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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Roma fora de casa ... e de horas

Hugo Gomes, 28.04.24

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Não fiquemos surpreendidos com as constatações estéticas que este “Adagio” nos apresenta de imediato, tendo em conta que a sua mão assinante é a de Stefano Sollima, realizador que povoa os três mundos; Itália e a sua indústria, Itália para o Mundo por via Netflix e Hollywood (“Sicario: Day of the Soldado”). Com este novo filme, terceira parte de uma possível e não-pensada trilogia, são abocanhados os dois primeiros “mundo” com foco no terceiro, até porque Sollima, perante uma Roma apocalíptica - onde os ventos sopram com notícias de uma incêndio de enormes proporções com o clarão, as cinzas e o odor a queimado servindo como um postal, e pelas intermitentes cortes de energia que lançam o caos escurecido na capital italiana - é uma atmosfera que tem tudo e ao mesmo tempo familiarização pelos diversos panorâmicas em modo drone, é uma periférica comum na nossa atualidade, desde a produção mais rasca até ao grande orçamento. Portanto, as vistas da cidade, tão bem condizem na grande tela como no pequeno ecrã, assim justificando o “N” colorido que dará a vez à “Netflix” na antecipação dos créditos iniciais.

Falar de cinema, com C, hoje em dia, a nível visual, é cada vez mais uma discussão pela desapropriação e deserdação das mesmas categorias grandiloquentes e plenitudes, ou seja aqueles ditos planos unicamente ligados à experiência de sala transladaram para produções caseiras, domesticando essa linguagem como um “ferro a fogo” para com a sua ambição. Sollima entende muito bem isso, essa sensação de grandeza, não prescrita somente à sua linguagem de vista, mas também no pretensiosismo da sua narrativa. ora, confessamos, fiel ao seu espírito “Suburra”, o realizador reveste a cidade e a usufrui como uma personagem à parte, ou, vulgo no verdadeiro protagonista, o testemunho silencioso de um crime e a sua sucessão de malapatas que vão despertar uma organização criminosa há muito entendida como extinta. 

Nesse âmbito, o casting faz as suas maravilhas, entrelaçando os possíveis, três grandes atores da cinematografia italiana da contemporaneidade - Toni Servillo, Valerio Mastandrea e Pierfrancesco Favino (com uma caracterização de meter dó) - estes gigantes trazem consigo uma aura de lenda, mesmo que a sua apagada mitológica seja forçadamente improvisada no seu momento. É nesta trindade que encontramos marcos narrativos que delineiam os seus actos (ou arcos), seja a escuridão de Mastandrea como o pontapé de arranque à trama propriamente dita, a loucura de Servillo como o “adagio” (apropriando-se do título) que o enredo investe e por fim, o pathos de Favino como o clímax. Os três nomes que balançam nos seus respectivos arcos entende-se, são também eles as gárgulas da cidade de Roma, depositando na antiga metrópole a sua personificação. 

Sollima, com este retrato todo, mais uma vez mesclado os seus temas prediletos - corrupção, corrompimento e salvação - gera uma produção requintada (e requentada) com um ritmo que vai do frenético ao pausado, ao calculado ao despedaçado, mas sempre respeitando o paladar de um espectador despreocupado com transgressões ou leituras mais intensificadas. Porque “Adagio” posiciona-se no grande ecrã como no pequeno, sem distinção e sem convicções de um lado que seja.  

Toni Servillo: "discordo desse estatuto de ator político"

Hugo Gomes, 11.05.23

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Toni Servillo em "La Stranezza" (Roberto Andò, 2022) 

O nosso "Jep Gambardella"! Com um charuto entre os lábios e uma expressão descontraída, talvez influenciada pelo clima ameno, antecipando o verão em pleno abril, ele recebeu-me a mim e ao jornalista Roni Nunes na sala de reuniões do Hotel D. Pedro. A sua visita coincidia com a celebração do Festival de Cinema Italiano, onde iria apresentar as sessões do seu mais recente filme - "La Stranezza" - novamente dirigido por Roberto Andó ("Viva La Libertà"), onde interpreta a icónica figura do teatro italiano, Luigi Pirandello, e na do filme que marcadamente fora seu primeiro protagonismo no grande ecrã. Curiosamente, este foi o primeiro trabalho em conjunto com Paolo Sorrentino, numa obra intitulada "L'Uomo in Piu" (2001), que viria a ser o "início de uma bela amizade", para citar Claude Rains num célebre clássico americano.

