmitidos através de imagens, situações, paisagens e sons? Como tudo isso pode ser construído para criar algo que funcione de uma perspectiva cinematográfica?

Visto que fala nesse conceito de “Super Natural”, gostaria que me falasse sobre isso mesmo, o título. “Super Natural”, por exemplo, no Brasil é sinónimo de sobrenatural, o paranormal, enquanto no português de Portugal resume-se a algo extraordinário. 

A mesma ideia aqui: O que defendemos é a ideia de que o conceito de "natural" não existe. E aqui, em língua portuguesa, o termo "natural" abrange diferentes significados, mas principalmente se divide em duas vertentes. Por um lado, temos o natural como tudo aquilo que está relacionado com a natureza, o que nos rodeia, ou o que precede o humano. Por outro lado, temos o natural como uma questão de representação, seja no cinema ou no teatro, referindo-se à ideia de um ator representar de forma "natural" ou "naturalista". No entanto, não acreditamos nessa noção, pois não é possível dizer a alguém: "muito bem, agora age natural" ou "age naturalmente". Portanto, ao recusarmos a ideia do natural, decidimos refletir sobre esse conceito. O que queremos fazer é amplificar essa ideia do natural e transformá-la no supernatural. Onde todas as coisas, tanto humanas como não-humanas, estão incluídas nessa noção do que consideramos ser ou não natural. É uma reflexão para pensar sobre isso.

Um ponto muito interessante do seu filme, que já havia abordado numa entrevista e que é um dos elementos omnipresentes em "Super Natural", é a “voz”. Associamos uma “voz” e essa universalidade da linguagem artificialmente criada. Julgo que mencionou nessa mesma entrevista que o filme poderia ser exibido na Alemanha com legendas em alemão, poderia ser mostrado em Itália ou na China com legendas em italiano ou mandarim, respectivamente, mas aquela “voz” indecifrável tornava-se muito pessoal para todos. Fale-me sobre essa “voz” e esse conceito de universalidade, e sobre essa “personagem invisível”, se podemos chamar-lhe assim.

Durante o processo de montagem, e com um texto definido, já tínhamos conhecimento de que seria essa “voz”, a sua natureza. Na realidade, essa "voz" é o próprio filme a comunicar connosco. Por exemplo, se estamos no cinema, é a tela que dialoga connosco; se estamos na sala de estar, é a televisão; se estamos a assistir ao filme num telemóvel, é o próprio dispositivo que está a comunicar. Uma "voz" que assume uma natureza imaterial.

No entanto, a questão do que é o "super natural" torna tudo bastante complexo, pois quando é o filme a falar connosco, assumimos que um filme é composto por vários elementos, várias "coisas", e acredito que é isso que define essa mesma "voz". Se perguntarmos a diferentes espectadores o que eles acham que essa voz representa, certamente receberemos respostas completamente distintas. No início de "Super Natural", é a escuridão da tela que dialoga connosco, mais tarde, são as luzes, e sequencialmente um caranguejo ou um golfinho de plástico. E essa entidade não apenas inicia uma conversa com o espectador, mas também com os próprios intérpretes, assumindo, por exemplo, o "papel" de uma planta e dialogando com outras plantas. O filme cria essa camada que une todas as "coisas", incluindo o espectador, e convida-os a se comunicarem com todas as outras "coisas". É uma espécie de utopia comunicativa.

Esta “voz” transgride a quarta parede e ao mesmo tempo não a quebra, é como se houvesse uma quinta dimensão neste filme [risos], algo em jeito transversal ou transcendental, como bem entender. 

Existe a ideia de um narrador... vamos chamá-lo de narrador para tentar encontrar uma palavra que consiga caracterizar essa "voz"... que aparenta conhecer tudo e todos. Parece estar a tentar explicar, discursando sobre os elementos mais densos e complexos (e até mesmo duros), como se quisesse simplificar-nos a origem de todas as "coisas".

Para onde o mundo está a caminhar? Do que são feitas as histórias? Do que são feitos os corpos? E assim por diante. Existe de facto uma tentativa de estabelecer um contacto com quem está a assistir.

Sobre os intérpretes e os seus corpos, gostaria de falar sobre o meu trabalho com eles. Houve espaço para improvisação ou o projeto já estava pré-estruturado através de um "storyboard", por exemplo?

