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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Que comece a Guerra Santa ... profetas, vermes e muita areia!

Hugo Gomes, 28.02.24

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Por um lado, não podemos livrar-nos da sensação de filme cortado ao meio que este "Dune" manifesta em nome de um espectáculo retardante; por outro, é impossível não constatar a divisão desigual desferida neste prometido “épico” de ficção científica extraído das páginas de Frank Herbert. Talvez isso explique a reação histérica com que o feito de Villeneuve tem sido recebido, um entusiasmo generalizado que o coloca ao lado de grandes epopeias cinematográficas. 

Mas vamos com “calma”, o que entendemos é que, claramente, esta segunda parte é mais filme no seu teor mais clássico (e aristotélico) em comparação com o deserto narrativo do antecessor, e até frutífero em ideias e imagéticas, como também é sinal do seu tempo, neste caso da nossa contemporaneidade, da supra-literalidade, do excesso e do realismo simulado em oposição ao fabulista. Fiquemos com esta sugestão: se a "maldita" versão de David Lynch sugou a mitologia teologicamente herbertiana, Villeneuve ficou com a sua política em massa, transformável acrescentamos, o qual se apropria e a reflete em paralelismos imediatamente atualizados (cada um pode fazer a sua leitura, desde descolonização até ao conflito israelo-palestiniano); a partir daí, é uma "Guerra dos Tronos" intergaláctica, com vários momentos e provocações politizadas que transcendem a uma suposta ação épica que os atributos aprontam. Sinal disso é o conflito final, despachado para se enriquecer em jogos de Poder à moda shakespeariana e de subjugações hierárquicas. 

Falando em "épico" e o senso comum aí prestado anos a fio, dotadas de um visual (comparativamente com a parte inicial) mais rico e pomposo (as sequências num planeta do Sol negro, Geide Prime, expressam como as mais bizarras e criativas do ‘universo’) até à sonoridade zimmeriana constantemente a fundo nos seus trombones apocalípticos. É um filme que se movimenta envolto de si, e mesmo sobre a sua suposta fase de estaticidade, nunca transpassando a ideia de emuldorado, um velho truque da arte do blockbuster em arquitetar essa sensação de hiperatividade até mesmo na constituição dos diálogos, do qual Villeneuve não é fã e não é da sua especialidade (nota-se, tendo em conta a escola nolanizadora que parece envergar, cuja simplicidade das 'coisas' como a arte de trocar palavras seja uma tarefa mais caprichosa que o normal); tudo se mexe no deserto de Duna, até o grande plano ostenta pequenas oscilações transmitentes de uma urgência frente à ambiência. 

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Em outros pontos a favor, mesmo sabendo que um desfecho (ou a possibilidade do mesmo funciona em prol) é o acerto no casting, para além de ser dada mais liberdade aos "antigos residentes", a ver Timothée Chalamet mais fluído mesmo ainda esperado da sua posse de "movie star" conquistado; por outro, há Florence Pugh, Léa Seydoux e um vilipendiado Ashton Butler, este último a demonstrar os seus possíveis caminhos de "método" performativo. Irreconhecível e visualmente intimidador, o ator de reputação estabelecida após “Elvis” de Baz Luhrmann, que aqui assume o anterior papel de Sting, mimetiza vocalmente ao repugnante personagem de Stellan Skarsgård (o grande vilão deste arco). Para que serve tal particularidade? Possivelmente para estabelecer uma similaridade sanguínea num planeta vistosamente degenerado e consanguíneo, embora falte a viscosidade e os insinuados incestos que Lynch apimentou nesse covil vil e desumano. 

Quanto ao resto, aprimorado e gigantesco à sua maneira, Denis Villeneuve, o agora coletor da ficção científica em sala, concretiza uma visão fidelizada ao legado de Herbert. "Dune: Part Two", longe do brilhantismo que muitos desejam registar, é uma obra catalisadora do seu zeitgeist temporal, megalómano, mastodôntico e fechado na sua inexpressividade. Fantasia depurada em sintonia com a sede das audiências cada vez mais incapazes de sonhar com o inexplicável. Confirma-se, é um upgrade ao primeiro tomo, mas mantém-se como espectáculo austero e de austeros. 

Passamos das (im)possibilidades do Cinema para isto…


May thy knife chip and shatter.

