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Todd Phillips dirige Joaquin Phoenix em "Joker" (2019)
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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...
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Todd Phillips dirige Joaquin Phoenix em "Joker" (2019)
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O ano 2019 foi marcado por uma disputa mais renhida entre a distribuição tradicional e os lançamentos de streaming. Nesse último ponto, dando o exemplo da megalómana plataforma Netflix, houve uma forte aposta nos autores que se encontravam (devido a questões criativas, orçamentais e até logísticas) ausentes nas majors hollywoodescas como é o caso de Martin Scorsese e o seu épico gangster The Irishman ou o intimismo de Marriage Story, um dos melhores trabalhos do nova-iorquino Noah Baumbach. Enquanto isso, o cinema fora EUA continua a dar as suas cartas em relação a histórias universais e motivadoras para estas gerações de sofá. E mais uma vez … o cinema português lidera o pódio deste estaminé.
#10) Leto
Sem romances escandalosos, as biografias de cantores de rock seriam inúteis", ouve-se a certa altura nesta não convencional cinebiografia sobre a criação da banda de rock soviético Kino. Do dissidente russo Kiril Serebrennikov, eis um filme intrinsecamente poético (são bandas de Leninegrado que tocam rock que não é rock, mas que pretende ser rock) e expostamente revoltado sobre a resistência jovial e punk perante uma ideologia em queda no gradual contacto com o acidente.
#09) Marriage Story
Embora ele o negue, há quem diga que Noah Baumbach se baseou no seu processo de divórcio para este filme emocionalmente cortante sobre o desgaste amoroso e as eternas batalhas judiciais e sentimentais de uma separação. Desempenhos impactantes e cuidadosamente explosivos fazem deste drama (e produção Netflix) um dos mais certeiros filmes sobre o tema do divórcio no panorama norte-americano, onde a distância é, por si, um alvo de foco.
#08) Joker
Uma génesis anti-canónica embrulhada em maneirismos e referências do cinema de Scorsese. Um fenomenal Joaquin Phoenix e Todd Phillips compõem uma obra cruel que dialoga com a atualidade, dos movimentos populistas até à marginalização das minorias e dos incapacitados numa sociedade que cada vez mais os despreza. Um filme ambíguo que nos faz temer pela sua capacidade e recusa de empatia. Uma das mais interessantes e sólidas incursões do cinema de super-heróis.
#07) L'Empire de la Perfection
Julien Faraut arranca com um texto do crítico Serge Daney em que comparava o Cinema com o desporto, nomeadamente o ténis, para partir numa busca pela perfeição nas posturas e gestos destes jogadores. Nesta sua investigação, esbarra no improvável, em John McEnroe e os seus movimentos desengonçados, na postura imprópria e no seu feitio que motivavam constantes paragens da partida. Através da imperfeição, tenta-se decifrar a perfeição.
#06) Once Upon Time in Hollywood
Deambulamos pelas avenidas solarengas de Los Angeles, ou passeamos por um rancho cercado pelo culto Manson, trilhos e esperas que nos levam a um cinema dotado de paciência, mas percorrido com o amor à Sétima Arte, esse, oriundo de um dos seus entusiastas. Absolutamente "tarantinesco" e longe dos quadrantes do politicamente correto, um filme que é um espelho da nossa realidade e condição social, refletidas numa permanente fábula.
#05) Dolor y Gloria
Após algumas revisitações falhadas, Almodóvar regressa ao passado, fonte de inspiração de algumas das suas melhores obras, para exorcizar as suas memórias num retrato de vitórias e derrotas. O “Pedrito” tem aqui o seu grande pseudónimo na pele de António Banderas, aquele que é possivelmente a seu papel mais rigoroso. Certamente sereno, consciente do seu percurso e sabiamente maduro, o filme é o melhor de dois mundos, a sensibilidade e a maturidade.