A melhor maneira de falar sobre o filme é dizer que ele se foi construindo. “Super Natural” não existiria da forma como existe neste momento se não fosse também pela participação criativa dos próprios intérpretes do "Dançando com a Diferença". A maior parte das contribuições criativas do filme surgiram a partir das suas improvisações, sugestões de locais de filmagem, personagens que gostariam de interpretar e roupas que gostariam de usar. Foi uma acumulação criativa, onde o meu papel como realizador consistia em reunir, observar e compreender como seria a forma final deste filme. Acredito que o trabalho do realizador não se limita apenas a implementar um argumento pré-escrito, mas também a ter tempo para observar o que nos rodeia, trabalhar com pessoas próximas e, a partir daí, o filme vai surgindo. Esta abordagem reflete muito o meu trabalho com as artes performativas, onde o processo criativo de acumulação e a oportunidade de compreender o que se vai fazer são mais evidentes do que num processo cinematográfico convencional, onde geralmente se escreve um argumento, filma-se o que foi escrito e depois se edita o que foi filmado.

Durante este processo de adaptação para a tela, surgiu a ideia de transformar isso em uma instalação? Ou o próprio filme já é uma instalação?

Neste momento, o “Super Natural” é uma obra cinematográfica, por isso é que também é tão importante hoje o filme estrear comercialmente em sala. Serve quase como uma reivindicação política a sua presença nas salas comerciais de cinema. Este filme, com estes performers, feito desta forma, pode e deve estar em salas de cinema comerciais. Não me lembro se alguma vez começámos a pensar no filme como uma instalação, mas acho que não. Quando começamos a perceber que a duração do filme estava a ser prolongada, durante a montagem, comecei a perceber que tinha muitos minutos de material. Nós percebemos então que era uma longa-metragem, um filme para ser visto no cinema.

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Ou seja, não estava planeado sequer ser uma longa-metragem …

Não, não estava. Nem sabíamos o que se iria tornar.

Acidentalmente, tornou-se a sua primeira longa-metragem [risos].

Totalmente. E isso também é muito interessante porque há muita pressão em fazer a primeira longa-metragem, e as minhas curtas-metragens já tinham tido algum sucesso. Então, muitos realizadores e realizadoras sentem essa pressão de "qual será a minha primeira longa-metragem?" No meu caso, tive a sorte deste convite e de um filme que me orgulho muito, que gosto de ver, mostrar e falar sobre, acabar por ser acidentalmente a minha primeira longa-metragem.

Pega na sua aclamação de há pouco, “o seu filme nas salas de cinema é uma reivindicação política”, e sabendo que “Super Natural” foi concebido como um experiência de sala, pergunto, de forma hipotética, se haveria o mesmo impacto de ver este filme num computador. Ou seja, sobre esta posição de ver um filme em sala, sobre a questão de ser sensorial e será que este filme ganharia uma nova vida numa outra plataforma? Ou seria uma espécie de experiência unicamente de sala?

Não, o filme foi feito para ser visto em sala, porque a própria sala de alguma forma influencia a experiência do filme que estamos a ver. Se a sala cheirar a mofo, se as cadeiras forem desconfortáveis ou se a sala for clara em vez de escura, tudo isso vai afetar a forma como vemos o filme. Essa voz de que estávamos a falar também nos convida a olhar à nossa volta, a sentir a respiração dos outros espectadores. A sala de cinema faz parte da experiência cinematográfica.

Agora, algo que não consigo controlar, e é bom que seja assim, é que os filmes têm um ciclo de vida e uma trajetória, por isso é possível que seja disponibilizado em plataformas de streaming, na televisão ou em canais de televisão. Não consigo controlar onde o filme será visto. Após o período de exibição nos cinemas, se houver interesse, existe a possibilidade de ser visto em outras plataformas. O espectador então escolhe se quer assistir no telemóvel, no computador ou na televisão.

Nesse aspecto, o de ver “Super Natural” em sala … e aqui vou usar um termo que não gosto … como “venderia” um filmes destes, designado por OVNI em muita da imprensa e espectadores, ao público?

É muito desafiador atrair os espectadores para assistir a qualquer filme nas salas de cinema. Se já é difícil convencê-los a assistir os outros filmes, então experimentem este. Porque a experiência pode valer a pena, mesmo que seja apenas pela oportunidade de experimentar algo o qual nunca se viu antes ou ver algo de uma maneira diferente. O filme também brinca com os diferentes estilos cinematográficos, diferentes abordagens de filmagem e diferentes formas de conectar ideias. Portanto, a nossa maneira de apelar ao público é simplesmente dizer: "Venham".

Há pouco, falou-me na "pressão da curta para a longa". Gostaria de perguntar se já sentiu essa pressão e o porquê de continuar a encarar o formato curta como um tubo de ensaio para a longa-metragem?

Nunca tive essa pressão, mas também posso gabar-me de ter a sorte dos meus projetos desenvolverem-se gradualmente e também de nunca encarar a curta como um cartão de visita cinematográfico com vista a transitar para o formato longa. Essa nunca foi a minha perspetiva em relação às curtas. Aliás, estou a mostrar esta longa-metragem agora, mas já estou a trabalhar numa nova curta. Gosto desse ping pong de formatos e ideias, gerenciando-os gradualmente, sem pressas, e que tenham um corpo que me interesse. Não tenho pressão financeira, nem artística para fazer diferente do que já faço.

