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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Living Room

Hugo Gomes, 11.12.24

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Robert Zemeckis nunca desiste em colocar a tecnologia e os seus experimentos ao serviço da narrativa, mesmo que tais façanhas lhe tragam um dissabor financeiro, mesmo assim o sistema ainda se aposta nele nesta corrida entre estúdios e o alcance das bilheteiras. Comecemos então com o seu novo projeto - “Here” - com base na excepcional graphic novel do artista Richard McGuire (editado em Portugal pela Cavalo de Ferro), obra que posiciona-se num só espaço, um canto que atravessa a pré-história até a uma América ante-colonizada, virando uma sala de estar, a “living room” que o inglês tão bem se adequa. 

A narrativa parece estagnar nesses saltos formidáveis entre tempos e prossegue na história de uma família, indicando três gerações, e como já devem ter entendido se mantém rígidos na sua assoalhada. Zemeckis acaba por adaptar fielmente esse estilo dos “quadradinhos”, concretizando um plano fixo prolongado no qual a decora por via de uma estética de conversão e transposição tecnológica, há um artifício notável e notado que desliza ocasionalmente para o seu quê de artificial. Dessa feita são os dinossauros e a sua iminente extinção a abrir o pano do espectáculo, seguindo pelos nativos norte-americanos numa espécie de romance intemporal, dando a vez a uma Guerra Civil para dar um aroma específico de tragédia familiar e o final do século XIX com a aviação enquanto sinal de progresso. 

“O futuro é o único caminho a seguir”, declara o aspirante a aviador perante a sua esposa desconsolada com a moradia que irão adquirir em conjunto, o filme, por outro lado passeia por esse futuro, contornando, recuando, e incentivando, diminuindo a cadência temporal nas proximidades da nossa contemporaneidade. A narrativa estilhaçada, com pontas geracionais a dialogar com o próximo, indicam a criatividade visual de Zemeckis em apresentar o seu storytelling consoante as regras estabelecidas do tal “plano fixo”, funcionando num teatro de exercícios e virtuosismos. Depois, Zemeckis não deixaria de ser Zemeckis se não existisse esse “bicho carpinteiro” com a tecnologia e as suas possibilidades, Tom Hanks e Robin Wright, o “casal maravilha” de “Forrest Gump” (1994), são as cobaias desse de-aging e aging, da adolescência à velhice, ao serviço de uma fidelidade com os maneirismos e a carne, mesmo que ela nos apresenta em jeito de ”bonecos de cera”. 

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É o problema destas tecnologias, e o IA prestes a integrar o cardápio dos técnicos, o de nunca transmitir uma verdadeira textura, carnalidade e dimensão, a quem chame facilitismo, neste caso é pura carolice. Porém, não cede ao espalhafato digital porque Zemeckis é um artesão dramático de uma já considerada “velha guarda” em Hollywood, conseguido captar em cada quadro uma carga emocional, como também uma tese submersa ao longo deste joint - somos nada neste universo, indo contra a própria regência da produção. Momentos zeitgeist ali e acolá: George Floyd e o COVID a serem invocados com uma subtileza de génio em historietas anexas, e uma rigidez formal neste metamorfoseado “plano fixo” a revelar o detalhe da sua arquitetura dramatúrgica. 

Ficamos felizes com o exercício e a sua ginástica, só que o truque é revelado naquele final consolidador, um travelling mais que spielbergueano a desmascarar a sua sobriedade formal. Robert Zemeckis, o eterno comparsa de Spielberg, cita como sempre citou uma incidência quase capriana, aqui, por exemplo, Tom Hanks a ser uma espécie de George Bailey sem anjos da guarda para o interceder. 

Vá … confessemos, este é um dos melhores Zemeckis em muito tempo, mesmo com a sua rigidez e performance tecnológica. 

