A 'kagemusha'
Há uma evidente alusão à “Persona” e a “Clouds of Sils Maria”, de Olivier Assayas, quer no confronto de identidades, quer na essência performativa, no entanto, em "May December", a recente colaboração entre Todd Haynes e a sua “musa” Julianne Moore (dupla “unha” e “carne”, evidentemente), evoca inesperadamente, e espiritualmente, um dos últimos trabalhos de Akira Kurosawa: “Kagemusha” (1980). Esse épico kurosaweano, surgido na sua fase pós-consagração, destaca a transformação de um sósia para o seu falecido Senhor de Guerra. Os próximos ao círculo do anterior feudatário apercebem dessas semelhanças, salientes e confundíveis da 'cópia' ao original, até ao ponto em que se tornaria mais autêntico [sublinha-se] que o próprio Senhor. Mais tarde, somos conduzidos a esse duplo-sombra perseguido pelo vulto do seu defunto mestre, numa perseguição onírica, metaforizando a instabilidade e mutabilidade da identidade, que não é mais do que uma 'persona' em constante manutenção.
Em "May December", Natalie Portman, assumindo o papel de Elizabeth Berry, uma atriz de renome do pequeno ecrã, imersa num novo e ambicioso telefilme, a adaptação da controversa história de Gracie Atherton-Yu (Julianne Moore), uma professora condenada por um relacionamento amoroso com um jovem de 13 anos nos anos 90, automaticamente virando uma figura mediática de tabloide. Portman estuda meticulosamente a personagem expressa em Moore, agora instalada e vivendo um matrimónio, aparentemente feliz, com o seu antigo “amante jovial” (Charles Melton), mimetizando-a para desvendar a sua psicologia, idiossincrasias e identidade, até mesmo invadindo momentos íntimos. A conexão entre o filme de Haynes e o de Kurosawa reside na transformação da(o) 'sósia' até atingir a réplica ambígua, chegando a transgredi-la. Aqui, em cena, a simulação do sexo no local, o ato 'pecaminoso' que dá mote à 'novela', do qual testemunhamos a fuga à crisálida por parte de Natalie Portman (o filme faz uso de um sub-subenredo de borboletas monarcas e as suas diferentes metamorfoses como imagem-guia), a sua tomada de posição, ou diria mesmo superação, a criação de uma nova autenticidade, de uma nova 'realidade'. A 'kagemusha', a 'sombra', aproxima-se do genuíno, desafiando a essência estabelecida pela 'persona original'.
Quanto à natureza do próprio filme, desviando-se da abordagem clássica sirkeana (“Far from Heaven”) ou dos resquícios de David Lean (“Carol"), "May December" apronta-se num lado pindérico telenovelesco, com a abertura em jeito do 'jingle' de "The Go-Between" de Joseph Losey e os constantes dramas sumarentos com que expõe como rímel de um confronto entre verité e vanitas. Porém, é na sua teoria que se resume a um interessantíssimo ensaio.