Toni Servillo tem sido cobiçado desde a primeira edição do festival, e não é para menos, pois é atualmente um dos atores mais requisitados e prestigiados do panorama cinematográfico. Aproveitando o convite, ele presenteou o público do Teatro Maria Matos com uma interpretação de Dante, da autoria de Giuseppe Montesano. Servillo é um homem dividido entre o teatro e o cinema, alcançando grande popularidade com o filme "La Grande Bellezza", onde interpretou o jornalista Jep Gambardella, que nas noites tórridas de Roma buscava o que havia perdido ao longo da sua jornada pela vida. Este filme foi aclamado em Cannes e conquistou o Óscar de Melhor Filme de Língua Estrangeira, tornando-se hoje uma referência na carreira tanto do ator como de Sorrentino. No entanto, gerou amores e ódios, especialmente entre aqueles que o veem como uma pretensiosa aproximação a Fellini.

Mas "La Grande Bellezza" possui um espírito audaz e tumultuoso, moldando Servillo numa espécie de Jep amado e desgastado. Tudo o que se seguiu está de alguma forma enraizado nesse registo, assim como no afastamento desse papel. Depois disso, o ator foi Silvio Berlusconi num ambicioso projeto do seu amigo Paolo ["Loro", 2018], interpretou um detetive pouco convencional no thriller "La ragazza nella nebbia" (Donato Carrisi, 2017) e deu vida a dois ícones da dramaturgia italiana: Eduardo Scarpetta em "Qui Rido Io" de Mario Martone (2021) e agora, Pirandello na sua busca pelo autor na nova colaboração com Andó.

Segue-se a conversa gerada a partir do nosso encontro:

Em “La Stranezza”, Luigi Pirandello é descrito como um homem austero, um pouco melancólico e vivendo uma crise criativa. Como surgiu a composição desta personagem?

Pirandello era, sem dúvida, um homem austero, e embora eu não saiba se ele era melancólico, certamente era profundamente inquieto. Essa inquietação tinha raízes tanto em sua vida pessoal quanto em sua vida intelectual. E é exatamente essa jornada criativa desse homem, que tinha em mente o que ele chamava de "verdadeira estranheza", antes mesmo de transformá-la em sua célebre peça "Os Seis Personagens à Procura de um Autor" ("Sei personaggi in cerca d'autore"), que quisemos explorar neste filme.

Pirandello concebia um mecanismo dramatúrgico novo, revolucionário e nunca antes visto. A ideia brilhante de Roberto [Andó], juntamente com seus co-argumentistas [Ugo Chiti e Massimo Gaudioso], foi desenvolver esse mecanismo inédito a partir do encontro com uma companhia de teatro amador, que o convidam para assistir a uma de suas apresentações. Ao observar esse espectáculo, Pirandello contempla uma mescla entre o que acontece no palco e o que acontece na vida real.

Outra das características do filme é que a fronteira entre o dramático e o cómico é muito ténue e, de facto, no filme trabalha com uma conhecida dupla de comediantes [Salvatore Ficarra e Valentino Picone]. Como correu esta mistura de tons?

Foi precisamente essa ideia que fez deste filme o mais visto em Itália no ano passado, alcançando uma receita de 5.600.000€ nas bilheteiras. Este feito foi um marco pós-pandémico extremamente importante para o cinema italiano. O público ficou surpreendido pelo facto de termos um filme cujo centro é uma figura incontornável da literatura italiana, Pirandello, e que conta com dois dos nossos comediantes mais carismáticos. Este facto quebrou o preconceito de que o "cinema de autor de festivais" não é acessível ao público em geral.

Acredito que essa surpresa tenha conferido ao filme uma imprevisibilidade e, consequentemente, despertado uma curiosidade benéfica, equilibrando o seu apelo tanto para os amantes do cinema mais culto como para o público em geral. Acima de tudo, trata-se de uma obra contemporânea, capaz de unir esses dois elementos de uma forma única.

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Toni Servillo em "La Grande Bellezza" (Paolo Sorrentino, 2013)

Visto que interpretou Eduardo Scarpetta no filme de Mario Martone [“Qui rido io”] e agora Pirandello, além disso apresenta uma longa carreira teatral, gostaria de saber como se sente ao interpretar estes grandes vultos do teatro italiano, e se leva a sua experiência teatral para a produção desses mesmos filmes? 

