A Cuba que vemos ... de longe!
Num momento, durante as preparações para um espetáculo de marionetas, o encenador e mentor guia a sua artista (e manipuladora dos fios desta "vida artificializada") de que o realismo (ou a atribuição do mesmo) é apenas um gesto que varia consoante a nossa perspetiva. Nesse aspecto, aponta o lugar do espectador daquela (ainda) proto-peça como o catalisador de quão coerentes (ou não) se tornarão os movimentos dos bonecos performantes. Retendo esta mesma indicação, sigo para o filme - "Los océanos son los verdaderos continentes" - da autoria do italiano Tommaso Santambrogio como uma questão de "lugar".
O próprio revela nas "notas de intenção" que a ideia do filme surgiu da sua impressão em Cuba, constatando o abandono social e arquitetural como um sinal dos tempos e da natureza do seu país. Ora, como bem se entende, não se trata aqui de uma perspetiva nativa, mas sim de um turista acidental encantado com a decadência exótica envolvente, e com isso espremendo uma narrativa com três fatias de personagens que culminaram em representações (suas) do estado de Cuba e dos seus respetivos habitantes. Não coloquemos aqui imposições morais que hoje apresentam a tendência da crítica de cinema contemporânea, mas é um facto que nos deparamos com uma visão de alguém nas filas de trás do imaginário auditório. Nesse sentido, Santambrogio, nesta sua primeira longa-metragem (uma curta de 2019 virada longa, deve-se salientar), é fiel a si próprio, mesmo que a sua visão esteja contaminada por referências (ou atalhos) de como representar a região em si, que não correspondem à experiência do seu vivente.
Faço então um parêntesis para narrar uma "aventura" minha em 2019, durante o Festival de Cinema de Jerusalém a decorrer na Cinemateca da cidade. Entrei numa discussão em relação ao filme "Roma" de Alfonso Cuarón, em que o meu parceiro de conversa "cuspia" ao ouvir alguém pronunciar apenas o título, acusando o trabalho do mexicano de ser falso para com a pobreza que retrata. Segundo ele, Cuarón embeleza a miséria humana, em contraposição com um cineasta quase antípoda - Wang Bing - que sob a sua crueza e crueldade mantinha-se fiel aos farrapos humanos que filmava. Contrapus, pensando no colombiano Luis Ospina e a sua rutura com o cinema miserabilista que havia concedido até se autoconscientizar como "vampiro" da "porno-miséria" (palavras suas... maravilhosas palavras suas), com uma questão ainda hoje sem resposta definitiva - como se deve filmar a pobreza?
Depois deste aparte, regresso a "Los océanos son los verdaderos continentes" com o mote do manual da pobreza registada: o como e devemos proceder em relação a ela? Definitivamente, Santambrogio tomou algumas notas de Cuarón, não reproduzindo a magnificência dos planos conjuntos do mexicano e da ação em camadas (crime um filme dessa natureza estar na Netflix), mas induzindo um diálogo com o espaço/tempo, acima das suas personagens. É a perspetiva do italiano, cuja rusticidade e o abandono preencheram a sua imaginação enquanto estrangeiro, desviando-se da Cuba de postal (colorida e melódica), e incentivando a replicar o seu "gesto de realidade", neste caso, e buscando outra inspiração evidente (visto que colaborou em "Historya ni Ha"), com Lav Diaz, o de transformar o biótopo à sua frente (personagens, ações, espaços e tempos, a totalidade do "mise-en-scène") como um exorcismo da História contida e silenciosamente sintetizada.
O preto-e-branco serve novamente como apoio aos seus "mentores", mas por sua vez, o engajamento de Santambrogio é poeticamente temporal, aí Cuba, representada em três tempos (estados como bem entender, que traduzem em personagens de tramas paralelas), resume-nos como um tratado sociopolítico, o bastante para que a primeira sequência se indique, não um sonho (o "failsafe" desta realidade filtrada), mas sim um teatro geopolítico e absolutamente tectónico. A distância, não como um sentimento do seu enredo, mas de uma nação condenada ao remoto.
Filme de abertura da Giornate degli Autori do Festival de Veneza