#04) Mektoub, My Love: Canto Uno
Para as acusações de misoginia e de voyeurismo, respondemos com uma espécie de efeito proustiano no preciso momento em que Abdellatif Kechiche revisita as suas memórias de juventude numa distorção ficcional. A câmara assume diversa vezes o olhar de um jovem propício à descoberta sexual e emocional, e o filme acompanha essa libertação como um mero turista por entre praias, ruralidade e noites enfrascadas em álcool.
#03) Glass
Nesta secretamente trabalhada trilogia do realizador de “O Sexto Sentido” e “O Protegido”, eis uma analogia ao nosso mundo, dominado pelo universo dos "comics" e super-heróis, desafiando a formatação cinematográfica a partir de uma impingida desconstrução. Mesmo sendo disperso na mensagem, M. Night Shyamalan nunca pretendeu fazer o mesmo que outros com materiais familiares, mas sim olhar à volta e repensar essa mesma paisagem. Será fruto de reavaliações no futuro.
#02) Parasite
O sul-coreano Bong Joon-ho sempre requisitou a luta entre classes, seja de forma evidente ou subliminar, durante a sua carreira. Aqui segue uma família que sobrevive à conta de esquemas e subsídios e tenta infiltrar-se num seio mais avantajado. A sua obra narrativamente e tematicamente mais convencional, mas nem por isso inferior, pelo contrário: é a sua acessibilidade comunicacional que o torna universal e igualmente pontuado de pormenores deliciosos e fraturantes sobre as pirâmides hierarquizadas das nossas sociedades (ocidental ou oriental).
#01) Vitalina Varela
Premiado com a distinção máxima no Festival de Locarno, mais o prémio de atriz, eis mais um feito do cineasta português Pedro Costa no seu percurso de constante reinvenção artística. Uma jornada por entre fantasmas e viúvas numa Lisboa soturna e condenada à marginalização onde, pelo meio, há todo um investimento estético que proclama o filme como um livro de ilustrações aberto para cada um de nós apreciar (nota ao diretor de fotografia Leonardo Simões). Uma experiência sensorial.
Menção honrosa: Ash is the Purest White, If Beale Street Could Talk, Los Pájaros de Verano, Alice et le Maire, 3 Faces
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Todd Phillips pode ter saído da comédia tresloucada de “Starsky & Hutch” ou “Old School”, passando pelo seu maior êxito - a trilogia "The Hangover" -, mas é o constante aconchego ao universo do “chico-espertismo”, a replicar tiques de Martin Scorsese, que percebemos da aproximação a um legado prestes a ser deixado. Assim obtivemos “War Dogs” como experiência de laboratório dessa invocação “scorseseana” e, verdade seja dita, o resultado não superou mais do que uma espécie de prato alternativo. É com “Joker” e a envolvência num cinema-tendência que é o subgénero dos super-heróis, que Phillips, por fim, espelha essa fixação com a sabedoria necessária, frente à mera piscadela de maneirismos.
É certo que é difícil contornar a prestação esmagadora de Joaquin Phoenix como o eterno nemesis do Cavaleiro das Trevas (Batman), mas esse fascínio pelo cinema do realizador de “Raging Bull” e de “New York, New York” (filme a precisar urgentemente de carinho) leva-nos em modo “corta-mato” à lente da Nova Hollywood (termo utilizado para as abordagens trazidas no cinema setentista norte-americano). Aí, em plena década de 70, após a viragem crucial impulsionada pela televisão e Charles Manson, a indústria que havia perdido a sua inocência emoldurada, acolhe a chegada de uma nova geração (os apelidados “movie brats”, cinéfilos e estudantes de cinema que colocariam em prática as suas visões cinematográficas). A violência, que se transcende do “fruto proibido” a “pão de cada dia”, tem por fim uma presença visceral e explícita no grande ecrã, enquanto que os olhos dos espectadores são colocados numa perspetiva sarcástica para com o prisma político-social diversas vezes debatido nos referidos filmes. Esta é a cerne de muito do cinema que Scorsese iria desenvolver, por exemplo em “Boxcar Bertha”, “Mean Streets” e, obviamente ,“Taxi Driver”, que, juntamente com “The King of Comedy", são os dois principais nutrientes que empestaram este “Joker” no "vintage" do seu tributo.