Pode falar-me dessa nova curta-metragem?

Posso. Esta curta, de uma forma sucinta, reunirá cogumelos “mágicos” e pombos-correio. Também estou a preparar uma nova longa-metragem, inspirado nos fenómenos do Entroncamento. [riso]

Simão Cayatte: "o meu trabalho enquanto realizador é muito privado"

Hugo Gomes, 31.05.23

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Joana Santos e Rúben Simões em "Vadio" (Simão Cayatte, 2022)

“Vadio” foi uma das estreias nacionais deste ano, marcando a transgressão de Simão Cayatte, do reino das curtas, para a sua primeira longa-metragem. Uma ficção de longa gestação sobre um país em período de seca extrema, e não somente em condições climatéricas, como também em termos político-sociais. Num Alentejano austero, um adolescente (Rúben Simões) une esforços com uma mulher misteriosa e ferida (Joana Santos) para encontrar o paradeiro do seu pai, que o abandonou e que mesmo assim hipótese negada pelo jovem. Um “400 Golpesà portuguesa, sem novas vagas e Balzacs, onde o desamparo das suas personagens concentram a inevitável fonte dramática deste filme. 

Conversei com Simão Cayatte sobre o projeto, expandido pelo seu trabalho enquanto argumentista, ator e ainda produtor, um dos responsáveis pelo resgate do “realizador malditoRichard Stanley.  

Deixa-me iniciar com uma espécie de fact-checking, o argumento deste filme teve aprovação em 2016, certo?

Teve apoio do ICA em 2016 e depois o luso-francês, se não me engano, que complementou a montagem financeira em 2018.

… e em 2019 terminou …

Exato, só em 2019 pude filmar.

E depois deste hiato, o filme estreia em 2023, e mesmo assim, o seu pano de fundo mantém-se presente nos nossos dias, refiro à questão das secas, que ainda hoje abalam o nosso país e pelos vistos não há maneira de abrandar.  A sua sociopolítica é também ela representativa dos dias de hoje, mesmo que, tal como deixa subtilmente saliente numa televisão ligada algures na ação - a voz de Pedro Passos Coelho - dando a entender o seu período. “Vadio” decorre nos tempos da Troika? 

É, o filme passa em 2012, durante a crise. Essa é a única referência contextual até porque não queria sinalizações muito concretas a nível de datas ou assim, mas é engraçado falar sobre a questão da seca porque as pessoas têm se focado bastante nas personagens, o que é natural, mas por trás há uma falta de água, que é aquilo que abre o filme, uma seca profunda, que é um tema, infelizmente, cada vez mais atual.

E não é meramente uma seca física.

Não, não. É também a da proveniente da alma.

E temos aqui duas personagens marcadas, cada uma, por uma ausência, e não é só o que têm em comum, ambas estão em constante fase de negação para com esse vazio. Ele, André, o pai o abandonou e ela, Sandra, está em negação pela questão da filha, ou seja negando o seu negligente, assim sendo. Até que ponto esta improvável aliança não é uma forma de preencher os seus respectivos vazios. 

É verdade. Não sabemos até ao final do filme se o pai o abandonou realmente. Como também nunca saberemos se foi um ato de negligência ou não. Temos a versão da mãe da Sandra e temos claramente uma pessoa que errou. E pode eventualmente ter sido negligente, mas que ao mesmo tempo onde se coloca a questão, vale a pena a crucificação pública que ela sofre? Vale a pena ser despedida do seu estabelecimento? Vale a pena a guarda da filha ser retirada pela própria mãe? Portanto, são estas as questões para mim mais importantes em relação ao que diz respeito à personagem da Sandra. Mas sim, são um pouco a boia de salvação um do outro. Nem que seja num nível mais simétrico. Ele procura um pai. Na realidade, acho que ele procura realmente uma mãe. E é isso que o André procura na Sandra. E é impossível, não é? Porque são pessoas que pertencem a mundos muito diferentes. Ela não sabe dar e ele não sabe receber. Portanto, eles estão o filme inteiro, no fundo, à luta. 

Deixemos de parte essa disputa pugilista, que os protagonistas de “Vadio” defrontam até que finalmente conciliam, gostaria que me falasse sobre os desafios deste avanço na primeira longa-metragem, visto que trabalhou várias vezes em Curtas. Aliás, refere-se usualmente que você foi a pessoa que descobriu a atriz Alba Baptista [“Miami”, 2014].

Sim, é o que dizem por aí! [risos]

Sobre os desafios que teve ao avançar numa longa metragem?