Bem, essa coincidência surgiu do facto de ter trabalhado com dois realizadores que, tal como eu, são devotos do teatro. Foi uma verdadeira honra fazer estes filmes sobre duas figuras tão distintas, mas de extrema importância para a história do Teatro Italiano. Mais do que isso, foi uma alegria imensa, pois amo o teatro e continuo a praticá-lo ao mesmo tempo que me envolvo no cinema contemporâneo.

Ambas as artes sempre estiveram presentes na minha vida, especialmente após a pandemia. A emoção de ver as salas de cinema e teatros gradualmente a encher novamente, como nos velhos tempos, é indescritível. Para mim, o teatro representa uma oportunidade de encontro entre pessoas, de debate, uma celebração dos sentidos e da inteligência. Foi, sem dúvida, a mensagem mais bela que nós, homens do teatro e do cinema, pudemos transmitir ao público através destes dois filmes.

Na Festa do Cinema Italiano apresentou a sessão de “L'Uomo in Più”, o filme inaugural de Paolo Sorrentino e o início de uma conhecida colaboração que ainda hoje perdura. Que impacto o filme teve em si, e na sua carreira? E já agora, é mesmo você que canta?

Sim, canto [risos]. Lembro-me, em primeiro lugar, que essa foi a primeira vez em que assumi toda a responsabilidade de ser o protagonista de um filme. Recordo com imenso prazer e carinho essa experiência. Desde o início, senti o apoio e testemunho dos pensamentos do Paolo [Sorrentino], que me incentivou a expressar minha própria face, minha forma de me movimentar. Durante a realização desse filme, essa conexão foi muito intensa e, acima de tudo, após o entusiasmo que ele gerou no Festival de Veneza, sendo a estreia de um autor jovem e talentoso, e posteriormente em Cannes, com 'Le conseguenze dell'amore', onde o filme competiu. Foi nesse momento que percebi que estava iniciando uma grande aventura..

Nessa aventura deparamos com “La Grande Bellezza”, o maior êxito da vossa colaboração. O que mais recorda desse filme? Imaginou que teria o impacto que obteve?

Olha, o que mais me recordo deste filme é que a vida nunca deixa de nos surpreender. Quando o fizemos, nunca, absolutamente nunca, imaginávamos que ele teria tanto sucesso. É fascinante como a vida sempre corre mais rápido do que o cinema, do que as nossas intenções, e nos surpreende continuamente. Foi realmente um presente que a vida nos concedeu, mas acima de tudo, uma enorme surpresa, uma surpresa gigantesca. Sentimos que estávamos a fazer algo que amávamos com alegria, mas jamais poderíamos imaginar que impressionaria tanto o público ao redor do mundo.

Mas porquê esse filme fascinar tanta gente? 

Digamos que ao usar Roma, com todo o seu encanto antigo como cenário, e ao simbolizar o fumo, com o seu encanto tão antigo, estamos representando uma perplexidade geral. E acredito que seja uma das razões que contribuíram para o sucesso deste filme. Ou seja, ao manter Jep Gambardella e Roma unidos em um sentimento de perplexidade, de oportunidades perdidas, de vidas cheias de beleza para aqueles que também estão ligados ao passado e à memória.

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Eu e Toni Servillo

Foi Giulio Andreotti em “Il Divo” e Silvio Berlusconi em “Loro”, ambos de Sorrentino, a juntar ainda as variações políticas de Roberto Andó, como “Viva La Libertà" e “Il Confessioni”, com isto pergunto, considera-se um ator político?

Não, discordo desse estatuto de ator político. Embora eu acredite que qualquer pessoa que escolha estar em público, independentemente da arte ou forma, assume uma responsabilidade política, como mencionou. Os filmes que citou estão ligados a uma tradição de cinema com um caráter político, proveniente de cineastas como Francesco Rossi ou Elio Petri, que conseguiram manter uma linguagem cinematográfica moderna e, ao mesmo tempo, influenciaram fortemente o debate político na época. De certa forma, estou inserido nessa tradição italiana bastante marcante. Além disso, é um prazer para mim fazer parte de filmes como esses, ou até mesmo como "Gomorra" de Matteo Garrone, que não foi referido, que é um exemplo bastante politizado na minha carreira. São filmes que levam as audiências a refletir e como acréscimo, sentir.

