Uma das maiores e alucinadas surpresas do cinema da última década chegou em 2015: um "reboot" de "Mad Max" que transcendia o mero entretenimento e a lógica comercial do "blockbuster" para alimentar um franchise. Foi através da sua inicial trilogia pós-apocalíptica, entre 1979 e 1985, que lançou Mel Gibson como o derradeiro anti-herói de um mundo sem amanhã, que o realizador George Miller criou a sua imagem de marca.
Tratava-se de uma fantasia "steam punk" que, gradualmente, evoluiu para uma parábola à volta do consumismo desenfreado e auto-destruidor, assim como a nossa dependência dos combustíveis fósseis, que à sua maneira criavam transvestidos psicopatas. Cada vez mais desencantada, a despedida (provisória, sabemos agora) de “Max, o Louco” foi com "Mad Max Beyond the Thunderdome" (1985), o terceiro e mais rendido às fórmulas "hollywoodescas", com a curiosidade de possuir a estrela Tina Turner como co-protagonista e assinante da música de saída (“We Don’t Need Another Hero”).
Enquanto a indústria não decidia se continuava ou não a jornada, George Miller avançava e inovava a carreira, já em Hollywood, com "The Witches of Eastwick", "Lorenzo's Oil”, "Babe: Pig in the City" e até as animações "Happy Feet", com alguns projetos pelo meio que acabaram por não avançar (como a sua versão de “The Justice League”). Até que se deu o regresso ao território sem lei com "Road Fury", 30 anos depois de termos deixado Mel Gibson e a sua "persona" deambulando por um horizonte longínquo e desértico, um reencontro não de todo (inicialmente) aplaudido pelos acérrimos fãs por causa da natureza do seu recomeço: é Tom Hardy o novo guerreiro da estrada, tendo como co-piloto Charlize Theron, que acabou por ter mais garra para o volante do que a figura central (mas já seguimos essa estrada). Para este regresso, George Miller apercebeu-se a tempo que era necessário reinventar a sua própria ideia de espetáculo, mal habituado por causa das matérias de super-heróis das já reconhecidas editoras Marvel e DC.
Mad Max é um “super-herói” nos termos naturais da palavra, mas é, acima de tudo, o nosso peregrino dos últimos redutos da humanidade, ambíguo e com a subsistência no topo das suas prioridades. E o seu mundo é feito de “armadilhas” instaladas como brindes à memória do espectador convicto desse mesmo apocalipse. Exemplo disso é o grande vilão ser interpretado por Hugh Keay-Byrne, o primeiro arqui-inimigo de “Mad Max” no filme inaugural de 1979. Contra todas as apostas, neste novo artesanal à escala industrial descobrimos um carinho pelo regresso a um cinema distante da toxicodependência do CGI (que existe, e muito, mas sem "sufocar" tudo à sua volta) e que abraçava de forma criativa os "stunts", explorando a magia da montagem para produzir uma energia explosiva.
Depois temos a Mulher. Mais do que mero ativismo político ou social, Charlize Theron partilha o protagonismo com Hardy, e, para ser sincero, de forma desigual, já que a atriz rouba qualquer cena que surja com a sua trágica “mulher de armas”, Furiosa. Tal como sucedera em “Snow White and the Huntsman”, Theron prova mais uma vez que nenhum papel é pequeno. Neste caso, as comparações que tem suscitado com a Ellen Ripley de Sigourney Weaver, esse símbolo da mulher de ação no Cinema, não são tão descabidas assim, visto que a sua personagem é uma emancipada, subjugada aos códigos do feminismo militante e intercalada com uma extrema necessidade de apelar ao lado mais emocional. George Miller conseguiu aqui, subtilmente, um hino ao retorno da ação no feminino através de uma manobra bem perigosa, mas com resultados felizes. Mad Max não é o único “herói acidental” aqui, desta vez é uma mulher que está ao volante.
Mas não nos fiquemos por questões de igualdades, nem de profundidade por vezes imperativas nos blockbusters dos dias de hoje. “Fury Road” é, sim, uma montanha russa, imparável, pomposa, mas sempre fiel aos códigos de série B. É entretenimento para massas, eficazmente direcionado a todos os que cresceram com o herói de Gibson ou pela ausência de limites na ação. É uma reciclagem das grandes perseguições, enraizadas na narrativa com uma força motora.
O resultado é talvez um dos dos filmes mais cativantes que o cinema produziu nos últimos anos ao nível “imagem-movimento” descrito nas prosas de Gille Deleuze. Uma proeza feita com uma narrativa simples, quase minimalista, numa viagem extrema de “ida e volta”. Esteticamente é um novo Mad Max, porém, o modelo continua a ser o antigo.