Passar para uma longa, em primeiro lugar, é a questão de sprint versus maratona. Uma curta acaba-se em seis dias, ou sete, na pior das hipóteses, e aqui [“Vadio”, longa-metragem] estamos a falar de seis semanas ou mais. Neste caso filmei durante seis semanas, com seis dias de rodagem e um dia de descanso. E num contexto bastante violento a nível de calor e de... E pronto, e estar longe de casa e essas ‘coisas’ todas. Agora, com preparação, tudo se faz. Estive rodeado de uma equipa enorme e de grande talento. Nádia Henriques na arte [direção artística], Olivier Blanc no som, o Bartosz Swiniarski na fotografia, Lucha d'Orey no guarda roupa, a Olga José na maquiagem, Angela Sequeira [assistente de direção], Teresa Font [edição], e por aí fora. Não é um trabalho que se faz sozinho, e sim em equipa, obviamente coordenado, mas senti-me mais que tudo preparado.

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Simão Cayatte

E visto que foi … quer dizer, neste caso, ninguém o deixa de ser … um ator e que trabalhou com cineastas como o Werner Schroeter, no "Esta Noite" [“Nuit de chien”], ou com o Ivo Ferreira no "Cartas da Guerra", belíssimo filme aliás. De certa forma, adquiriu com essa experiência, ferramentas que foram possíveis para este filme?

Cada vez que estou em platô aprendo sobre o que é que é representar. Quanto às ferramentas, não tanto. Acho que cada realizador tem o seu método. Talvez inconscientemente vá bebendo coisas, mas o meu trabalho enquanto realizador é muito privado. Agora, no meu trabalho como ator, acho que vou crescendo e ajustando. Ainda este ano, atuei logo a seguir nas escrita, o qual foi muito interessante esse saltitar de uma coisa para a outra. Aconteceu com a "A Sibila", realizado pelo Eduardo Brito, que penso que estreará este ano. E o que acontece é que cada vez que trabalho como ator sinto que fico a compreender um bocadinho melhor os atores e isso permite também conseguir falar com eles de igual para igual. Sinto que nunca é real. Não é realmente de igual para igual, mas pelo menos … esforço para tal. 

Uma pergunta assim, distante do filme. Trabalhou como “script doctor” na produtora do Darren Aronofsky …

Não trabalhei como “script doctor", e sim como “script reader”. Na altura era jovem demais para ser “script doctor”. Hoje em dia já faço esses trabalhos.

Alguém colocou na sua biografia que trabalhou como “doctor”, mas já agora que é um “reader”?

Na indústria americana o que acontece é que as várias produtoras de cinema contratam, normalmente jovens que estão a começar, mas que tenham experiência de argumento ou que tenham estudado na universidade de argumento, ou assim, contratam para serem readers, ou seja, as produtoras têm sempre muitos guiões a entrar lhes pela caixa de correio, de coisas que podem vir a produzir. E o Aronofsky, para além de fazer os seus filmes, também produz. Produziu, inclusive, o “Jackie” e outros filmes. E chegavam guiões todos os dias. E cabe a alguém ler esses guiões e, no fundo, recomendá-los ou não. Então, até havia alguma responsabilidade. Eu lembro de ler uma versão muito precoce, de 2011, do “The Revenant”, por exemplo, era um guião ainda muito diferente, mas que foi parar ali à Protozoa [produtora de Aronofsky]. E então foi um trabalho super útil porque ler 5 a 6 guiões ou mais, talvez 10 guiões por semana, assim, durante um ano, é um treino daqueles.

O “script reader”, é o que recomenda, e o “doctor” é aquele que, mais ou menos, encaixa as "pecinhas" que estão fora?

É curioso fazeres essa pergunta porque de facto cá ainda há pouco. Tenho executado, sobretudo, lá fora, e vou agora fazer cá com uma produtora nacional e não está longe da função que tenho muitas vezes também enquanto tutor. Eu dou aulas de guião para o Le Groupe Ouest que estão ligados ao Less Is More, mas um “script doctor” é, no fundo, um consultor. É muito comum nos EUA. Pode acontecer numa fase inicial de tratamento, como pode acontecer quando o guião já tem uma ou duas versões, mas é alguém que é contratado para dar uma olhada de fora e fazer uma análise do guião e, em muitos casos, sugerir alterações.

Muito bem, para não desviar mais, a questão é que tem experiência com o guião e a força do guião, e neste mundo, ou melhor, a realidade portuguesa, deparamos com o improviso e a liberdade criativa dos atores quanto aos seus desempenhos. Visto pertencer a um território oposto, e ao mesmo tempo trabalhar como ator e, neste caso, como realizador, como consolida esses dois mundos na direção dos seus atores?