Já agora, anda por aí um rumor de que é um “workaholic” … [risos]

Nada disso, embora a minha mulher pense que sim! [risos] Na realidade, sinto-me privilegiado, sortudo em conseguir trabalho, o qual tenho colhido alguns frutos saborosos. 

E quanto a novos projetos?

De momento, em cartaz em Itália, tenho o novo filme de Gabriele Salvatores - “Il ritorno di Casanova”. Vou protagonizar o próximo título de Marco D’Amore, “Caracas”, ator da série “Gomorra” que se tem aventurado na realização, e ainda trabalhar com Stefano Sollima num filme chamado “Adagio”. 

O "bom" populista?

Hugo Gomes, 31.03.23

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Após a saída do visionamento de imprensa de “La Straneza”, decidi rever aquele que é possivelmente mais interessante dos filmes de Roberto Andó, realizador italiano de altos e baixos, mas que se mantém coerentemente numa certa tradição de crónica política. O filme em questão intitula-se “Viva La Libertà”, apresentado em 2013 (e com honras de abrir a Festa do Cinema Italiano do seguinte ano), era na altura vista como uma comédia de farsas e dotado de tamanha ingenuidade, porém, esse dito lado inocente adquiriu ao longo destes anos um outro tom, até porque “populismo” entrou fortemente no nosso vocabulário e hoje é uma reflexão sem causa nem efeito.

Viva La Libertà" aposta numa dupla interpretação de Toni Servillo (o ator celebrado sob a luz de Paolo Sorrentino, e que pouco a pouco se lançava em projetos díspares a esse mesmo universo, muitas vezes trazendo resquícios destes consigo), aqui encabeça gémeos, de um lado, um líder político vencido por uma crise existencial, e por outro, um filósofo delirante recém-saído de um hospício. Quando o primeiro “desaparece”, possivelmente em “busca” da sua “Grande Beleza”, o segundo toma o seu lugar, e a sua imprevisível natureza eleva o seu partido, anteriormente em estado de decadência, num dos fortes candidatos a governo em Itália. Isto porque o "irmão louco” faz política de afetos, de “verdades” e lança de cabeça para a consensualidade do seu eleitor e não o oposto, aqui abandona a ideologia e disfarça esse vazio com o “bem da vontade do povo-freguês". Digamos que por aqui paira uma certa sombra à lá Silvio Berlusconi (curiosamente, Servillo iria ser o incontornável ministro numa falsa-biopic assinado pelo seu "compincha" Sorrentino, em 2018), nessa jogada politizada de aproximação com as populações, recorrendo à incoerência discursiva equivalendo-a gestos humanizados e identificadores.

Ao sabor da sua estreia, “Viva la Libertà” seria encarado como um exercício recorrente à velha fórmula de “troca de papéis" sob um cenário de política (o equivalente italiano e menos simplista de “Dave” de Ivan Reitman), onde facilmente caímos que "nem tordos" na valsa do impostor. Hoje, com tantos peões populistas a acenarem à liderança da contemporaneidade do discurso político, prometendo fundos e mundos em diálogos vazios, aquelas “verdades” que muitos juram ouvir e que não passam de delírios provenientes de um “povo” cansado dos mesmos truques, acabando por “cair” em outros velhos truques, "lobos em vestes de cordeiro". Contudo, talvez influenciado por estas mudanças repentinas na esfera política, Roberto Andó inconscientemente incentivou o debate: será que existem bons populistas, ou tudo se resumo no fruto das nossas próprias convicções?

Takes Roterdão 2022 (3): no campo do belo e do abjeto, com humor intermediário

Hugo Gomes, 22.02.22

Qui Rido Io (The King of Laughter)

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Para o napolitano Mario Martone, Eduardo Scarpetta foi mais do que um mero comediante de palcos da região (ou o melhor da sua área no final do século XIX e início do século XX), a importância desta figura histórica encontra-se na sua não-evidente conquista no território humorístico, ainda hoje debatido (cada vez mais tendo em conta a sensibilidade trazida para os temas da comédia e da sua razão de existência). Tudo começa quando o ator e encenador é julgado por plágio devido a uma paródia da sua autoria a uma obra do poeta Gabriele D’Annunzio, tal imbróglio judicial coloca a sua reputação em cheque, e consequencialmente seu legado e o status adquirido como artista popular (não bem visto à intelligentsia local).

