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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

O renascimento de uma Nação

Hugo Gomes, 05.09.18

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Fora as questões de cinematografia, convém referir que nos anos 90, e não há tanto tempo assim, Spike Lee era visto como uma espécie de caricatura de um certo fundamentalismo afro-americano, nesse sentido, um filme como “Malcolm X” correspondia com exatidão à sua natureza. Com a passagem para o novo século, Lee foi de certa forma ostracizado pela indústria, como tal, tentou integrar-se perante projetos fora das suas amenas águas. Filmes como “Inside Man” e até mesmo o esquecível remake de "Oldboy" eram encarados como tarefas de subsistência perante uma Hollywood que definitivamente o desprezava. Não somente a sua figura, mas como evidenciava um inerente racismo e colonialismo no seio desta “utopia cinematográfica”. A América, porém, não mudou em paralelo com o circuito de Lee, apenas revelou os seus demónios interiores, sendo que, tendo em conta os tempos que vivemos, sentimos na obrigação de pedir clemência ao realizador, que se assumiria não mais, nem menos, que um subestimado messias sociopolítico.

Em “BlacKkKlansman”, Spike Lee subverte o caso real de Ron Stallworth (um detetive afro-americano que infiltra-se na sede do Ku Klux Klan, em plena década de 70) para abordar uma América de hoje, sob os enfeites dos movimentos trumpistas e da expansão extrema-direita. O filme soa a projeto antigo, com o cineasta a indiciar força de vontade para espelhar os seus profundos dilemas, entre os quais a repugnância por “The Birth of a Nation”, de D.W. Griffith, e pelo retrato exposto em outro clássico norte-americano, “Gone with the Wind”. Como sabem, Spike Lee sempre fora um apoiante à censura do incontornável filme de Griffith (incontornável no sentido da História Técnica e Narrativa do Cinema), sendo que nos seus anos enquanto estudante de Cinema protestava incendiariamente à inclusão da obra nessa História centenária. Como trabalho de graduação, Lee respondeu, literalmente, com “The Answer" (1980), onde transformou o filme com mais de três horas de duração numa metragem de 10 minutos.

E desse ‘Answer prolongado em toda a sua obra (mesmo as ditas contas industriais que se resistiam aos seus dilemas) chegamos a “BlacKkKlansman”, o qual somos correspondidos, por fim, ao seu ácido e por vezes urgente ativismo. Em tempos que filmes politizados à direita se convertem em êxitos sem precedentes (de “American Sniper” a quase tudo composto por Berg / Wahlberg), uma obra inteirada nas questões raciais e sociopolíticas que evadem todo um sistema bajulador da bandeira estrelada, assume-se, como diria os yankees, num must-see.

Mesmo sob um humor matreiro a ser confundido com os tons coenescos (por aqui aposta-se influência de Jordan Peele, realizador de “Get Out” reivindica a produção deste “BlacKkKlansman”), deparamos com um Spike Lee em estado de fúria, libertador do seu enclausuramento cinematográfico o qual encontra neste curioso ficheiro policial um pretexto para prosseguir o seu discurso. É sim, um filme de demagogia política centrada no seu alvo, visto que o realizador nunca exerce de maneira igualitária os mesmos julgamentos perante organizações tão opostas e igualmente propagadoras de ódio (os Black Panthers de um lado, a terem como punição um sermão ao de leve, e os Ku Klux Klan a ser ridicularizados … sublinha-se … deliciosamente ridicularizados). Esta desigualdade é tão própria de Spike Lee, mas assumimos “BlacKkKlansman” como um filme do seu tempo (precisamente o nosso), cujo objetivo principal requer toda a nossa e merecida atenção.

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Spike Lee dirige Adam Driver e Topher Grace em “BlacKkKlansman” (2018)

Mas é nesses signos de “The Answer”, que o filme tende por vezes cair num discurso incansavelmente reacionário, e propício à imagem dos mais recentes movimentos que anseiam apagar obras inteiras perante o seu conteúdo temático. “The Birth of a Nation”, é assim, a vítima da fúria de Lee, despachada para novas gerações como um somente “filme inconsequente e irresponsável” da História cinematográfica, ao invés de salientar a sua importância na linguagem da mesma. É óbvio que datado como se encontra, a obra de Griffith é uma tenebrosa e indigesta visão de um Mundo fabulista, idealizado por alguns loucos (e não são poucos), mas sem a existência desta controversa peça não existiria, estruturalmente, este “BlacKkKlansman”. Talvez estejamos a cair em conversas de sensibilidades puras ao invés de construirmos uma consciência exata e racional. Contudo, o debate de obra acima do autor / conteúdo tem mais que se diga e não iremos centrar-nos nestas questões perante um filme como este. “BlacKkKlansman” encontra firmeza nas suas palavras e atos, é uma produção vingativa, mas sabiamente vingativa que se reencontra constantemente. E por mais defeitos que possamos apontar a Spike Lee, nunca iremos acusá-lo de incoerência nesse mesmo discurso.

O realizador regressa naquilo que poderemos afirmar como um dos seus melhores trabalhos dos últimos anos, conseguindo reunir um elenco capaz e vigorosamente carismático (desde o achado que é John David Washington, filho de Denzel Washington, até ao caricatural Topher Grace na pele do infame David Duke) e providenciando momentos de um cinema estruturado e tecnicamente expressivo (a reunião com os Black Panthers revela-se num onirismo aludido e metaforizado). Confirma-se, Spike Lee continua a demonstrar sangue na guelra.