São dois lados da mesma moeda. O ator e o argumentista estão interligados porque ambos trabalham com ações, com verbos e um bom argumentista sabe que um ator tem que tornar aquelas palavras suas principalmente. Não me preocupo com o puritanismo de que cada palavra deve ser dita e daquela e determinada maneira. E um ator precisa de um bom texto dramático. E outras pequenas ‘coisas’, por exemplo, acredito que um argumentista deve ler aquilo que escreveu em voz alta. Por vezes há a tendência de escrever, escrever, e só no confronto com os atores é que se apercebe o que escreveu. Eu como também sou ator tenho por âmbito ler alto o que escrevo, porque no fundo um guião é um guia, são palavras escritas num papel para depois transformarem-se, sair da boca de um ator como algo orgânico. E é isso, custe que custar, as palavras devem ser orgânicas e verdadeiras. Ponto final. 

Existem muitos realizadores cujo argumento é sagrado, não há volta a dar. Porém, e tendo em conta a conversa que tenho com outros realizadores, principalmente na área de cinema, é que o argumento é desvalorizado, muitíssimo maleável ou até mesmo descartável na sua integral natureza. 

O que acontece é que tens muitos realizadores que escrevem os seus próprios filmes, mas julgo que a situação da classe dos argumentistas está a mudar em Portugal, resultado da grande procura para as séries de televisão ou das plataformas de streaming

Algo que encontrei em “Vadio”, principalmente no protagonista, André, é possui o espírito de um “400 Golpes” (“Les Quatre Cents Coups”) de Truffaut, uma espécie de Antoine sem Balzac.

Não foi uma influência direta, mas fico lisonjeado com a invocação. Eu conto a história de um vadio, e em certa maneira, os “400 Golpes” é a história de um “pequeno vadio”. Essa falta de um herói, essa solidão, esse abandono, encontra-se muito presente em ambos os filmes, penso que por aí que começa e acaba a comparação entre este pequeno filme e o génio do Truffaut.

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Color Out of Space (Richard Stanley, 2019)

Novos projetos?

Já estou a trabalhar numa próxima longa, ainda estamos na fase de escrita, irei começar a filmar neste verão, será para televisão … de momento não posso dar mais pormenores.

Tenho uma curiosidade sedenta que preciso que você me sacie [risos], visto que co-produziu o “Color Out of Space” de Richard Stanley, como foi trabalhar com o …

Nicolas Cage? [risos]

Não, não, mesmo com o Stanley? Eu vi aquele documentário sobre o “acidente” da “A Ilha do Dr. Moreau” [“Lost Soul: The Doomed Journey of Richard Stanley 's Island of Dr. Moreau”] e fiquei curioso.

Com o Stanley foi inacreditável! [risos].

Portanto, o meu trabalho na produtora SpectreVision foi sobretudo a escolha do país. Recebi um telefonema da Elisa Lleras, que produziu uma das minhas primeiras curtas [“A Viagem”], a perguntar-me se este projeto seria exequível ser rodado em Portugal [em Sintra]. Respondi “obviamente que sim”, expressando vontade imensa em trazer este filme para o nosso país … o resto, logo se via. Depois fiquei encarregue da formação da equipa, e estava tudo a correr bem com uma só excepção - o realizador não chegava!

Nesse momento, o Richard Stanley estava a viver no meio dos Pirenéus, numa pequena vila onde há a maior confluência de teorias da conspiração do Mundo [risos]. Estamos a falar de panóplia que vai desde OVNIs a Templários [risos]. Mas a verdade é que ele não chegava, nem por nada, então literalmente tivemos que o ir buscar. Fomos de carro, eu e o Josh Waller, o outro produtor, e subimos os Pirenéus pela noite dentro, sem saber o que encontrar ou se o iríamos encontrar. E assim deparamos com ele naquele sítio, do qual não recordo do nome. Possivelmente estava com “cold feet”, como dizem os ingleses, ou seja medo visto que não filmava há muito tempo, mas de resto foi um verdadeiro “gentleman”, impecável, com uma visão abrangente. 

Foi uma questão de ajudá-lo a adaptar-se em Lisboa, e encontrar um “match” certo para o storyboard, o qual percebi que não era um storyboard convencional e sim algo mais próximo dos comics. A minha função foi mais ou menos essa, pegar em alguém para ajudar a trazer todo aquele imaginário em imagens. 

E o Nicolas Cage? Como integrou o projeto? Caiu de “páraquedas”?

O Nicolas Cage havia trabalhado no “Mandy” do Panos Cosmatos, também produzido pela SpectreVision, o qual traduziu numa espécie de renascimento seu, pelo menos naquele género de filmes, estreou em Cannes e foi uma “bomba”. Cage sempre expressou vontade em voltar trabalhar com a produtora, pelo que esta tinha o filme do Richard Stanley na gaveta, e o ator prosseguiu até porque queria trabalhar com o realizador, o qual tinha grande admiração e sentia que fora um autor atropelado pelos infortúnios e negado à carreira que bem merecia. Portanto, juntou-se estas duas forças e assim aconteceu … 

Será que as tartarugas também amam?