Qui Rido Io”, com Toni Servillo (um senhor em ação) encarnado no ator de renome, é uma biopic desenvencilhada que tenta “saltitar” para além da figura central, orbitando pelo seu “elenco secundário” - os imensos filho (legítimos ou bastardos unidos numa certa estrutura patriarcal) e a suas relações para com o astral teatral do seu ente paternal. Uma herança ora afortunada, ora amaldiçoada, que é vencida narrativamente pelo conflito trazido pela disputa de tribunal, engenhosamente e mimeticamente convertido na performance das enésimas commedie italiane. Enquanto isso, é o caráter de satirizar a ser contestado e questionado, para que possa ser resgatado e elencado numa definição própria. A comédia deve muito a Scarpetta, não apenas pela sua produzida obra de respeito, ou os seus filhos que se vingaram no ramo (Eduardo De Filippo foi um dos grandes que chegou a transladar para o Cinema), mas por conduzir um género inteiro e o seu gesto acima do devaneio popular, uma arte de engenho e farsa que comunica e transmite um cenário político-sociológico em grande escala. 

Secção: Harbour

 

Eami

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Os primeiros minutos de “Eami” espelham um misticismo unicamente trazido pela aura da densa floresta, recheado de biodiversidade e de mistérios o qual a civilização, sedenta pela destruição e a riqueza, nunca conhecerá. O tempo passa, e os ovos, ainda por eclodir, remontam-nos à mais velha das fábulas, a da nossa existência envolvida em paradoxais inquietações.

A nova obra da paraguaia Paz Encina (a terceira longa-metragem), é um contacto sensorial com as réstias das tribos indígenas, de umbilical ligação com o selvagem daquele biótopo e a ameaça branca a qual detém o nome de industrialização, em El Chaco (zona com a maior taxa de desmatamento do mundo). Os tais primeiros minutos antevêem essa experiência, que tão bem encontraria magnificência em grande tela, isto porque Roterdão se refugiou em modo virtual, enquanto que estes “índios” (termo colonialista que a História ainda sem vontade de apagar) permanecem no limiar da sua existência, escondidos ou forçosamente adaptados pela modernidade imperativa, olhando com tristeza para o desaparecimento das suas práticas, das suas vivências e das suas lendas. Um documentário que regista e que “condena” ao virtuosismo as suas imagens de pê vincado na antropologia e outro aterrado no esoterismo, um ecossistema de subcontextos e significados, mensagens codificados que funcionam como fauna e flora neste mato tropical, servindo-se do cinema, mais do que veículo de narrativas e pedagogias, uma arca memorialista para um futuro incerto e, possivelmente, culturalmente mais pobre face à massiva destruição. Porém, a esperança reside em Eami, não o filme, mas a criança indígena que carrega consigo um legado em vias de extinção. 

Secção: Tiger Competition (vencedor do Tiger Award)

 

Achrome

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A fotografia tende em seguir um certo acromatismo que sufoca qualquer cor que ambiciona sobressair. O cinzentismo baço parece ser a visão estabelecida neste tratamento ao “sem faces”, às defesas nazis que antes do uniforme assumiram como anónimos camponeses. Com a transformação (que requer a revelação de idade e uma espingarda nas “unhas”) surge uma nova identidade, mas nem por isso deixaram de ser um mero número. A russa Maria Ignatenko aprofunda um belo exercício estético sobre os horrores trazidos pela banalidade do mal, pregações à lá Hannah Arendt que encontram, pela enésima vez, holofote no Cinema, e com “Achrome”, deparamos com a condensação de uma tese ao mais simplista da ideias.

Porém, a condução requer paciência, sendo que a austeridade reina pela desgraça humana ou pelos farrapos subjugados, não à ideologia, mas à subsistência, dispostos a servir e assumirem uma tarefa usurpadora da sua própria condição (o heroico coletivo do cinema soviético sacrificando numa clara oposição ao efeito-propagandista). Entre as sequências-chaves, um bando de soldados, ou como a própria realizadora responde com o nome “técnico”, “wehrmacht”, escarafuncham uma vala comum por entre os corpos de mulheres desvanecidas no Rio Estige, pavoneando os seus restos mortais a uma hipotética câmara. Sorriem como se estivessem a ser fotografados. Vários minutos persistem nesse cenário de horrores e de indiferenças angustiantes, o espectador vislumbra o espetáculo, forçados a assistir os sorrisos tontos daquele esquadrão de morte cedidos ao sadismo. “Achrome” pode muito ser belo, mas as suas vestes são idênticas à morte e automaticamente um efeito amoral ecoa nestas mesmas imagens. O filme mais abjeto da Competição.