Come-me enquanto chamas pelo meu Nome

Hugo Gomes, 30.11.22

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Depois de abandonar o naturalismo em romances joviais e calorosamente hormonais que fora “Call me By Your Name”, o italiano Luca Guadagnino atingiu a popularidade mundial e aventurou-se em criar um legado seu, ou diria antes, recriar um legado. Depois de revisões em clássicos como “A Bigger Splash” e “Suspiria”, uma tentativa na televisão com “We Are Who We Are”, Luca espreita as páginas do romance de Camille DeAngelis, e oferece-nos “Bones and All”, filme de aspirações às odes de duplas homicidas em lençóis amorosos [“Bonnie and Clyde”, “Badlands”, “Natural Born Killers”] que, infelizmente (e não só), adquire um tom programático digno das inúmeras adaptações da literatura YA [Young Adult]. Só que ao invés de vampiros e o proibido ato de “morder pescoços”, temos um “Twilight” com canibais, aqui convertidos em anomalias humanas com o seu direito de vida e ao seu "exquisite" apetite. 

Taylor Russell (“Waves”, de Trey Edward Shults) é Maren, essa jovem-padrão que acidentalmente é inserida neste universo sedento de carne humana. Desde sempre sentiu impulso em alimentar-se da tão proibida “iguaria”, o que motivou o misterioso desaparecimento da sua mãe e mais tarde, o abandono por parte do seu pai. Assim, prosseguindo no interior americano em busca das suas raízes, mais concretamente na entidade maternal ausente, encontra nesse seu caminho um Timothée Chalamet igual a si e um Mark Rylance que verbaliza as leis não-assinadas deste “mundo de marginalizados”, descobrindo que a sua condição já se encontra batizada - “Comedores” - e que existe um nirvana a ser alcançada (“There's before bones and all, and then there's after.”). No fundo, como a maior parte dos coming-to-ages, é a catarse identitária, o destino desta road-trip desvairada, mas conectada a lugares-comuns [como sempre]. 

No papel, “Bones and All” soa-nos indigesto, e é no ecrã, cuja incompatibilidade de teores persiste. Imaginem colocar açúcar e sal no mesmo copo, enchendo-o de água e bebendo-o de seguida - obviamente que a tendência instintiva será de cuspir tal mistela, repudia-la perante os choques desencadeados por esses dois sabores - nesse aspeto, Luca revela-se incapacitado em criar uma aproximação para com estas personagens e para com este mundo, o canibalismo desculpável em vestes de romance teenager, e por sua vez um filme com uma limitação inteletual direccionada a adolescentes e pueris, numa temática que encanta adeptos do gore e do macabro, levando-nos a uma ingenuidade quase plástica. Filhos de uma carne sintética, sem crenças na sua própria “monstruosidade”.  

É um filme em constante finta, ora sentimos-nos enojados pelas “tripas de fora”, ora sentimos “encantados” e motivados com a maldição dos mesmos. A juntar a esta viagem de freaks evidenciamos a sua maior “fragilidade”, a grandiloquência de Luca, mais uma vez, exibindo um desejo mórbido em tecer o efeito-choque do que representá-lo em grande ecrã, fruto disso é uma montagem algo tosca (o "point-of-view" sob camadas de Maren após a saída do supermercado deixam-nos em aflição quanto a sua amadora decoupagem) ou até redundante (a intercalação no clímax é exemplo disso), para depois seguirmos para “pseudo-maliquices”, inspirações a “Badlands” no que requer à observação de uma América indomável e selvagem. Selvajaria poderia ser somente estas personagens, mas mais selvagem ainda é a ideia de trazer uma história destas, embrulhada em clima meloso, açucarado, mas contaminado com gotas avinagradas. 

Encontramos aqui o imperfeito filme de Natal? Aliás, prevejo que temos o filme “ideal” para arruinar uma Seia. A Última talvez quanto a este involuntariamente ridículo pesadelo.

"Dune": tudo pelo espectáculo e nada contra o espectáculo

Hugo Gomes, 01.11.21

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Afirmar que “Dune” de Denis Villeneuve é um deserto, não se comporta propriamente neste caso como um elogio tendo em conta o seu árido cenário. Bem verdade é que “Dune” é de um cinema seco, homogéneo correspondendo às suas noção generalizadas de espetáculo cinematográfico, e é pena que, mesmo não tendo uma personalidade definida, um realizador capaz e positivamente presunçoso visualmente tenha cedido à labiríntica inexistência. 