Hugo Gomes, 03.03.23

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Feita uma pausa na dedicada procissão ao inventário artístico e intelectual de Pedro Costa, Júlio Alves encena a novela de Mário de Carvalho - “A Arte de Morrer Longe” - um “Marriage Story” à portuguesa, constrangido e dotado de um senso de absurdo que passa por representação da espuma dos nossos dias. 

Aqui, o casal Arnaldo e Bárbara (Pedro Lacerda e Ana Moreira) colhe os frutos da negligência aos seus “felizes para sempre”, sintetizando que em “terra enfadonha” não existe príncipes encantados e como tal, a separação soa-nos um golpe de misericórdia ao suplício de uma relação moribunda. O processo formaliza-se como um inventário (aliás, outro para a carreira de Alves) - “da cozinha podes ficar com o microondas” - até que alguém menciona o “elefante da sala”, mais precisamente outro animal a assumir o silencioso e embaraçoso ícone do conflito: uma tartaruga. 

O pequeno e singelo réptil é a partir daquele específico momento a exaltação de um necessário final de compromissos, possivelmente a última em que o “casal” terá como tomar enquanto … isso mesmo, casal. Porém, através de debates para apurar quem “fica com o ‘bicho’”, ou de quem o “‘bicho’ é propriedade”, que Arnaldo e Bárbara conformam-se em unir ao derradeiro destino do animal, naquele, aparentemente, simbólico e pequeno gesto, uma emancipação dos mesmos, o direito da sua respectiva individualização (possivelmente o digno final do casal, esse conjuntivo social o qual se empreenderam anos e anos). 

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A Arte de Morrer Longe” é uma tragicomédia que embarca na alegoria do quelônio, o medidor de tensão arterial a uma relação, prescrevendo-a a um digno final, mais do que a consolidação. O desfecho será visto como acesso à independência social. Enquanto isso, a jornada doméstica destes seres não habilitados para com o anterior animal de estimação é tido num visual respeito quanto à sua privacidade, dito isto são os constantes planos engendrados em que Arnaldo e Bárbara mantêm-se, de alguma forma, separados e retidos para com o seu redor, a solidão por ambos emanadas traduzir-se em “gravidades” próprias (bem presente devaneios oníricos que aludem a essa, cada vez mais, distância para com o estabelecido conformismo), apenas intercalados por grandes planos da tartaruga, cuja natural vagarosidade do animal transfere uma certa indiferença ao conflito do casal. 

Dito isto, Júlio Alves converte-se num certificador da imaginária e criada “ordem de restrição" decretada pelas personagens, e sem barricadas, indicia um invulgar trilho de superação para ambas. Os atores, por sua vez, são cúmplices dessa entranhada e voluntária melancolia. O que existe depois do amor?

O "Homem" que Matou Terry Gilliam de La Mancha

Hugo Gomes, 02.03.22

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De momento não consigo desassociar Dom Quixote de Terry Gilliam. Não pelo cansativo “fado” que se concentrou no realizador e ex-Monty Python para levar a cabo a sua (re)adaptação (para conhecer mais recomenda-se uma espreitadela ao documentário “Lost in la Mancha” de Keith Fulton e Louis Pepe), mas porque encontramos naquela figura decadente e alucinatória um pouco de Gilliam, um homem deslocado da sua realidade que vê gigantes em moinhos, negando a extinção da Idade da Cavalaria, é Quixote de la Mancha como poderia bem ser o cineasta.

O falso-nobre que persegue a sua não-conquistada Dulcineia (uma idéia acima da mulher, da mesma forma que Ofélia foi para Fernando Pessoa), acompanhado pelo seu arrastado escudeiro Sancho Pança, manifestou-se como peça-chave do nosso imaginário moderno, do trágico, da inegável teimosia, e da contracorrente contra manifestações culturais, isto numa obra literária de Miguel de Cervantes y Saavedra, história essa, tal como a distorção hoje vulgarizada de tragédia (ora trágico, ora cómico, conforme o nosso olhar), maleável a diferentes interpretações. Já o cinema de Gilliam (que só não partilha essa multi-perspectiva), mais desprezado do que amado, é um trabalho árduo e hercúleo que condiz com a sua trabalhada designação de enfant terrible do realizador, homem incapaz de cumprir orçamentos, demasiado fascinado por atos maiores que si.

