Que comece a Guerra Santa ... profetas, vermes e muita areia!
Por um lado, não podemos livrar-nos da sensação de filme cortado ao meio que este "Dune" manifesta em nome de um espectáculo retardante; por outro, é impossível não constatar a divisão desigual desferida neste prometido “épico” de ficção científica extraído das páginas de Frank Herbert. Talvez isso explique a reação histérica com que o feito de Villeneuve tem sido recebido, um entusiasmo generalizado que o coloca ao lado de grandes epopeias cinematográficas.
Mas vamos com “calma”, o que entendemos é que, claramente, esta segunda parte é mais filme no seu teor mais clássico (e aristotélico) em comparação com o deserto narrativo do antecessor, e até frutífero em ideias e imagéticas, como também é sinal do seu tempo, neste caso da nossa contemporaneidade, da supra-literalidade, do excesso e do realismo simulado em oposição ao fabulista. Fiquemos com esta sugestão: se a "maldita" versão de David Lynch sugou a mitologia teologicamente herbertiana, Villeneuve ficou com a sua política em massa, transformável acrescentamos, o qual se apropria e a reflete em paralelismos imediatamente atualizados (cada um pode fazer a sua leitura, desde descolonização até ao conflito israelo-palestiniano); a partir daí, é uma "Guerra dos Tronos" intergaláctica, com vários momentos e provocações politizadas que transcendem a uma suposta ação épica que os atributos aprontam. Sinal disso é o conflito final, despachado para se enriquecer em jogos de Poder à moda shakespeariana e de subjugações hierárquicas.
Falando em "épico" e o senso comum aí prestado anos a fio, dotadas de um visual (comparativamente com a parte inicial) mais rico e pomposo (as sequências num planeta do Sol negro, Geide Prime, expressam como as mais bizarras e criativas do ‘universo’) até à sonoridade zimmeriana constantemente a fundo nos seus trombones apocalípticos. É um filme que se movimenta envolto de si, e mesmo sobre a sua suposta fase de estaticidade, nunca transpassando a ideia de emuldorado, um velho truque da arte do blockbuster em arquitetar essa sensação de hiperatividade até mesmo na constituição dos diálogos, do qual Villeneuve não é fã e não é da sua especialidade (nota-se, tendo em conta a escola nolanizadora que parece envergar, cuja simplicidade das 'coisas' como a arte de trocar palavras seja uma tarefa mais caprichosa que o normal); tudo se mexe no deserto de Duna, até o grande plano ostenta pequenas oscilações transmitentes de uma urgência frente à ambiência.
Em outros pontos a favor, mesmo sabendo que um desfecho (ou a possibilidade do mesmo funciona em prol) é o acerto no casting, para além de ser dada mais liberdade aos "antigos residentes", a ver Timothée Chalamet mais fluído mesmo ainda esperado da sua posse de "movie star" conquistado; por outro, há Florence Pugh, Léa Seydoux e um vilipendiado Ashton Butler, este último a demonstrar os seus possíveis caminhos de "método" performativo. Irreconhecível e visualmente intimidador, o ator de reputação estabelecida após “Elvis” de Baz Luhrmann, que aqui assume o anterior papel de Sting, mimetiza vocalmente ao repugnante personagem de Stellan Skarsgård (o grande vilão deste arco). Para que serve tal particularidade? Possivelmente para estabelecer uma similaridade sanguínea num planeta vistosamente degenerado e consanguíneo, embora falte a viscosidade e os insinuados incestos que Lynch apimentou nesse covil vil e desumano.
Quanto ao resto, aprimorado e gigantesco à sua maneira, Denis Villeneuve, o agora coletor da ficção científica em sala, concretiza uma visão fidelizada ao legado de Herbert. "Dune: Part Two", longe do brilhantismo que muitos desejam registar, é uma obra catalisadora do seu zeitgeist temporal, megalómano, mastodôntico e fechado na sua inexpressividade. Fantasia depurada em sintonia com a sede das audiências cada vez mais incapazes de sonhar com o inexplicável. Confirma-se, é um upgrade ao primeiro tomo, mas mantém-se como espectáculo austero e de austeros.
Passamos das (im)possibilidades do Cinema para isto…
May thy knife chip and shatter.