Será possível que os horrores de outrora vulgarizem as telas de hoje? 

Secção: Tiger Competition

Sorrentino na mira do populismo num filme-sátiro

Hugo Gomes, 03.12.18

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Mais que uma sátira, “Loro” (“Silvio e os Outros”) é um filme-sátiro, em alusão à mitológica criatura, metade bode, metade homem corresponde à natureza desta ficção de um dos incontornáveis vultos da política italiana.

E já que falamos em caprinos, porque não passar para uma casa ao lado da taxonomia animal e espreitamos o ovino (ovelha) que abre este filme de uma forma metafórica e crítica a todo um conformismo político por parte do eleitor. Induzido num tom jocoso e satírico (não foi de propósito), o animal hipnotizado pelas transmissões televisivas (a televisão italiana, à imagem de muitas, é forte nessa continência populista) sucumbe face à visível ameaça. Hoje, com a ascensão do populismo e dos partidos extremistas, é evidente decifrar todos os símbolos desta abertura, até porque Paolo Sorrentino (cineasta que motiva amores e ódios, todos eles extremos) não é dos cineastas mais crípticos em relação a mensagens subliminares.

Não sendo um campo estranho, visto que já penetraram na política por via de “Il Divo – La Spettacolare vita di Giulio Andreotti” (2008), o realizador alia-se novamente ao ator Toni Servillo para o “camuflar” em mais um animal politizado, neste caso Silvio Berlusconi. O retrato trazido nesta duologia (em Portugal só nos será disponibilizada a versão norte-americana que une os dois capítulos num só) confere todo o caminho de excessos tão habitués para Sorrentino, a criação de uma fábula artificializada de uma Itália que sonha acordada. Através, e repescado a essência do sátiro, há aqui um gesto anedótico de paródia à própria figura central ao mesmo tempo que incentiva um tom humanista no mesmo.

Servillo funciona com o carisma que nos tem grudado desde então (incrível como o filme melhora a olhos vistos apenas com a sua introdução) para nos trazer esta personagem “mascarada”, nunca cedendo nas complexidades que a esquerda teoriza nem a superficialidade própria do moralismo norte-americano (Sorrentino sempre sonha vingar em Hollywood). Aqui todo um espólio e distorção da realidade em prol de uma desconstrução da personalidade, vetor de um filme que esquematiza, não a ascensão política, mas a queda iminente da mesma. Assim, como o protagonista questiona porque não existe um museu em sua honra, Sorrentino sorrateiramente responde com um filme – Berlusconi é um artefacto de exposição, o espectador é assim o visitante. “Loro” é então esse evento que magnetiza em prol de um homem, e que todo o seu biótopo é essencial na compreensão do mesmo.

Só que nesta obra de Sorrentino, assistimos a essa cumplicidade para com o populismo televisivo italiano, desde as demandas pelo videoclipe e a tendência pop do luxo de poucos, “Loro” enverga-se num híbrido entre o comentário político e a modernização de moda. Sim – como gosto de voltar aos tópicos anteriores! – é o sátiro, o meio, meio, o filme que se desdobra em diferentes vontades e gestos. Se por um lado temos a acidez dos diálogos, com mão aberta preparada para a eventual chapada, por outros temos o exibicionismo técnico e o fascínio do grotesco narrativo para o minar, assimilando a complexidade inexistente que a personagem apontou como falha da esquerda.

Obviamente que não há um vórtice político de caras como outra incursão berlusconiana (“Il Caimano”, de Nanni Moretti). Contudo, "Loro" detém alguma compaixão pela figura o que arrasta e igualmente acelera por territórios vastos. Sim, é o tal meio, meio.

A fórmula com um nebuloso twist

Hugo Gomes, 18.04.18

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Esta é a primeira experiência cinematográfica de Donato Carrisi, escritor e jornalista italiano, que se aventura nas odes da realização com a adaptação de um bestseller da sua autoria – “A Rapariga no Nevoeiro” (“La ragazza nella nebbia”). Provavelmente esta seja a relação que faltava a muitas conversões do género (na nossa memória surge automaticamente o desastre de “The Snowman”, o olhar de Tomas Alfredson sob o imaginários Jo Nesbø), a compreensão e a carnalidade entre o escrito e a materialização visual. Se é bem verdade que esta “perda de virgindade” por parte de Carrisi nos apresenta um produto ainda muito “verde” nos requerimentos de personalidade cinematográfica (o realizador requisita demasiado toques do universo de David Fincher), não é mentira que encontramos em “A Rapariga no Nevoeiro”, um golpe aguçado na tendência destes thrillers policiais.