Por entre um seguro “Twelve Monkeys” (1995) e “Brazil” (1985) ou do mais convencional “The Fisher King” (1991), existem assumidos falhanços que nem por isso deixam de ser interessantes e cativantes no sentido da idealização e ambição do projeto do propriamente do resultado final, seja “The Adventures of Baron Munchausen” (1988), “The Brothers Grimm” (2005) ou "The Imaginarium of Doctor Parnassus" (2009), todos distinguidos por uma fantasia algo impenetrável e em seu jeito deselegante, mas que conservam um espírito fértil nunca deveras transposto para o grande ecrã. “The Man who Killed Don Quixote”, em outra medida, é um desastre que respira Gilliam em todos os seus poros, não somente pelo mundo fantástico que choca sem medos com o real evidentemente egocêntrico, mas pela desorganização que a alucinante alternativa dimensional se comporta. Um vertiginoso "agressor" que, de nenhuma maneira, se faz de convidado, ao invés disso, invade-nos, interrompe-nos e intromete no nosso imaginário. Assim, surge entre nós um filme perturbado de produção perturbada - com atrasos e mais atrasos face ao imbróglio judicial - um “conquistador” cansado, linguarudo e ausente deste mesmo mundo.

É cliché resumir a tudo como uma “produção fora do seu tempo”, mas é catastroficamente fora deste mundo, e convém dizer que é preferível um Gilliam assim, que riposta em gigantes invisíveis (acredito que não seja o filme imaginado pelo realizador desde a sua primeira abordagem nos ano 90, mas entre querer e ter vai uma distância), do que um Gilliam domesticado. Nesse sentido, Gilliam é o nosso, e último, Dom Quixote do Cinema.

"Golpe de Sol": Um Vicente com novos pontos de alma

Hugo Gomes, 13.08.20

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Nove anos separam este Vicente Alves do Ó do seu hitchcockiano “Quinze Pontos de Alma” (a sua primeira longa-metragem em 2011), a ainda imbatível “obra-prima”, e tendo em conta essa linha direta que reúne comédias disparadas e biografias do foro artístico é que questionamos, o que ficou do velho Alves do Ó e o que podemos contar com o novo?

A verdade é que o realizador, que encontrou sucesso em “Florbela” (a segunda longa-metragem que posteriormente se converteria numa série televisiva), é um homem constantemente assombrado pela sua existência, quer vindo das memórias do passado, quer do presente que o atormenta, quer o futuro o qual deseja vincar. É quase, em jeito de má-língua, um Almodovar de marca branca, no sentido com que idealiza as suas pessoalidades e que as impõe nas suas obras, nunca escondendo a sua natureza emocional, afetiva e sexual (tal como o cineasta espanhol).

Com “Golpe de Sol”, o realizador encontra-se ciente que este filme é uma desculpa para uma introspecção, uma psicanálise autoinduzida, e como tal, reparte a sua alma em quatro personagens aparentemente distintas, mas igualmente confundíveis nos propósitos e nas suas géneses. Convém salientar que não há artista algum que não trabalhe o seu íntimo, e quem não o faz arrisca-se a ser um mero técnico / tarefeiro. Por mais que se adore ou odeie Alves do Ó (ele tem a capacidade de alimentar essas duas esferas), nunca o poderemos acusar de falta de personalidade ou de isenção artístico-criativa.

Porém, com esta obra … esta, mesma, longe dos seus piores trabalhos (refiro às suas falhadas experiências cómicas como “O Amor é Lindo … Porque Sim!” e “Quero-te Tanto!”), é o filme que mais revela as suas arestas a merecer ser limadas enquanto realizador de corpo e alma. Entre as quais, o completo ego retraído que invalida de uma total entrega emocional nas personagens – quatro adultos prontos a conviver numa residência da costa vicentina, numa tremenda espera por um quinto elemento que lhe trará assuntos pendentes.

Nessa questão, a das personagens, nota-se a dedicação dos atores em construí-las e enraizá-las neste mesmo universo, com especial atenção a Ricardo Pereira na sua demanda pela transgressão de estereótipos já ultrapassados (mas que no nosso audiovisual ainda somos presenteados, graças à escassez da representação), e o alicerce valioso do qual se assume a banda-sonora (“bullseye”) – o artista brasileiro Johnny Hooker – a implementar a ênfase dramática que Alves do Ó não consegue de forma alguma (os atores parecem reconhecer isso, porque os seus gestos são sincronizados com a cadência do cantautor).

Ele próprio afirmou que se sente, por vezes, megalómano, e essa megalomania o atrapalha em tentar resolver trabalhos simples e quase niilistas como este “Golpe do Sol”. Por isso, respondendo à pergunta pontapé de saída que coloquei, a grande diferença está nessa aproximação com o futuro que o espera. Enquanto “Quinze Pontos de Alma”, indiciamos um realizador a emancipar-se perante o panorama que se inseria, em “Golpe de Sol”, testemunhamos um homem preocupado com o seu legado, e aquilo que as futuras gerações o poderão interpretar.

Cinema em Portugal? "Quero-te Tanto!"