Esse tratamento é evidente na personagem-título, o futuro alter-ego de Arthur Fleck, homem vítima da sociedade que o cerca e que, perante a sua inadaptabilidade, torna-se num símbolo anárquico e violento numa luta entre classes na cidade de Gotham. Fleck partilha com Travis Bickle (a icónica personagem de Robert DeNiro em “Taxi Driver”), o auto-menosprezo e, com isso, uma revolta interna que o irá distorcer em prol de uma figura ideológica. De Niro, claro, que é também um dos atores de "Joker". Todd Phillips não esconde essa ligação umbilical de “Taxi Driver” com “Joker”, desde o “You talkin' to me?” que se transcreve neste filme como “You like my dance?”, atravessando o revólver como meio libertário, o espelho como epifania existencialista (realçado com o violino de Hildur Guðnadóttir) ou o falhado interesse amoroso que acentua o seu afastamento pela normalização social.
Perante isso, a representação da violência como um estado inerente da personagem é um contra-espelho do ecossistema que integra. Há algo de perversamente credível no mundo de Arthur Fleck e, em consequência disso, algo perturbador no seu Joker. Joaquin Phoenix acompanha Todd Phillips na sua digressão algo tese. Já nomeado aos Óscares com “Gladiator”, “Walk the Line” e “The Master”, o ator aventura-se naquilo que tão bem sabe fazer: trágicas personagens sem qualquer tipo de empatia.
É nessa ausência que, por bem, afastamos Arthur Fleck da mera condescendência que os seus antecedentes poderiam suscitar. É um equivocado “herói”, um vigilante acidental que cede pela sede de uma sociedade igualmente desequilibrada, que busca por respostas fáceis aos seus complexos problemas. Só que em vez de se esgueirar pelo populismo dos políticos manipuladores, esta população solicita o seu ícone de resistência, uma ideia nascida numa pessoa. O mais curioso é que Todd Phillips desenvolve esse “falso-remake” de “Taxi Driver” sob um infiltrado formato do cinema "mainstream", onde o super-herói é diversas vezes infantilizado para corresponder às “necessidades” dos seus espectadores e às boas morais politicamente aceites. É uma espécie de submarino nesses mesmos propósitos.
Por isso, é que, com “Joker”, encontramos a esperada intimidade de Todd Phillips ao dito legado que anseia. Até porque alguém tem que assumir a nossa dose "scorseseana" após a retirada do seu genuíno mestre - “Scorsese itself”. Com isto não afirmamos que o realizador de “The Hangover” (ainda que, sob esses moldes, possamos encarar a comédia como uma variação fácil de “After Hours”) é o herdeiro legítimo ao trono, porém "Joker" é uma das intervenções mais maduras do cinema de super-heróis desde "Logan" (e ficamos feliz por ver que, finalmente, dão uso a estes filmes). Um pouco como a novela gráfica de Alan Moore, “The Killing Joke”, abraçada por um intenso senso de estudo de personagem, e, nunca é demais repetir, antes de finalizar, como dilacerante está este Joaquin Phoenix.
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É dos exercícios mais maduros do universo dos super-heróis desde Logan … mas que neste caso inseri-lo no contexto desse subgénero é quase como uma ofensa. Convenhamos que toda esta emancipação serviu para incentivar uma experiência de cinema longe dos círculos dos cânones das tendências industriais, o resultado é uma subversiva e perversa analogia do nosso mundo, completamente inspirado pelo código binário social. Mas essa lógica funciona somente como uma capa, Joker, do cada vez mais “scorseseano” Todd Phillips (já começo a ver The Hangover como um delirante After Hours) remexe nas fontes das nossas anomalias, culpando a sociedade envolto, mas nunca vitimizando a “cobaia”.
Pois … já me ia esquecendo … Joaquin Phoenix é esmagador
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