A realidade ganha aos pontos
Gosto de pensar em “Reality”, a primeira longa-metragem de Tina Satter, como um filme inconscientemente moldado por uma ideologia contemporânea, e não... não me refiro à sua história real [reality] — a de Reality Winner, uma ex-especialista de tradução ao serviço da NSA, que divulgou aos media documentos comprovando a intervenção russa nas eleições de 2016, as mesmas que Trump venceu — e sim ao seu processo e à sua ligação quase imperativa para com conceito de realidade (mais uma vez, “reality”). O filme não esconde esta intenção, delatando-se desde o seu início sobre a natureza dos seus diálogos e performances: foram adaptados a partir de um relatório do FBI, sustentado por gravações captadas do ato de detenção de Winner. Assim, “Reality” assume-se como uma realidade-modelo, a musa dessa pintura que se dá pelo nome de dramaturgia; seca, repleta de impasses e diálogos pouco ou nada trabalhados em prol de um … aí está mais uma vez … realismo reconhecível.
Da mesma forma, as interpretações são recatadas, contidas e, por vezes, inertes, Sydney Sweeney, com a sua permanente "resting bitch face" colhe todas essas propriedades que o espectador convence-se do verdadeiro estado. A de uma “realidade identificável”, cuja abordagem reflete uma tendência que se tem alastrado no cinema contemporâneo, possivelmente enquanto resposta à sobrecarga de imagens a qual somos diariamente sujeitos em modo torrente, ou até aos canais de notícias 24 horas, que nos habituaram à captação do imediato e à exibição das chamadas "imagens reais" (onde até Artur Albarran poderia fazer o seu cameo numa tradução portuguesa). Ou seja, é a "realidade" que vemos e experienciamos nesses medias, assumindo-a como "verdade absoluta", e que nos confortamos em vê-la reproduzida na ação, no tempo e nos atores.
Mas, quanto mais o cinema tenta aproximar-se dessa "realidade", mais se afasta do Cinema propriamente dito (já clamava Manoel de Oliveira, que sei que não é para aqui chamado). É o realismo como um “olhar de ninguém”, e por mais competente que “Reality” seja - e tem competências em diferentes ramos - trata-se de um filme esteticamente nulo, desprovido de personalidade, por assim entender em estar na corrente dos seus factos verídicos.
Por outro lado, enquanto filme de denúncia, a estreia de Tina Satter é uma precipitação em terreno alagado. O que se destaca, verdadeiramente, é a atuação de Sydney Sweeney, aqui despida do seu famoso lado de fantasia hollywoodiana.