Hugo Gomes, 15.04.19

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Um pouco antes da estreia de “Al Berto”, Vicente Alves do Ó declarou que em Portugal o cinema continua como um parente pobre da TV. As suas palavras poderiam soar como um alerta acerca da dependência dos produtos cinematográficos para com a linguagem televisiva, a fim de conquistar um lugar na “indústria”. O que acontece é que Alves do Ó apenas explicita a velha cantiga do “faz o que digo e não o que faço”, até porque, como se vem a confirmar com este “Quero-te Tanto!”, o “raio” da televisão não desgruda do grande ecrã. Portanto, as lições são as lições, e os filmes são à parte.

Até poderíamos justificar que o que deparamos aqui estava inicialmente planeado para ser projetado nos pequenos ecrãs, aliás, uma das produtoras é um canal televisivo generalista que nos últimos tempos tem definido uma linguagem tão própria nesse ramo. Se houve desmembramento e enquadramento de forma a solicitar um “filme”, “Quero-te Tanto!” fica-se então pelo oportunismo enquanto ocupa as salas de cinema do país. Por outro lado, visto que temos a preencher estes espaços, olhemos com atenção a este “case study”.

Se Luís Urbano da Som e Fúria afirmava num debate ocorrido na Universidade Lusófona, no final de março, que não fazia distinção entre cinema mainstream e cinema de autor, pois todo o cinema tinha um fim comercial, Pandora da Cunha Telles contrariou a ideia ao dizer que todos os seus filmes produzidos eram, de uma forma ou de outra, de autor. O seu argumento é que cada um deles tem um realizador, argumentista e autor da banda-sonora, logo… autorais. Seguindo à letra as declarações da sua produtora, talvez, cegamente consideremos “Quero-te Tanto!” num trabalho autoral, visto termos os envolvidos na sua conceção.

Mas é de uma ingenuidade extrema consentir com este ponto de vista, porque esta TV para “Multiplexes” é um exemplo claro de massificação de uma ideia de Cinema para massas. Uma ideologia que deve ser sobretudo combatida por várias razões: a primeira é o sufoco criativo e da transgressão do dialeto cinematográfico, sendo para além de tudo um desrespeito para com as audiências em trazer para as salas aquilo que tão facilmente se pode ver em casa. Segundo, a miopia para com a comercialidade do filme, o que resultará numa obra apenas bem-sucedida em mercado interno sem pretensões além-fronteiras. 

É claro que “Quero-te Tanto!” não é a pedra pedestal deste formato que contagia as nossas produções com desejos de viabilidade comercial há anos … mas é um exemplo daquilo que se deve evitar nos tempos atuais. E não estou a referir apenas à inclusão da caucasiana atriz Alexandra Lencastre a interpretar uma vidente chinesa designada por Madame Ping Pong (um tipo de humor arcaico a contornar, para além de uma discriminação para com os atores asiáticos). O que acontece é que esta história pindérica de um jovem casal lisboeta – ele, o arquétipo visto e revisto do homem-menino à lá Adam Sandler (Pedro Teixeira), ela a cegamente apaixonada e despersonalizada (Benedita Pereira) – não é mais do que um mero episódio-resumo dos tiques e tendências acumuladas neste Cinema “vendido” para todos. Isto tudo para além do humor básico e condescendente onde a caricatura falha com toda a sua “inglória”.

E é pena que Vicente Alves do Ó que tanto prometia desde “Quinze Pontos de Alma" dê a cara por isto … o prolongamento de um dos pecados do nosso Cinema.

Um Milhões em cada um de nós

Hugo Gomes, 13.04.18

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Quando era aluno de Cinema comecei, quase por gozo, por escrever um guião (salienta-se - o qual nunca terminei), de um suposto filme sobre o Soldado Milhões. Pretendia desmistificar a Lenda de Heroísmo que hoje chegue como estandarte das nossas Forças Armadas, deixando a nossa mercê o homem que realmente foi.

Ano passado quando recebi a primeira notícia de que esta personalidade iria figurar uma obra cinematográfica, receei, contava que a Lenda nunca iria descolar do tão ilustre Aníbal Augusto Milhais. Mas confesso, que o filme em si, está bastante longe de envergonhar-nos e melhor, evita recitar as "primitivas" cantigas de Deus, Pátria, Família que o Soldado foi anexado em campanha propaganda de Salazar, o próprio militar recusava esse estatuto de Herói.

Por outro lado, como ex-militar, sinto satisfeito que o verdadeiro e proclamado Herói do “meu exercito” tenha sido um soldado raso … raso, não um cabo, não um sargento, não um oficial, não um general … um raso soldado transmontano.

Bem, isto não foi uma crítica ao filme em si, guardarei isso para breve … muito breve. Só queria dizer viva os meus camaradas, amigos e irmãos de armas que conheci em 7 anos de serviço militar!