Pelas ruínas do Oeste

Hugo Gomes, 12.02.21

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O western está morto e enterrado. Aliás, há quem culpe Clint Eastwood de ter executado o funeral com "Unforgiven", em 1992. O que tem aparecido esporadicamente são exercícios ou desconstruções, olhares distantes da sua legitimidade enquanto género formado e convicto. “News of the World”, marcado por uma realização mais calma e menos galopante por parte de Paul Greengrass (distante da imagem de marca da saga Jason Bourne ou “United 93”), funciona como uma releitura dos elementos do Oeste selvagem americano, iluminados por uma luz atual, ou seja, a de uma nação dividida após o resultado determinante de uma guerra civil e o poder da imprensa como alvo de uma facção descontente.

Através de um "leitor de notícias" (Tom Hanks novamente pelas boas causas, uma constante na longa carreira), um errante que “saltita” de cidade para cidade para, por uma pequena soma de moedas, ler as notícias impressas nos jornais de época aos habitantes iletrados, Greengrass resgata a importância da imprensa, o Quarto Poder, que teve o seu "boom" técnico e operacional por volta da Guerra Civil Americana (1861-65). Com "News of the World" somos transportados para os anos seguintes, em que venceu a União (os estados do "Norte") mas permanecem os resquícios do conflito. E numa nação dividida, são os jornais que unem o vasto território. Portanto, é este o pormenor pouco visto no género (que, de um certo prisma criativo, apenas serve para preencher o perfil do nosso protagonista) que relaciona o filme com o espectador e a questão do "novo western".

O restante da jornada é uma odisseia com os seus episódicos obstáculos e lições aprendidas e um desfecho que exalta a “jornada do herói” segundo a tradição do cinema de Hollywood. É uma obra visualmente exuberante a reproduzir este Oeste frio e sujo, mas que nada adianta às convenções de um género que morreu e só pede que o deixem gozar o eterno descanso.

(Mais um) Herói americano by Clint Eastwood

Hugo Gomes, 09.09.16

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Um dos episódios mais impressionantes da História da Aviação aconteceu em 2009, quando o piloto norte-americano - Chesley "Sully" Sullenberger - concretizou com êxito uma arriscada aterragem no Rio Hudson. Estamos a falar do  US Airways 1549, um avião comercial que trazia a bordo 155 almas, porém, devido ao heróico feito de "Sully" que atuou no momento certo, nenhuma delas se perdeu. Uma "boa notícia em Nova Iorque, principalmente com aviões", como é referido a certo momento nestas adaptação de Clint Eastwood, tem recebido um extremo frenesim mediático. "Sully" foi automaticamente elevado a estatuto de herói, tendo até sido nomeado pela revista Time como uma das 100 pessoas mais influentes.

Mas passando para o filme propriamente dito, Clint Eastwood remexe novamente na História norte-americana para analisar um dos seus heróis recentes. Contudo, este “Sully” está mais próximo de “Flags of our Fathers” (“A Bandeira dos Nossos Pais”) do que o equívoco de “American Sniper” (continuo a acreditar que o filme não foi fruto de Eastwood), o qual procura uma definição concreta de heroísmo, posicionando a câmara para os homens comuns que os "imortalizam". Enquanto que no filme de 2006, o retrato dos soldados que içaram a bandeira dos EUA na ilha de Iwo Jima, os ditos "heróis" questionavam-se perante uma sociedade sedenta pelo estatuto, em "Sully" é a própria sociedade que questiona a natureza do nosso herói, sendo este o conflito que prossegue toda a narrativa, desaguando no limiar existencialista do protagonista.

Tal como sucedera com o fracassado “Flight”, de Robert Zemeckis, é a busca dos factos e responsabilidade acima de qualquer fator humano, mas “Sully” apresenta-nos um "punhado" dessa última dose com Tom Hanks a funcionar como um ator "capriano", a erguer toda a trama em cima dos seus ombros mesmo que para isso torne descartável todo o conjunto de personagens secundárias. No fim percebe-se, que os veios analistas não chegam a ser profundos, as marcas não nos levam ao seu extremo e o classicismo moralista é a solução para uma dedicada homenagem.

Talvez tenha sido “American Sniper”, que fora o embate com um realizador anónimo, que fez com que “Sully” converter-se numa experiência acima da média, mesmo assim interiorizada no cinema norte-americano academista. Mas é Clint Eastwood que se encontra na batuta, quer que se ama, ou odeia, é esse fator humano que conta.