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Cinematograficamente Falando ...

Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

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Quando só se tem cinema na cabeça, dá nisto ...

Os mortos entre nós

Hugo Gomes, 07.12.24

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O ‘almodrama’, que, segundo consta, é um termo cunhado por Caetano Veloso (ouviu eu de um colega carioca; ficou, como se entranhou), é uma receita confortável como canja para os tempos cinzentos e frios. Só que as cores a consolidar as estações o tingem, desviam-no para lá do cinzentismo. É Almodóvar cheio de si e pronto para conquistar a América em ponto grande… “El Conquistador”… Havia ‘bicado’ aqui e ali, com Jean Cocteau trinchado em tela (primeiro contacto com o inglês) ou o western de passados e de feridas reencontradas (Almeria, como sempre, sonha a Oeste). Aliás, (re)encontro será sempre a palavra de ordem do seu cinema. Agora, prossegue para Nova Iorque, dá duas voltas e sai em direção à periferia, depara-se com o silvestre outonal (signo tão nova-iorquino!), refugia-se e reflete sobre a morte.

Pelo meio, existem alguns apontamentos sobre a América que visita. Para que ela é, serve ou como se constrói? Junta-se o pessimismo, um tom fatalista para salgar e voilá: é o Pedro a ser Pedro, não mudou, a receita mantém-se, apenas seguiu de viagem. “The Room Next Door” é Almodóvar, e Almodóvar se mantém até à última estância: um filme sobre a morte, como lidá-la, como encará-la, como dignificá-la. Com Tilda Swinton, atriz camaleónica ao toque almodovariano, do estético à extravagância, do pastiche ao plastificado, ela é a lide perfeita desta imigração fílmica. Julianne Moore, por outro lado, impecável como sempre, é os nossos olhos, a nossa perceção enquanto espectador que espera, que anseia pelo final marcado a ferro e fogo desde o primeiro pedido.

Swinton quer morrer; a vida, para ela, não possui continuação. Solicita à sua velha amiga um trato, um retiro, convida-a a aguardar até a porta do quarto se fechar — código entre amigas para o derradeiro desfecho. Há uns flashbacks ‘sacados’ para distorcer o certinho da narrativa económica, nada de espantoso no cinema de Almodóvar, já estamos habituados. E depois o tal (re)encontro, como toque de hortelã à tão confortável ‘canjinha’. John Turturro abana os braços, alertando sem especialidade para o Apocalipse, como também para o desvairo moral deste mundo mais umbiguista (Oliveira já se prestava a esse individualismo egoísta em “Mon Cas”, 1986). O ócio reina. Almodóvar, através da pele das atrizes, deleita-se por prateleiras de livrarias de bairro, a salas de cinema sem malefícios de multiplex, explora Airbnb com coleções de DVDs — filmes requintados até, com “The Dead” de John Huston a ser a quadra espectral de um último suspiro.

The Room Next Door” é um Almodóvar em língua de Shakespeare, mas não é um Almodóvar aprisionado nem exportado, apenas vivo no seu já característico melodrama. Vivo? Sim, mesmo que a Morte puxe os seus lençóis e se aconchegue para um prometido descanso eterno. 

Snow is falling. Falling in that lonely churchyard where Michael Furey lies buried. Falling faintly through the universe and faintly falling, like the descent of their last end, upon all the living, and the dead." The Dead (John Huston, 1987)

Na memória das vidas passadas como nas futuras

Hugo Gomes, 25.01.22

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Somos o que sonhamos, e sonhamos com aquilo que somos. O sobrenaturalismo de Apichatpong Weerasethakul teoriza que a nossa existência é uma linha contínua, o nascimento liga-se intrinsecamente à morte, os nossos desígnios estão prescritos faz tempo e o sono faz parte dessa comunicação entre os dois estados, no meio existe a prolongação, o hiato, aquilo que normalmente apelidamos de Vida como definição absoluta. “Memoria” não inova nesse mesmo mojo autoral, o tailandês persiste nessa interação infinita entre as coisas ao seu redor, e com isso provocando uma cisão entre espaços, territórios e línguas.

Há muito que os festivais optaram pelo reconhecimento do “slow cinema”, ou “cinema lento” em tradução de Camões, o que não é mais que uma generalização da economia temporal. Deste lado uma provação tal catalogalização, até porque o cinema não vive de etiquetas, vive da sua universalidade. Porém, em língua “festivaleira”, Apichatpong é um Deus desse “mercado”, um artista feito e remodelado em contraposição à euforia e a aceleração das nossas vivências, e depois de uma Palma de Ouro (“Uncle Boonmee Who Can Recall His Past Lives”, 2010) reafirma-se como um diamante em bruto. E com esse estatuto que recaiu em “Memoria”, se por um lado o cinema do autor me faz viajar, mentalmente “expulsando-me” da cadeira do cinema para o meu estado de tranquilidade, que por si só é dialeto universal comummente falado por nações várias, por outro não consigo deixar de encontrar nesta migração para Bogotá (Colômbia), um certo “olhar estrangeiro”. 