A minha cisão com o Villeneuve aconteceu com a sanduíche visual de Arrival”, o que poderia ser um interessante tratado à nossa comunicação e a nossa perspetiva do mundo através da linguagem já por si foi vendida ao artifício malickiano (Max Richter tocou e tocou) de uma definição infantilizada de esoterismo americanizado. Depois seguiu-se  “Blade Runner 2049”, o sacrilégio (para muitos) de uma sequela tardia que se envergava num passivismo para com a matéria-prima. “Saltitando” de ficção científica para ficção científica, chegou-se agora ao culto literário de Frank Herbert, naquela que à partida foi a mais satisfatória adaptação do inadaptável “Duna”, segundo fãs, até ao momento. 

Não é por menos que assim seja, “Dune” é demasiado preso à literalidade do seu texto, e não é preciso ler uma página sequer para perceber essa relação. O entulho amontoa para adiar e adiar clímaxes ou conter eventuais devaneios criativos (a "falhada" obra de David Lynch tinha esse ponto a seu favor, inventar e reinventar). Mas a culpa não é totalmente de Villeneuve - em sentido objetivo há competência nesse seu gesto, o encontro do épico que faltava, e por sua vez, o épico forçado, de fulgor exigido pela sonoridade pompeante de Hans Zimmer e a promessa de um segundo tomo em cima de projeções de trilogia - a culpa (essa que não morre solteira) é das audiências, cada vez mais sedentas pela continuidade forçada (ora MCU, ora as séries que deparam na sua grandiosa idade) e pelo realismo, seja a representação aproximada, em oposição ao artificialismo. 

É certo que toda a campanha para colocar “Dune” no seu habitat natural, a da grande tela ao invés dos ecrãs promovidos pelo streaming e afins, é um ato louvável na crença do cinema enquanto espaço de comunhão e apreciação de espetáculos, e em comparação com outros “Salvadores da Pátria” puramente tecnológicos (recordo “Godzilla Vs Kong”, por exemplo) notamos uma prática ao encontro dessa idealização de cinema para massas.  

"Beautiful Boy": a paternidade posta à prova

Hugo Gomes, 28.11.18

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Tendo em conta a temática comum entre os seus filmes, parece que Felix Van Groeningen possui uma questão paternal por resolver e a sua obra ressoa como um ensaio de voluntária psicanálise. Porém, fugindo a qualquer tentativa de divã, é de evidenciar essas questões presentes na sua recente filmografia, a começar pelo grandíssimo “The Broken Circle Breakdown”, o relato da dor vivida entre um casal que acaba de perder a sua filha, passando por “Belgica”, filme onde adapta as memórias do seu pai e agora com “Beautiful Boy”, que através de duas biografias costura a resistência e embate de um progenitor que lida com a toxicodependência do seu “rebento”.

Tendo como linha os livros de memórias de David e Nic Sheff (pai e filho), "Beautiful Boy" foge da corrente dos supostos filmes de superação pelo simples virar do holofote. A recordar exemplos como “The Fault in our Stars” (“A Culpa é das Estrelas”), que sob uma abordagem puramente adolescente, contraía a história de doença e resistência no epicentro da dor, elaborando com isso um filme egocêntrico, egoísta e demasiado martirológico (sem também falar das grandes “demências” deste trabalho pueril). No filme de Van Groeningen, à imagem de “Broken Circle”, o foco não é quem vive a dor, mas quem convive com essa dor, o segundo elemento da dita superação é sobretudo, neste caso, a família, que sofre e desespera e é nesse duo sentimental que nos identificamos (deixando com isso de serem meros ‘bonecos´ como são representados no anteriormente referenciado filme de jovens). E com este foco alternativo, o elemento de superação renuncia à sua apresentação como tal.

O que está em jogo não é mais esta esperançosa arte de motivação, “Beautiful Boy” desliza pela delicadeza, pelo arrasto e cansaço das personagens, um caso que soa ao de um milhão, e Van Groeningen fá-lo pela decência das mesmas (um imprescindível Steve Carell e um Timothée Chalamet a provar a sua garra de promessa). A composição de uma narrativa intercalada e temporalmente desmontada (como fizera com “Broken Circle’”) valida ainda mais a transfiguração representativa dos seus protagonistas, os “meninos bonitos” que se convertem “rebeldias autodestrutivas” e os pais presentes que ocultam o desejo de fuga fácil.

Sim, “Beautiful Boy” (referência direta ao single de John Lennon, novamente, demonstrando a “bom ouvido” do realizador) é uma obra que cospe na cara das milésimas Luas de Joana e afins, é a história da simplicidade (sem insinuar o simplismo do conflito), da confraternidade e mais uma vez da importância da paternidade. Mesmo que por vezes soe quase eunuca, impotente perante tais batalhas inesperadas.