O desaparecimento de uma adolescente num pacato vilarejo torna-se no centro da atenção dos medias após o envolvimento do infame e temido detetive Vogel (Toni Servillo), um investigador com um modus operandis muito particular (pactuava com a imprensa para pressionar agressores e vítimas, para além de, sob esse signo, falcatruar provas e evidências). No seio da investigação, encontra-se o suposto culpado do desaparecimento da jovem, um professor recém colocado sem álibis que torna-se num dos grandes ataques da iniciativa de Vogel.

Negro e carpinteiro, que para além de servir de bandeja fresca aos adeptos do género quase fincheriano, eis um thriller que interpreta a comunicação social como uma espécie de “quarto poder”, uma resolução faustiana para com a autoridades, provando com isso a falta de ética e deontologia das duas partes (um cinismo por vezes certeiro, provando as capacidades de dualidade jornalística de Carrisi). Num universo repovoado por anti-heróis, “A Rapariga no Nevoeiro” tem a proeza de nunca ceder à demagogia moral. Ao invés disso ostenta como um corpo de inserção num mundo não tão inocente, aquele que nós vivemos e que nos cumpliciamos.

E tendo esse fator em mente, Carrisi joga com os nossos julgamento, manipula-nos e sentimos como tal, indefesos e sobretudo influenciados por essas partidas de percepção (não será isso que muita comunicação social faz em prol do mediatismo?). Um produto nebuloso que tece as suas complexidades morais acima da semiótica pura da investigação detetivesca. São essas as questões que prevalecem, bebendo a priorização por vezes limitada da chegada ao whodunnit ou do efeito twist. Aqui, em “A Rapariga no Nevoeiro”, tal perde força perante a agressividade do seu código amoral.

Vistas bem as coisas, tudo poderia funcionar num dos mais entusiasmantes thrillers policiais dos últimos anos, mas Carrisi carece de maturidade no território cinematográfico e por vezes perde controlo dos imperativos aspetos de iniciante. Perde a noção do tempo (o filme prolonga-se mais do que é preciso) e perde em adensar os seus alvos. Mas nada impede que este seja dos mais ricos e negros do seu subgénero, daqueles produzidos recentemente com dignidade de dar baile a muito das “americanices” que nos surgem.

Políticos não se confessam, dizem eles

Hugo Gomes, 25.06.17

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Desde cedo os italianos souberam extrair da crítica social, como política, o seu modelo cinematográfico. O neorrealismo, oficialmente nascido em 1943, é tido como uma dessas importantes visões de ousadia mordaz, enquanto que se servia de afronta para a ideia, então estabelecida, de cinema, contrariando as tendências estilísticas, filmando de forma estilizada, um realismo não estilizado (Erwin Panofsky).

Com o passar dos anos, as críticas italianas obtiveram as suas diferentes facetas, desde a comédia à lá Itália que olhava para o humor como um portento escudo no seu ataque, e o "fellinismo", esse surrealismo barroco disfarçado que se abatia anos seguintes como um novo signo de vocabulário cinéfilo. Por fim, aparece-nos a poesia de Pasolini a servir de contraste e a fervorosa veia política de Nanni Moretti a prevalecer numa despida sinceridade ideológica. Ou seja, em sangue italiano, a política como tema crítico para uma visão analista corre com tamanha agressividade nestas veias.

Atualmente, o cinema não encontra nenhum movimento artístico predefinido, e a globalização tem tido papel fundamental na diversidade de vozes, cuja única similaridade é esse tom crítico. “Le Confessioni” é o enésimo avante de discurso político, principalmente vindo da dupla Andò / Servillo, que após o sucesso de “Viva La Libertá” (“Viva a Liberdade”), onde apresentava o humor doppelganger para construir uma política de sinceridades (mas nunca objetiva na sua crítica), reúne-se para invocar um misto de referências, que vão desde uma reunião G8 e a clássica forma de thriller de Agatha Christie, passando pelas óbvias menções de “I Confess”, de Hitchcock (as personagens estão encarregues de elucidar-nos) e a estética que fora mundialmente reconhecida pela cinema de Sorrentino.