O exotismo seu não translada de todo para este novo cenário, resultando numa homogeneização de signos culturais e a reutilização das fórmulas de dominância “anglosaxónica”, a conquista do “selvagem” pela “pureza do Ocidente”, por outras palavras a utilização e o afunilamento do filme para com a presença de Tilda Swinton transforma a paisagem colombiana num pano de fundo homónimo (mesmo que visualmente belo seja essa anonimato). Mas Apichatpong é tailandês, o leitor perguntará incrédulo, o que de ocidentalizado ou anglosaxónico existe nele? Inconscientemente, talvez por ambição de sair de um círculo de “world cinema” (mais uma vez, etiquetas mercantis) e tentar “abraçar” uma aproximação a um reconhecimento … como diria … de degustação americana. 

Entretanto “Memoria” preza-se pela experiência em sala, não somente pela imagens-instalação ou pelo tempo sem pressas, como também pelo som, a sua importância, quer narrativamente, quer interativamente com o espectador. Não desejo ser equivocado, este é um filme menor do tailandês, mas mesmo menor continua a ser Cinema, com todas as propriedades que isso acarreta.

Tilda Swinton à beira de um ataque de nervos

Hugo Gomes, 15.07.21

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Será que fazer Cinema é preciso cumprir uma devida e específica duração? Existe alguma regra raiz-quadrada que transforma automaticamente cada metragem em Cinema propriamente dito? Pedro Almodóvar prova que não. A barreira quase estigmatizada da curta para a longa é somente uma formalidade, porque o registo de menor tempo é preciso para a sua mensagem, ou diríamos antes, o seu Cinema.

"A Voz Humana" ("The Human Voice"), livremente baseado numa peça do poeta e cineasta Jean Cocteau (publicado em 1924), é uma invocação dum fantasma recorrente que assola o realizador espanhol. A homónima obra sempre fora uma inspiração, evidentemente cerne do seu intemporalmente elogiado "Mujeres al borde de un ataque de nervios" (mas antes "La Ley del Deseo" bebia desses mesmos sucos motivadores), sobre a espera incessante e destrutiva pelo seu amante. Aqui, trocando Carmen Maura por Tilda Swinton, a plasticidade mantém-se e ainda complexa num registo meta que cruza o "teatro filmado" com o cinema a olhar para a sua própria concepção.  

Swinton é das forças maiores do projeto que requer mais do que a sua capacidade de assimilar, a sua expressão em nos convencer de uma veracidade poética tida nas suas palavras, nas suas angústias, na sua linguagem corporal enquanto emana um monólogo justificado. A história de uma mulher em jornadas existencialistas, a quem cuja ausência do seu "mais que tudo", o impulsor de toda a compostura trágica, a leva a tomar as suas medidas. É um divã, uma confissão, dirão os mais moralistas, um acontecimento que prevê a verdadeira emancipação. Somente isto, uma atriz, um cenário multiplicado por "faz-de-contas", a ida de uma mulher ao seu mundo, a projetada realidade, para no fim, evadir essa mesma clausura criada.

Almodôvar prova mais uma vez que é um artesão na sua arte. E que arte é essa? A de dar voz a mulheres oprimidas pelas suas próprias emoções, sejam reprimidas ou libertadoras. E para isso não é necessário uma narrativa estendida. Meia-hora, simplesmente isso, é o que nos basta para oferecerem espectacularidade.

Zombies de fantochada

Hugo Gomes, 20.06.19

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Começaremos pelo início: a pacata cidadela de Centerville encontra-se ameaçada por forças sobrenaturais e os mortos que não querem se manter mortos. E com o homónimo single de Sturgill Simpson a contaminar as rádios locais, Adam Driver fica a temer o pior: “isto vai acabar mal”.

Jim Jarmusch é um dos grandes e reconhecíveis nomes do cinema independente norte-americano (“Ghost Dog”, “Dead Man”), que aqui  abandona a poesia mundana do magnífico "Paterson" e aventura-se na assumida série B, seis anos depois dos vampiros boémios de “Only Lovers Left Alive”. Como efeito de uma certa igualdade, os espectadores estão sincronizados com as personagens quanto ao conhecimento dos factos, até mesmo pela denominação das criaturas nefastas: "zombies".

Tudo isto nos coloca a par de um filme-meta que se joga constantemente com a sua meta-informação, e a brincadeira, evidente ao longo do trabalho de Jarmusch, é puxada aos limites da sua linguagem (ou não-linguagem). Era difícil cometer algum rasgo de criatividade nesta temática excessivamente explorada desde que George A. Romero reinventou o morto-vivo, extraído das fantasias vudus de “White Zombie” (1932). Entretanto, o apocalipse putrefato revelou diversas facetas, desde a comédia tresloucado ao terror moderno de cariz social.

Em relação aos “The Dead Don't Die”, este tratamento de distorção não é por si novo, já o Rei dos Mortos-Vivos [Romero] incentivou tais criaturas na sua variação found footage em “Diary of the Dead” (2007). E quanto à integração do "zombie" enquanto elemento cultural da trama, já fora o pioneiro o subvalorizado “The Return of the Living Dead” de Dan O'Bannon (1985).

O que resta a Jarmusch? A anedota, a satirização de um subgénero em perfeita cumplicidade com a natureza B. E isso, tendo o “grandioso” elenco de amigos (Bill Murray, Adam Driver, Chloë Sevigny, Steve Buscemi, RZA, Tilda Swinton, Tom Waits, Danny Glover, Caleb Landry Jones, Rosie Perez, Carol Kane, Selena Gomez, Iggy Pop, que apostamos que se divertiram mais neste filme do que que o espectador alguma vez irá), sabe a pouco.