Toni Servillo é um monge de raízes misteriosas, convidado a participar em tal reunião política, a pedido do líder do FMI, Daniel Roché (Daniel Auteuil). Os motivos deste misterioso convite são revelados após o suicídio deste último. Um ataque às políticas de austeridade e às empresas que ganharam com a crise, que tanto têm a dizer para os países do Sul da Europa, como Itália. Contudo, esse mesmo ataque é feito por impasses do grotesco burguês à lá Sorrentino, mas ao contrário do realizador de “La Grande Bellezza”, Roberto Andó funciona como um impostor, copista, e essa preocupação pela estética revela-se na sua maior fraqueza, até porque o filme nada tem para dizer, para além de um extremo senso de moralismo.

Entre punchlines aqui e ali, frases que nos levam à nossa consciência moral, "Le Confessioni" é demasiado preso às suas influências. Toni Servillo é imperativamente regido pelo seu ego e o resto, totalmente inofensivo, interligando as devoções religiosas, o maniqueísmo das boas ações, como uma solução pela frieza política. Tal como diz Connie Nielsen a meio do filme, "já todos andamos fartos de contos de fadas".

A Grande Beleza, porque todos nós a perseguimos nesta “doce vida”

Hugo Gomes, 23.02.14

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Há algum tempo que não víamos uma Roma tão abrangente, tão alienada e indigesta como esta visão / miragem dada em “La Grande Bellezza” de Paolo Sorrentino, o mesmo homem que há anos esteve por trás de um quadro intimista sobre uma das enésimas páginas negras da história política italiana: “Il Divo: A Vida Espectacular de Giulio Andreotti”. Nesta sua nova obra, a mais pretensiosa até à data, o autor decide criar uma panóplia de “sabores” e de requinte visual, referenciando tudo e todos e preenchendo com todas as metáforas e dilemas que tem a seu místico alcance. Esta ambição que vai desde o visual, o técnico e à filosofia de pacotilha um tanto amargurada, outra encantada, é ao mesmo tempo uma divagação pelas ruas e monumentos da cidade romana, captando a sua beleza e em busca da sua alma celestial.

Confusos? Pois bem, “La Grande Bellezza” é eclético no seu modo operativo, ora é um retrato de pretensões para com a decadência de vida, sublinhando o lixo cultural e a pseudo-intelectualidade cada vez mais confundida com arte, ora é uma obra à deriva onde damos de caras com o nosso protagonista (Toni Servillo) vagueando como o derradeiro pedestre por uma cidade adormecida mas não morta na sua beleza inerente. É como de certa maneira Sorrentino invocasse cinema ocasional, filmando tudo como um guia turístico ou todos, o repentino cameo de Fanny Ardant parece ser prova disso, mas sobretudo o autor não deixa “morrer” o seu filme de maneira alguma. E quanto mais fundo o seguimos, mais nos deliciamos com a sua simplicidade, apenas envolvida por distorcidas e penetráveis filosofias, morais e claro, um tom satírico e crítico que prevalece como ninguém.

Para além disso, Sorrentino é multifacetado na sua direção, quer pela mimetização (segundo as más línguas), onde consegue invocar Federico Fellini e o seu neorrealismo de fase circense, como também a veia satírica de “La Dolce Vita” (o falsete da burguesia para cima, por exemplo), até aos planos algo simétricos e renascentistas que um Peter Greenaway saturaria. Ou seja, até na sua realização, Sorrentino incute a diversidade cultural, homenageando alguns dos novos artistas, aqueles desprezados pelos puristas das artes, que são os cineastas. Nisto tudo, sente-se em simultâneo uma mise-en-scene por vezes digna de teatro de farsas em malabarismo com um intimismo de quebrar verniz ou de ser envernizado.

Salienta-se ainda a banda sonora que parece abraçar tanto o moderno como o clássico, o erudito ou o acústico, de uma magnificência contagiante e o desempenho de Toni Servillo, o peão neste versátil jogo de metafísica que é “La Grande Bellezza”, a condensar esses elementos numa indiferença de capa, como quem pavoneia perante o cordel da vida num tédio ofuscante da sua humanidade. Um filme indescritível, a vida de decadência cultural, a epopeia cultural de Sorrentino a captar a Itália no seu melhor (e o pior). Amores e ódios, conjugados num dos ensaios de risco. Consensos, nem é aquilo que este protagonista procura. Por onde “caminhamos” quando morrermos?